quarta-feira, 13 de março de 2024
Os policiais é que precisam provar, de modo inequívoco, que o morador autorizou que eles entrassem na sua residência para averiguarem a eventual prática de crime
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Policiais militares, após
receberem denúncia anônima informando que estaria ocorrendo a prática de
tráfico de drogas, dirigiram-se ao endereço de João, o suspeito. Quando ali
chegaram, viram João jogando um pacote em cima da laje.
Os policiais afirmam que
solicitaram, então, autorização para entrar na casa e que João teria
concordado.
Ao revistarem o local, os
policiais encontraram, na laje da residência, armas e drogas.
Em razão do fato, João foi preso
em flagrante delito.
Ao ser interrogado, João negou
que tenha autorizado que os policiais entrassem em sua casa.
Mesmo assim, ele foi denunciado
pelo Ministério Público e a denúncia foi recebida pelo juízo.
A defesa impetrou habeas corpus pedindo
o trancamento da ação penal, sob o argumento de que as provas obtidas seriam
ilícitas considerando que houve ofensa à garantia da inviolabilidade de
domicílio. A defesa sustentou que é completamente “descabida a alegação de que o
réu teria franqueado a entrada dos policiais militares na residência, mesmo
após supostamente ter jogado algo dentro da laje da própria casa e sabendo que
no interior da residência se encontravam armas, munições e drogas.”
O STJ concordou com os
argumentos da defesa? A prova obtida foi ilegal?
SIM.
O STJ concedeu a ordem para
reconhecer a nulidade do flagrante em razão da violação ao domicílio do
suspeito e, por conseguinte, declarou também a nulidade das provas obtidas em
derivação.
A 6ª Turma do STJ, no julgamento
do HC 598.051/SP, decidiu que o consentimento do morador, para validar o
ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos
relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de
constrangimento ou coação:
1) Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige-se, em
termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem
mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de
modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da
casa ocorre situação de flagrante delito.
2) O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser
classificado como crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada
sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas será
permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir que do atraso
decorrente da obtenção de mandado judicial se possa objetiva e concretamente
inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será destruída ou ocultada.
3) O consentimento do morador, para validar o ingresso de
agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao
crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou
coação.
4) A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento
para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao
Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o
ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em
todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova
enquanto durar o processo.
5) A violação a essas regras e condições legais e
constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das
provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela
decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual
responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a
diligência.
STJ. 6ª Turma
HC 598051/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 02/03/2021
(Info 687).
No mesmo sentido:
Os agentes policiais, caso precisem entrar em uma residência
para investigar a ocorrência de crime e não tenham mandado judicial, devem
registrar a autorização do morador em vídeo e áudio, como forma de não deixar
dúvidas sobre o seu consentimento. A permissão para o ingresso dos policiais no
imóvel também deve ser registrada, sempre que possível, por escrito.
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 2.048.637/PR, Rel. Min. Reynaldo
Soares da Fonseca, DJe 6/3/2023.
Assim, a prova da legalidade e da
voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito
incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser registrada em áudio-vídeo e
preservada tal prova enquanto durar o processo.
No caso concreto, a violação de
domicílio foi efetivada após o recebimento de denúncia anônima informando a
prática do delito de tráfico no local, inexistindo prévias investigações que
confirmassem os fatos noticiados na comunicação apócrifa e que subsidiassem a
convicção dos agentes de que o agravado ocultava droga ou algum dos objetos
mencionados no art. 240 do CPP.
Além disso, a suposta autorização
não foi registrada em áudio-vídeo.
Em suma:
A prova da legalidade e da voluntariedade do
consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de
dúvida, ao Estado, e deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova
enquanto durar o processo.
STJ. 6ª
Turma. AgRg no HC 821.494-MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em
6/2/2024 (Info 800).
No mesmo sentido:
Havendo controvérsia entre
as declarações dos policiais e do flagranteado, e inexistindo a comprovação de
que a autorização do morador foi livre e sem vício de consentimento, impõe-se o
reconhecimento da ilegalidade da busca domiciliar
Caso adaptado: a polícia recebeu “denúncia anônima” de que
estaria havendo tráfico de drogas na residência de João. Uma equipe policial se
dirigiu até o local. João estava na frente da residência. Os policiais fizeram
busca pessoal, mas nada de ilícito foi encontrado em sua posse.
Regina, esposa de João, que
também estava na frente da casa, autorizou que os policiais entrassem na
residência. Dentro da casa, os agentes encontraram uma pequena quantidade de
droga. Em razão disso, João foi preso em flagrante. Na delegacia, Regina afirmou
que somente autorizou a entradas dos policiais após sofrer ameaças de que
“poderia ter problemas”, como perder a guarda do filho e eventualmente ser
presa. Mesmo assim, João foi denunciado por tráfico de drogas. A defesa
impetrou habeas corpus alegando, em síntese, que a prova é ilícita, por invasão
de domicílio, em razão de mera denúncia anônima, sem existência de fundadas
razões. No mais, afirmou que o consentimento da esposa do paciente não foi
livre.
O STJ concordou com a defesa.
A abordagem do paciente se deu em virtude de denúncia anônima,
sem que nada de ilícito fosse encontrado em sua posse, e, na sequência,
ingressou-se na residência do paciente, com autorização da sua esposa. Contudo,
além da ausência de justa causa para a busca pessoal e para o ingresso no
domicílio do paciente, o consentimento de sua esposa não foi prestado
livremente, circunstâncias que tornam ilícito o ingresso no domicílio bem como
as provas obtidas com a diligência.
STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 766654-SP, Rel. Ministro Reynaldo
Soares da Fonseca, julgado em 13/09/2022 (Info 759).