segunda-feira, 18 de março de 2024
É dever do Judiciário indagar à pessoa autodeclarada parte da população transexual acerca da preferência pela custódia em unidade feminina, masculina ou específica, se houver, e, na unidade escolhida, preferência pela detenção no convívio geral ou em alas ou celas específicas
Imagine a seguinte situação adaptada:
Regina, mulher trans, foi
condenada a 6 anos de reclusão em regime semiaberto.
De acordo com o art. 33, § 1º, “b”, do Código Penal, Regina deveria,
portanto, cumprir a pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento
similar:
Art. 33 (...)
§ 1º - Considera-se:
b) regime semiaberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial
ou estabelecimento similar;
c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou
estabelecimento adequado.
Ocorre que, no momento de cumprir
a pena, verificou-se que não havia no local estabelecimento destinado ao regime
semiaberto que atendesse todos os requisitos da lei.
Regina poderá cumprir a pena no regime fechado enquanto não há vagas no semiaberto?
NÃO. A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção
do condenado em regime prisional mais gravoso.
O que fazer em caso de déficit de vagas no estabelecimento adequado?
O STF, no julgamento do RE 641.320, definiu parâmetros para responder a
essa questão:
a) A falta de
estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime
prisional mais gravoso;
b) Os juízes da
execução penal podem avaliar os estabelecimentos destinados aos regimes
semiaberto e aberto para qualificação como adequados a tais regimes. São
aceitáveis estabelecimentos que não se qualifiquem como “colônia agrícola,
industrial” (regime semiaberto) ou “casa de albergado ou estabelecimento
adequado” (regime aberto) (art. 33, §1º, “b” e “c”, do CP). No entanto, não
deverá haver alojamento conjunto de presos dos regimes semiaberto e aberto com
presos do regime fechado.
c) Havendo déficit de
vagas, deverá determinar-se:
(i) a saída antecipada
de sentenciado no regime com falta de vagas;
(ii) a liberdade
eletronicamente monitorada ao sentenciado que sai antecipadamente ou é posto em
prisão domiciliar por falta de vagas;
(iii) o cumprimento de
penas restritivas de direito e/ou estudo ao sentenciado que progride ao regime
aberto.
d) Até que sejam
estruturadas as medidas alternativas propostas, poderá ser deferida a prisão
domiciliar ao sentenciado.
STF. Plenário. RE
641320/RS, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 11/5/2016 (Repercussão Geral –
Tema 423) (Info 825).
Em seguida, foi editada a SV 56:
Súmula vinculante 56: A
falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado
em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nesta hipótese, os
parâmetros fixados no Recurso Extraordinário (RE) 641320.
Voltando ao caso concreto
Como em Criciúma (SC), local onde
Regina morava, não havia colônia agrícola, industrial ou estabelecimento
similar, o juiz determinou que ela ficasse em “regime semiaberto harmonizado”,
ou seja, em prisão domiciliar.
“Denomina-se
regime semiaberto harmonizado ou regime aberto harmonizado aquele cumprido em
prisão domiciliar e/ou mediante monitoramento eletrônico, em razão da falta de
vagas no estabelecimento prisional adequado.” (ALVES Jamil Chaim. Manual de
Direito Penal - Parte Geral e Parte Especial /– 2. ed. rev., atual. e ampl. –
Salvador: Editora JusPodivm, 2022, p. 545).
Depois de alguns meses, o próprio
Juízo da Execução Penal revogou a prisão domiciliar de Regina, sob o argumento
de que o Presídio Regional de Criciúma (presídio masculino) estaria “apto a receber reclusos em regime
semiaberto”. Logo, Regina poderia cumprir pena neste local.
A defesa impetrou habeas corpus pedindo
para restabelecer o direito à prisão domiciliar.
O Tribunal de origem manteve a
decisão de primeiro grau que revogou a concessão da prisão domiciliar, razão
pela qual a defesa impetrou novo habeas corpus agora para o STJ.
O que decidiu o STJ?
O STJ concedeu o habeas corpus para
determinar que Regina continue cumprindo a pena em prisão domiciliar.
