Dizer o Direito

terça-feira, 12 de março de 2024

O art. 22, III, da Lei de Abuso de Autoridade definiu os conceitos de ‘dia’ e de ‘noite’ para fins de cumprimento do mandado de busca e apreensão domiciliar?

Inviolabilidade de domicílio

A CF/88 prevê, em seu art. 5º, a seguinte garantia:

XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

 

A inviolabilidade do domicílio é uma das expressões do direito à intimidade do indivíduo.

 

Entendendo o inciso XI:

Só se pode entrar na casa de alguém sem o consentimento do morador nas seguintes hipóteses:

Durante o DIA

Durante a NOITE

• Em caso de flagrante delito;

• Em caso de desastre;

• Para prestar socorro;

• Para cumprir determinação judicial (ex: busca e apreensão; cumprimento de prisão preventiva).

• Em caso de flagrante delito;

• Em caso de desastre;

• Para prestar socorro.

 

 

Assim, guarde isso: não se pode invadir a casa de alguém durante a noite para cumprir ordem judicial.

 

Vejamos agora o caso concreto enfrentado pelo STJ:

O juiz, a pedido da autoridade policial, expediu mandado de busca e apreensão, a ser cumprido na residência de João, suspeito dos crimes de estelionato, lavagem de dinheiro e associação criminosa.

Os policiais civis se dirigiram ao endereço de João para dar cumprimento ao mandado.

A busca se iniciou às 5h30min.

Diante disso, a defesa impetrou habeas corpus alegando que a diligência foi ilegal, considerando que 5h30min ainda é “noite” e que, no momento do cumprimento do mandado “ainda estava totalmente escuro no local”, tanto que os policiais tiveram que usar lanternas, “de modo que nem pelo critério físico-astronômico, nem pelo critério cronológico a medida pode ser considerada válida”.

O Tribunal de Justiça denegou a ordem de habeas corpus argumentando que, depois que entrou em vigor o art. 22, III, da Lei nº 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade), passou a ser válido o cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar entre 5h e 21h. Veja o que diz esse dispositivo:

Lei nº 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade)

Art. 22.  Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:

Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

(...)

III - cumpre mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h (vinte e uma horas) ou antes das 5h (cinco horas).

 

Ainda inconformada, a defesa interpôs recurso ordinário.

 

O STJ concordou com os argumentos do Tribunal de Justiça? É possível afirmar que, depois do advento do art. 22, III, da Lei nº 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade), passou a ser válido o cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar no período compreendido entre 5h e 21h?

NÃO.

 

Cumprimento da busca e apreensão deve ocorrer, em regra, durante o dia

De acordo com o disposto no art. 5º, XI, da Constituição, “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

O art. 245, caput, do CPP, no mesmo sentido, estabelece que a busca e apreensão deve ocorrer, em regra, durante o dia:

Art. 245.  As buscas domiciliares serão executadas de dia, salvo se o morador consentir que se realizem à noite, e, antes de penetrarem na casa, os executores mostrarão e lerão o mandado ao morador, ou a quem o represente, intimando-o, em seguida, a abrir a porta.

 

O que é considerado “dia”?

Essa questão sempre gerou intensa discussão.

Há os que defendem o critério físico-astronômico, ou seja, dia é o período de tempo que fica entre o crepúsculo (pôr-do-sol) e a aurora (nascer-do-sol).

Outros sustentam um critério cronológico: dia vai das 6h às 18h.

Em sentido intermediário, há também a proposta de um critério misto, que combina os dois anteriores para potencializar a garantia constitucional, de modo que deve prevalecer o critério mais favorável à proteção domiciliar no caso concreto. Por exemplo, se às 5h40 já houver luz solar, prevalece o critério cronológico e o ingresso só é admitido às 6h; se às 6h o sol ainda não houver nascido, prevalece o critério físico-astronômico e o cumprimento do mandado só será possível quando raiar o dia.

O advento do art. 22, III, da Lei nº 13.869/2019 deu origem a uma nova corrente, no sentido de que, ao tipificar como crime de abuso de autoridade o cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar entre 21h e 5h, o legislador haveria implicitamente regulamentado o art. 5º, XI, da Constituição e o art. 245 do CPP, para definir como “dia” o período entre 5h e 21h.

Veja novamente a redação do dispositivo:

Lei nº 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade)

Art. 22.  Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:

Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

(...)

III - cumpre mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h (vinte e uma horas) ou antes das 5h (cinco horas).

 

A 6ª Turma do STJ não concordou com essa tese

O art. 22, III, da Lei nº 13.869/2019 não definiu os conceitos de “dia” e de “noite” para fins de cumprimento do mandado de busca e apreensão domiciliar.

O que ocorreu foi apenas a criminalização de uma conduta que representa violação tão significativa da proteção constitucional do domicílio a ponto de justificar a incidência excepcional do direito penal contra aqueles que a praticarem. É dizer, o fato de que o cumprimento de mandado de busca domiciliar entre 21h e 5h foi criminalizado não significa que a realização da diligência em qualquer outro horário seja plenamente lícita e válida para todos os fins.

Assim, mesmo que realizada a diligência depois das 5h e antes das 21h, continua sendo ilegal e sujeito à sanção de nulidade cumprir mandado de busca e apreensão domiciliar se for noite, embora não configure o crime de abuso de autoridade previsto no art. 22, III, da Lei nº 13.869/2019.

O Min. Rogério Schietti Cruz argumentou:

“Ressalto, nesse ponto, desconhecer a existência de cidade brasileira em que, por exemplo, às 20h59, ainda não haja anoitecido, a corroborar a tese de que o art. 22, III, da Lei n. 13.869/2019 não regulamentou os conceitos de “dia” e de “noite”; somente criminalizou uma conduta cuja violação à proteção domiciliar é tão grave que legitima a incidência do Direito Penal como ultima ratio.”

 

Decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos

Vale mencionar, ainda, a reforçar essa interpretação, recente e importante decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Valencia Campos y otros v. Bolívia, julgado em 18 de outubro de 2022, em que o tema da temeridade do ingresso domiciliar em período noturno foi abordado com especial destaque.

Em voto concorrente para a condenação do Estado boliviano por violação da Convenção Americana de Direitos Humanos, o Juiz Rodrigo Mudrovitsch e a Juíza Nancy Hernández López pontuaram que, “as invasões policiais noturnas se afiguram incompatíveis com a Convenção e com os standards desta Corte, sendo admissíveis tão somente em situações absolutamente excepcionais e, acima de tudo, previstas de forma clara e taxativa na Constituição ou na Lei, e requerendo motivação reforçada que justifique as razões pelas quais não se pode realizar a diligência no horário diurno. Em outras palavras, não podem ser encaradas pelos Estados como procedimentos corriqueiros da atividade de persecução penal, à livre disposição dos operadores da justiça, e sim como instrumentos que configuram uma das mais graves intervenções na esfera de direitos dos indivíduos. Por essa razão, as invasões noturnas só são justificáveis mediante a mais rigorosa observância cumulativa dos ditames da legalidade e da proporcionalidade em todas as suas dimensões”.

 

Em suma:

Embora não configure o crime de abuso de autoridade, mesmo que realizada a diligência depois das 5h e antes das 21h, continua sendo ilegal e sujeito à sanção de nulidade cumprir mandado de busca e apreensão domiciliar se for noite. 

STJ. 6ª Turma. AgRg no RHC 168.319/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, Rel. para acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 5/12/2023 (Info 800).


Dizer o Direito!