Dizer o Direito

sábado, 23 de março de 2024

Compete ao Juízo Estadual o processamento e julgamento do cumprimento de sentença promovido pelo INSS relativo ao ressarcimento de honorários periciais antecipados no bojo de ação acidentária

COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DE CAUSAS RELACIONADAS A ACIDENTES DE TRABALHO

Imagine a seguinte situação hipotética:

João afirmou que sofreu um acidente em seu trabalho e que, em razão disso, tornou-se incapaz, total e permanentemente, para o labor.

Ele requereu junto ao INSS a concessão de aposentadoria por invalidez (atualmente chamada de “aposentadoria por incapacidade permanente”). A autarquia previdenciária, contudo, indeferiu o benefício.

Diante disso, João ajuizou ação contra o INSS afirmando que a recusa da autarquia foi indevida e que ele tem direito ao benefício previdenciário. Pediu, portanto, a concessão da aposentadoria.

 

De quem é a competência para julgar essa causa?

Justiça Estadual.

 

Mas o INSS é uma autarquia federal... não seria competência da Justiça Federal já que se está propondo ação contra uma entidade federal?

NÃO.

De fato, em regra, as ações propostas contra a União, suas autarquias, fundações ou empresas públicas são de competência da Justiça Federal. Isso está previsto na primeira parte do art. 109, I, da CF/88.

Ocorre que a segunda parte desse inciso traz algumas exceções e afirma que, se as causas relacionadas com acidente de trabalho não devem ser julgadas pela Justiça Federal mesmo quando envolvam órgãos ou entidades federais. Confira:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

I — as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;

 

Logo, as causas propostas contra o INSS (entidade autárquica federal) são, em regra, de competência da Justiça Federal, exceto as que envolvam acidente de trabalho.

 

E quem julga as causas relacionadas a acidentes de trabalho? É sempre a Justiça Estadual?

Nem sempre. Essa é outra armadilha:

• Se forem propostas contra o INSS (versando sobre benefícios previdenciários): a competência será da Justiça ESTADUAL (Súmula 501-STF). Ex: João pedindo a aposentadoria do INSS.

• Se forem propostas contra o empregador (versando sobre a relação de trabalho): a competência será da Justiça do TRABALHO (SV 22-STF). Ex: suponhamos que João ajuíze a ação contra a empresa onde trabalhava pedindo indenização por danos morais em razão do acidente que sofreu em serviço.

 

HONORÁRIOS PERICIAIS NO BOJO DE AÇÃO ACIDENTÁRIA (TEMA 1.044)

Necessidade de perícia e antecipação do pagamento pelo INSS

João, na petição inicial da ação, pediu o benefício da gratuidade da justiça (art. 98 do CPC), o que foi deferido pelo magistrado.

O autor requereu ainda a realização de perícia médica, para atestar que ele se encontra realmente incapacitado para o trabalho. O juiz também deferiu.

O médico perito precisa receber seus honorários pela perícia e o autor é beneficiário da justiça gratuita, estando dispensado de pagar esses honorários, nos termos do art. 98, § 1º, VI, do CPC:

Art. 98. A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei.

§ 1º A gratuidade da justiça compreende:

(...)

VI - os honorários do advogado e do perito e a remuneração do intérprete ou do tradutor nomeado para apresentação de versão em português de documento redigido em língua estrangeira;

 

Diante disso, o que fazer?

Em regra, o INSS deverá adiantar os honorários periciais.

Essa foi a solução dada inicialmente pelo art. 8º, § 2º da Lei nº 8.620/93:

Art. 8º (...)

§ 2º O INSS antecipará os honorários periciais nas ações de acidente do trabalho. (obs: atualmente revogado)

 

A Lei nº 14.332/2022 revogou o art. 8º, § 2º da Lei nº 8.620/93. No entanto, o INSS continua com o dever de, em regra, adiantar os honorários periciais, salvo se o autor tiver condições financeiras. Esse dever agora encontra-se previsto nos §§ 5º e 6º do art. 1º da Lei nº 13.876/2019, inseridos pela Lei nº 14.331/2022:

Art. 1º O ônus pelos encargos relativos ao pagamento dos honorários periciais referentes às perícias judiciais realizadas em ações em que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) figure como parte e se discuta a concessão de benefícios assistenciais à pessoa com deficiência ou benefícios previdenciários decorrentes de incapacidade laboral ficará a cargo do vencido, nos termos da legislação processual civil, em especial do § 3º do art. 98 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

(...)

§ 5º A partir de 2022, nas ações a que se refere o caput deste artigo, fica invertido o ônus da antecipação da perícia, cabendo ao réu (leia-se: INSS), qualquer que seja o rito ou procedimento adotado, antecipar o pagamento do valor estipulado para a realização da perícia, exceto na hipótese prevista no § 6º deste artigo (leia-se: se o autor da ação contra o INSS tiver condições econômicas, ele deverá adiantar os honorários do perito).