Resolução 348/2020
A Resolução nº 348/2020, do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabelece diretrizes e procedimentos a
serem observados pelo Poder Judiciário, no âmbito criminal, com relação ao
tratamento da população lésbica, gay, bissexual, transexual, travesti ou
intersexo que seja custodiada, acusada, ré, condenada, privada de liberdade, em
cumprimento de alternativas penais ou monitorada eletronicamente.
O art. 7º da Resolução determina que o local de cumprimento
da pena deve ser determinado pelo juiz após a pessoa presa manifestar sua
preferência:
Art. 7º Em caso de prisão da
pessoa autodeclarada parte da população LGBTI, o local de privação de liberdade
será definido pelo magistrado em decisão fundamentada.
§ 1º A decisão que determinar o
local de privação de liberdade será proferida após questionamento da preferência da pessoa presa,
nos termos do art. 8º, o qual poderá se dar em qualquer momento do processo
penal ou execução da pena, assegurada, ainda, a possibilidade de alteração do
local, em atenção aos objetivos previstos no art. 2º desta Resolução. (redação
dada pela Resolução n. 366, de 20/01/2021)
§ 1º - A. A possibilidade de
manifestação da preferência quanto ao local de privação de liberdade e de sua
alteração deverá ser informada expressamente à pessoa pertencente à população
LGBTI no momento da autodeclaração. (redação dada pela Resolução n. 366, de
20/01/2021)
(...)
Desse
modo, a determinação do local do cumprimento da pena da pessoa transgênero não
é um exercício de livre discricionariedade do julgador, mas sim uma análise
substancial das circunstâncias que tem por objeto resguardar a liberdade sexual
e de gênero, a integridade física e a vida das pessoas transgênero presas.
O órgão estatal judicial
responsável pelo acompanhamento da execução da pena deve resguardar a vida e a
integridade física das pessoas presas, respeitando a diversidade de gênero e a
liberdade sexual.
ADPF 527
Importante registrar que, em
2019, o STF, na ADPF 527, havia concedido medida cautelar para que pessoas
presas transexuais e travestis com identidade de gênero feminino pudessem
escolher cumprir a pena em estabelecimentos prisionais femininos ou masculinos.
Em seguida, o CNJ editou a já mencionada Resolução CNJ n.
348/2020 que, em seu art. 8º, previu:
Art. 8º De modo a possibilitar a
aplicação do artigo 7º, o magistrado deverá:
I – esclarecer em linguagem
acessível acerca da estrutura dos estabelecimentos prisionais disponíveis na
respectiva localidade, da localização de unidades masculina e feminina, da
existência de alas ou celas específicas para a população LGBTI, bem como dos
reflexos dessa escolha na convivência e no exercício de direitos;
II – indagar à pessoa
autodeclarada parte da população transexual acercada preferência pela custódia
em unidade feminina, masculina ou específica, se houver, e, na unidade
escolhida, preferência pela detenção no convívio geral ou em alas ou celas
específicas, onde houver; e (redação dada pela Resolução n. 366, de 20/01/2021)
III – indagar à pessoa
autodeclarada parte da população gay, lésbica, bissexual, intersexo e travesti
acerca da preferência pela custódia no convívio geral ou em alas ou celas
específicas. (redação dada pela Resolução n. 366, de 20/01/2021)
§ 1º Os procedimentos previstos
neste artigo devem ser observados na realização da audiência de custódia após
prisão em flagrante ou cumprimento do mandado de prisão, na prolação de
sentença condenatória, assim como em audiência na qual seja decretada a privação
de liberdade de pessoa autodeclarada parte da população LGBTI.
§ 2º A preferência de local de
detenção declarada pela pessoa constará expressamente da decisão ou sentença
judicial, que determinará seu cumprimento.
Portanto, é dever do Judiciário
indagar à pessoa autodeclarada parte da população transexual acerca da
preferência pela custódia em unidade feminina, masculina ou específica, se
houver, e, na unidade escolhida, preferência pela detenção no convívio geral ou
em alas ou celas específicas.
Em suma:
É dever do Judiciário indagar à pessoa autodeclarada
parte da população transexual acerca da preferência pela custódia em unidade
feminina, masculina ou específica, se houver, e, na unidade escolhida,
preferência pela detenção no convívio geral ou em alas ou celas
específicas.
STJ. 6ª Turma. HC 861.817-SC, Rel. Min. Jesuíno Rissato
(Desembargador convocado do TJDFT), julgado em 6/2/2024 (Info 801).