Imagine a seguinte situação
hipotética:
Em um pequeno município do
interior, a maioria dos habitantes são idosos, trabalhadores rurais, e muitos
deles têm dificuldades de leitura e escrita.
Essas pessoas, ao longo dos anos,
trabalharam arduamente em suas terras e agora, por conta da idade ou de
incapacidades, dependem dos benefícios previdenciários para sua subsistência e
a de suas famílias.
Neste cenário, os advogados João
e Francisco começam a oferecer seus serviços para esses trabalhadores rurais explicando
que eles poderiam ingressar com ações contra o INSS e, com isso, conseguirem a
aposentadoria.
Eles convencem um grande número
de pessoas a assinar contratos de prestação de serviços advocatícios. No
entanto, uma cláusula peculiar é inserida nos contratos: em caso de êxito na
ação, os advogados, a título de honorários advocatícios contratuais, ficariam:
• com todo o benefício
previdenciário retroativo do autor (ex: o requerimento administrativo foi
negado em 02/02/2020 e o benefício foi concedido judicialmente em 02/02/2024;
esses quatro anos de “atrasados” ficariam com os advogados); ou
• com o valor correspondente a
prestações vincendas durante três anos (caso não houvesse atrasados).
Mesmo com essas cláusulas muito
desvantajosas, diversos trabalhadores idosos aceitaram firmar os contratos.
Ocorre que, com o passar do
tempo, as famílias desses beneficiários começam a perceber que, apesar das
ações serem bem-sucedidas, o resultado não trazia o alívio financeiro esperado.
Pelo contrário, muitos se encontravam em situação ainda mais precária, tendo
que abrir mão de uma parte significativa dos seus já limitados recursos.
As denúncias começam a chegar ao
Ministério Público, que identifica um padrão preocupante: os contratantes são,
na sua maioria, pessoas em situação de vulnerabilidade, sem plena compreensão
dos termos aos quais estavam concordando.
Diante desta situação, o Promotor
de Justiça ingressou com ação civil pública contra João e Francisco visando
declarar a nulidade dessas cláusulas abusivas e buscar a restituição dos
valores pagos pelos hipossuficientes.
Na ACP, o Ministério Público
apontou que os autores das ações previdenciárias, na maioria das vezes, eram
pessoas idosas, deficientes, moradores de zona rural, analfabetos ou
semianalfabetos, ou seja, pessoas hipossuficientes, sem compreensão dos termos
contratuais.
Contestação
Na contestação, entre outros argumentos, os advogados suscitaram a ilegitimidade
ativa do Ministério Público para ingressar com a ação civil pública considerando
que o Parquet estaria defendendo interesses individuais disponíveis, o que não
se encontra dentre as competências do órgão.
Sentença e acórdão do TJ
O Juiz afastou a preliminar de
ilegitimidade ativa e julgou os pedidos procedentes no sentido de:
(I) proibir a pactuação de novos
contratos com valores de honorários acima do permitido;
(II) determinar a adequação das
placas de propaganda no escritório de advocacia dos recorrentes, que se
localizava em frente ao prédio do INSS;
(III) anular e tornar sem efeitos
a cobrança de honorários de todos os contratos firmados com clientes de ações
previdenciárias em trâmite na comarca que fossem superiores a 30% dos valores
retroativos dos benefícios dos clientes, bem como anular a cobrança que
ultrapasse o equivalente a quatro parcelas vincendas, anular as cláusulas
contratuais que previam o recebimento integral dos honorários contratados para
a hipótese de rescisão ou distrato;
(IV) determinar que os alvarás de
levantamento de valores dos autos sejam expedidos somente em nome dos
beneficiários no importe de 70% do valor retroativo depositado em juízo e 30%
em nome dos advogados.
A sentença foi confirmada pelo Tribunal
de Justiça.
Recurso especial
Inconformados, os advogados
interpuseram recurso especial argumentando que:
• o Ministério Público não possui
legitimidade para propor Ação Civil Pública que visa declarar abusivas as
cláusulas de contrato de prestação de serviços advocatícios;
• a presente Ação Civil Pública
não se enquadra em nenhuma das hipóteses listadas no art. 1ª da Lei nº 7.347/85,
haja vista que os honorários contratuais advocatícios são direitos individuais
disponíveis e que inexiste relação de consumo entre o cliente e o advogado;
• o simples fato de se tratar de
pessoa idosa não atrai, por si só, a legitimidade do Ministério Público para
propor Ação Civil Pública;
• não existe vício no contrato
firmado entre as partes que justifique a sua anulação, devendo ser preservada a
autonomia da vontade;
• o Estatuto da Advocacia
assegura aos inscritos na OAB o direito de receber os honorários convencionados.