§ 6º Os autores de ações judiciais relacionadas a benefícios assistenciais à pessoa com deficiência ou a benefícios previdenciários decorrentes de incapacidade laboral previstas no caput deste artigo que comprovadamente disponham de condição suficiente para arcar com os custos de antecipação das despesas referentes às perícias médicas judiciais deverão antecipar os custos dos encargos relativos ao pagamento dos honorários periciais.

 

Se o INSS, ao final, for sucumbente (perder a demanda):

Neste caso, ele perderá o valor que foi adiantado a título de honorários periciais.

Em outras palavras, aquilo que era só um “adiantamento”, torna-se definitivo.

 

Se o INSS, ao final, for vencedor (se o autor ganhar a demanda):

Neste caso, pela regra do art. 82, § 2º do CPC, o autor deveria ressarcir o INSS quanto ao valor que ele adiantou:

Art. 82 (...)

§ 2º A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou.

 

Entretanto, não é possível aplicar simplesmente esse dispositivo e adotar tal solução nos casos em que o autor da ação acidentária é beneficiário de gratuidade de justiça. Isso porque existe uma regra especial de isenção de ônus sucumbenciais no art. 129, parágrafo único, da Lei nº 8.213/91:

Art. 129 (...)

Parágrafo único. O procedimento judicial de que trata o inciso II deste artigo é isento do pagamento de quaisquer custas e de verbas relativas à sucumbência.

 

Diante disso, o STJ concluiu que, neste caso, tal ônus recai sobre o Estado, ante a sua obrigação constitucional de garantir assistência jurídica integral e gratuita aos hipossuficientes, como determina o art. 5º, LXXIV, da CF/88:

Art. 5º (...)

LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;

 

A efetivação da garantia constitucional é responsabilidade tanto da União, quanto dos Estados e do Distrito Federal.

Nesse panorama, o INSS somente estará obrigado ao pagamento final dos honorários periciais, em ação acidentária, se ele for sucumbente.

Se o pedido de benefício acidentário for julgado improcedente, ou seja, se o INSS for a parte vencedora da demanda, os honorários periciais, adiantados pela autarquia, na Justiça Estadual e do Distrito Federal (art. 8º, § 2º, da Lei nº 8.620/93), constituirão despesa a cargo do Estado em que tramitou a ação.

 

Isso foi sedimentado na tese fixada no Tema 1.044:

 

COMPETÊNCIA PARA JULGAR O CUMPRIMENTO DE SENTENÇA PROMOVIDO PELO INSS RELATIVO AO RESSARCIMENTO DE HONORÁRIOS PERICIAIS ANTECIPADOS NO BOJO DE AÇÃO ACIDENTÁRIA

Voltando ao exemplo hipotético mencionado acima:

João ajuizou ação contra o INSS pedindo a concessão de aposentadoria por incapacidade permanente em decorrência de acidente de trabalho (ação acidentária).

A ação foi proposta na Justiça comum estadual (1ª Vara Cível da Justiça Estadual).

Foi concedida gratuidade da justiça em favor do autor.

João pediu a realização de perícia médica.

O médico perito cobrou R$ 1.500,00 de honorários periciais, o que foi homologado pelo juízo.

O INSS adiantou o valor dessa despesa.

A perícia constatou que a limitação apresentada “em hipótese alguma pode ser considerada como acidente de trabalho”, “sendo consequência direta e exclusiva de acidente de trânsito anterior, sem relação com o trabalho”.

Embasado nessas conclusões médicas, o Juízo estadual (1ª Vara Cível da Justiça Estadual) julgou improcedente o pedido autoral.

 

Cumprimento de sentença pelo INSS

Diante do cenário acima, o INSS requereu, na 2ª Vara da Fazenda Pública da Justiça Estadual, o início de cumprimento de sentença.

O objetivo do INSS era o de ser ressarcido pelo valor dos honorários periciais que ele havia adiantado (R$ 1.500,00). De quem o INSS cobrou o valor? Do Estado-membro.

Como João, o autor sucumbente, foi beneficiário da assistência judiciária gratuita e a demanda tramitou perante o foro da Justiça Estadual, o INSS indicou como executado o Estado do Mato Grosso do Sul.

A autarquia previdenciária cobrou do Estado-membro com base no que o STJ decidiu no Tema 1.044 (acima estudado).

 

Conflito de competência

O Juízo da 2ª Vara da Fazenda Pública entendeu que era incompetente para o processamento do cumprimento de sentença. O raciocínio do magistrado foi o seguinte:

• no cumprimento de sentença, não se está mais discutindo prestação previdenciária decorrente de acidente de trabalho;

• o que se está cobrando neste cumprimento de sentença é o ressarcimento de honorários periciais;

• logo, a situação não se enquadra na exceção prevista na parte final do inciso I do art. 109, da CF/88 (“… exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho”);

• a presença do INSS, autarquia federal, na lide, faz com que a competência seja da Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da CF/88.

 

Diante disso, o Juízo da 2ª Vara da Fazenda Pública da Justiça Estadual declinou da competência para a Justiça Federal.

O processo foi distribuído para a 3ª Vara Federal de Campo Grande (MS).

O Juiz Federal, ao receber os autos, discordou das conclusões do Juízo estadual.

Argumentou que “ainda que o exequente seja autarquia federal — o que, em regra, atrairia a competência para a Justiça Federal —, a fase cognitiva do processo tramitou perante a Justiça Estadual, por força da exceção constante no art. 109, I da CF, dada a natureza acidentária da causa”, de modo que “a competência estadual, para julgar demandas em que o INSS é parte, não se esgota na fase cognitiva do processo, devendo estender-se, também, para a fase de cumprimento de sentença”.

Suscitou, por essas conclusões, conflito de competência perante o STJ.

 

Como o STJ resolveu o conflito de competência? De quem é a competência neste nosso exemplo?

2ª Vara da Fazenda Pública da Justiça Estadual.

O STJ baseou sua decisão nos arts. 516 e 43 do CPC.

O art. 516 do CPC prevê que o cumprimento de sentença deve, em regra, tramitar perante o juízo que decidiu a causa. Veja:

Art. 516. O cumprimento da sentença efetuar-se-á perante:

I – os tribunais, nas causas de sua competência originária;

II – o juízo que decidiu a causa no primeiro grau de jurisdição;

III – o juízo cível competente, quando se tratar de sentença penal condenatória, de sentença arbitral, de sentença estrangeira ou de acórdão proferido pelo Tribunal Marítimo.

Parágrafo único. Nas hipóteses dos incisos II e III, o exequente poderá optar pelo juízo do atual domicílio do executado, pelo juízo do local onde se encontrem os bens sujeitos à execução ou pelo juízo do local onde deva ser executada a obrigação de fazer ou de não fazer, casos em que a remessa dos autos do processo será solicitada ao juízo de origem.

 

Essa regra geral de competência para os títulos judiciais decorre do sincretismo processual, ou seja, da ideia segundo a qual o reconhecimento do direito e a sua efetivação ocorrem no mesmo processo, diferindo-se apenas por fases.

Para a solução do caso, deve ser considerado, ainda, o princípio da perpetuatio jurisdictionis, segundo o qual são “irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta (art. 43 do CPC)”:

Art. 43. Determina-se a competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta.

 

Assim, em regra, o juízo que formou o título executivo é o competente para executá-lo, estando as exceções previstas no próprio artigo de lei, de modo que somente não serão executados perante o juízo que processou a ação os títulos formados a partir de sentença penal condenatória, de sentença arbitral, de sentença estrangeira ou de acórdão proferido pelo Tribunal Marítimo ou, ainda, nos casos em que os bens sujeitos à constrição judicial se encontrarem em foro diverso ou se diverso for o foro atual do domicílio do executado.

E, no caso em discussão, observa-se que não se enquadra em nenhuma das situações que excepcionam a regra contida no art. 516, II, do CPC, porquanto a exequente pretende efetivar o direito à percepção dos honorários periciais antecipados na lide, em razão de o vencido ser beneficiário da justiça gratuita.

Nesse mesmo sentido, o STJ vem reconhecendo a competência do Juízo Estadual para o processamento e julgamento do cumprimento de sentença promovido pelo INSS, relativo ao ressarcimento de honorários periciais antecipados no bojo de ação acidentária, nos seguintes julgados: CC n. 186.830/MS, relator Ministro Herman Benjamin, DJe de 12/4/2022; CC n. 186.831/MS, relator Ministro Manoel Erhardt (Desembargador Federal convocado do TRF/5ª Região), DJe de 31/3/2022; CC n. 186.837/MS, relator Ministro Benedito Gonçalves, DJe de 28/3/2022; CC n. 186.666/MS, relator Ministro Francisco Falcão, DJe de 18/3/2022, entre outros.

Dessa forma, deve ser declarado competente para o processamento e julgamento do feito, no caso, o Juízo Estadual, ora suscitado.

 

Em suma:

Compete ao Juízo Estadual o processamento e julgamento do cumprimento de sentença promovido pelo INSS relativo ao ressarcimento de honorários periciais antecipados no bojo de ação acidentária. 

STJ. 1ª Seção. CC 191.185-MS, Rel. Min. Afrânio Vilela, julgado em 28/2/2024 (Info 802).


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