Os argumentos dos advogados
foram acolhidos pelo STJ?
NÃO.
O Ministério Público possui
legitimidade ad causam para propor Ação Civil Pública visando à defesa de
direitos individuais homogêneos, ainda que disponíveis e divisíveis, quando estiver
presente relevante interesse social, como no caso em que se objetiva tutelar a
dignidade da pessoa humana, a qualidade ambiental, a saúde, a educação etc.
A questão ganha peculiar
complexidade quando se trata da legitimidade do Ministério Público para atuar
como substituto processual em ação que visa anular o contrato de prestação de
serviços advocatícios firmado diretamente entre o causídico e seu cliente.
Não se nega que se trata de
contrato que pertence ao direito privado, devendo prevalecer, em regra, a
autonomia de vontade e a garantia do recebimento de verbas alimentares em prol
do advogado.
Ocorre que, no caso concreto, restou
demonstrado que se estava diante de uma situação recorrente e continuada na
qual os clientes em situação de hipossuficiência eram induzidos, em razão de
sua condição de vulnerabilidade, a anuir (concordar) com cobrança abusiva de
honorários advocatícios contratuais. Este cenário revela uma situação que
ultrapassa os limites da esfera individual.
Este tipo de situação, que por si
só viola os ditames de boa-fé da autonomia privada, torna-se ainda mais
sensível quando se trata de advocacia que atende os beneficiários da
Previdência Social.
Isso porque, nos termos do art.
1º da Lei nº 8.213/91, a Previdência Social tem por finalidade garantir aos
seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de
incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de serviço,
encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem dependiam
economicamente.
Assim, nas demandas
previdenciárias, geralmente cuida-se de pessoas em situação de
hipervulnerabilidade social, econômica e sanitária que estão buscando o Poder
Público para garantir meios de sobrevivência.
Esta característica em especial
reafirma a legitimidade do Ministério Público para propor Ação Civil Pública
onde se discute a abusividade dos honorários contratuais, notadamente quando o
excesso da cobrança agrava ainda mais a situação econômica do beneficiário.
Apesar de a gama de beneficiários
do sistema previdenciário ir além das pessoas idosas, o art. 74 do Estatuto da
Pessoa Idosa confere competência ao Ministério Público para:
• instaurar o inquérito civil e a
ação civil pública para a proteção dos direitos e interesses difusos ou
coletivos, individuais indisponíveis e individuais homogêneos da pessoa idosa
(inciso I);
• atuar como substituto
processual da pessoa idosa em situação de risco e promover a revogação de
instrumento procuratório da pessoa idosa, nas hipóteses previstas no art. 43 do
referido dispositivo, quando necessário ou o interesse público justificar
(inciso IV).
Destaca-se ainda que, nos termos do art. 3º Lei nº
10.741/2003 (Estatuto da Pessoa Idosa), a proteção ao idoso deve ser tratada
como bem jurídico a ser tutelado não só pela família, como também pela
comunidade, sociedade e Poder Público:
Art. 3º É obrigação da família,
da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa, com
absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à
liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e
comunitária. (Redação dada pela Lei nº
14.423, de 2022)
Nessa linha de raciocínio,
conclui-se que a modalidade de advocacia predatória que subverte o propósito da
Previdência Social de mantença de seus segurados, ao atuar com desídia para
aumentar a sua remuneração e ao cobrar honorários que prejudicam a subsistência
dos beneficiários, configura-se como ofensa ao próprio sistema previdenciário.
Logo, atinge um bem jurídico de interesse de toda coletividade.
Importante destacar que não se
trata de Ação Civil Pública para veicular as contribuições previdenciárias
propriamente ditas, o que é vedado pelo art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 7.347/85.
Cuida-se, em verdade, de coibir o
abuso daqueles que se aproveitam da condição de vulnerabilidade de pessoas que
aguardavam a concessão de benefícios da Previdência Social para impor-lhes
contratos abusivos de honorários.
Com efeito, tendo em vista a
competência do Parquet para zelar pelos direitos fundamentais, é de ser
reconhecida a sua legitimidade para propor Ação Civil Pública que trate de
honorários contratuais abusivos quando houver litigantes hipossuficientes e repercussão
social que transcenda a esfera dos interesses particulares.
Em suma:
O Ministério Público possui legitimidade para propor
ação civil pública que trate de contrato de honorários advocatícios abusivos
quando houver litigantes hipossuficientes e repercussão social que transcenda a
esfera dos interesses particulares, como nos de beneficiários da Previdência
Social.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.079.440-RO, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 20/2/2024 (Info
801).