COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DE CAUSAS RELACIONADAS A
ACIDENTES DE TRABALHO
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João afirmou que sofreu um
acidente em seu trabalho e que, em razão disso, tornou-se incapaz, total e
permanentemente, para o labor.
Ele requereu junto ao INSS a
concessão de aposentadoria por invalidez (atualmente chamada de “aposentadoria
por incapacidade permanente”). A autarquia previdenciária, contudo, indeferiu o
benefício.
Diante disso, João ajuizou ação
contra o INSS afirmando que a recusa da autarquia foi indevida e que ele tem
direito ao benefício previdenciário. Pediu, portanto, a concessão da
aposentadoria.
De quem é a competência
para julgar essa causa?
Justiça Estadual.
Mas o INSS é uma autarquia
federal... não seria competência da Justiça Federal já que se está propondo
ação contra uma entidade federal?
NÃO.
De fato, em regra, as ações
propostas contra a União, suas autarquias, fundações ou empresas públicas são
de competência da Justiça Federal. Isso está previsto na primeira parte do art.
109, I, da CF/88.
Ocorre que a segunda parte desse inciso traz algumas
exceções e afirma que, se as causas relacionadas com acidente de trabalho não
devem ser julgadas pela Justiça Federal mesmo quando envolvam órgãos ou
entidades federais. Confira:
Art. 109. Aos juízes federais compete
processar e julgar:
I — as causas em que a União, entidade
autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de
autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça
Eleitoral e à Justiça do Trabalho;
Logo, as causas propostas contra
o INSS (entidade autárquica federal) são, em regra, de competência da Justiça
Federal, exceto as que envolvam acidente de trabalho.
E quem julga as causas
relacionadas a acidentes de trabalho? É sempre a Justiça Estadual?
Nem sempre. Essa é outra
armadilha:
• Se forem propostas contra o
INSS (versando sobre benefícios previdenciários): a competência será da Justiça
ESTADUAL (Súmula 501-STF). Ex: João pedindo a aposentadoria do INSS.
• Se forem propostas contra o
empregador (versando sobre a relação de trabalho): a competência será da
Justiça do TRABALHO (SV 22-STF). Ex: suponhamos que João ajuíze a ação contra a
empresa onde trabalhava pedindo indenização por danos morais em razão do
acidente que sofreu em serviço.
HONORÁRIOS PERICIAIS NO BOJO DE AÇÃO ACIDENTÁRIA (TEMA
1.044)
Necessidade de perícia e antecipação
do pagamento pelo INSS
João, na petição inicial da ação,
pediu o benefício da gratuidade da justiça (art. 98 do CPC), o que foi deferido
pelo magistrado.
O autor requereu ainda a
realização de perícia médica, para atestar que ele se encontra realmente
incapacitado para o trabalho. O juiz também deferiu.
O médico perito precisa receber seus honorários pela perícia
e o autor é beneficiário da justiça gratuita, estando dispensado de pagar esses
honorários, nos termos do art. 98, § 1º, VI, do CPC:
Art. 98. A pessoa natural ou jurídica,
brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas,
as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade
da justiça, na forma da lei.
§ 1º A gratuidade da justiça
compreende:
(...)
VI - os honorários do advogado e do
perito e a remuneração do intérprete ou do tradutor nomeado para apresentação
de versão em português de documento redigido em língua estrangeira;
Diante disso, o que fazer?
Em regra, o INSS deverá adiantar
os honorários periciais.
Essa foi a solução dada inicialmente pelo art. 8º, § 2º da
Lei nº 8.620/93:
Art. 8º (...)
§ 2º O INSS antecipará os honorários
periciais nas ações de acidente do trabalho. (obs: atualmente revogado)
A Lei nº 14.332/2022 revogou o art. 8º, § 2º da Lei nº
8.620/93. No entanto, o INSS continua com o dever de, em regra, adiantar os
honorários periciais, salvo se o autor tiver condições financeiras. Esse dever agora
encontra-se previsto nos §§ 5º e 6º do art. 1º da Lei nº 13.876/2019, inseridos
pela Lei nº 14.331/2022:
Art. 1º O ônus pelos encargos
relativos ao pagamento dos honorários periciais referentes às perícias
judiciais realizadas em ações em que o Instituto Nacional do Seguro Social
(INSS) figure como parte e se discuta a concessão de benefícios
assistenciais à pessoa com deficiência ou benefícios previdenciários
decorrentes de incapacidade laboral ficará a cargo do vencido, nos
termos da legislação processual civil, em especial do § 3º do art. 98 da Lei nº
13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).
(...)
§ 5º A partir de 2022, nas ações a que
se refere o caput deste artigo, fica invertido o ônus da antecipação da
perícia, cabendo ao réu (leia-se: INSS), qualquer que seja o rito
ou procedimento adotado, antecipar o pagamento do valor estipulado para a
realização da perícia, exceto na hipótese prevista no § 6º deste artigo
(leia-se: se o autor da ação contra o INSS tiver condições econômicas, ele
deverá adiantar os honorários do perito).
§ 6º Os autores de ações judiciais
relacionadas a benefícios assistenciais à pessoa com deficiência ou a
benefícios previdenciários decorrentes de incapacidade laboral previstas no
caput deste artigo que comprovadamente disponham de condição suficiente para
arcar com os custos de antecipação das despesas referentes às perícias médicas
judiciais deverão antecipar os custos dos encargos relativos ao pagamento dos
honorários periciais.
Se o INSS, ao final, for
sucumbente (perder a demanda):
Neste caso, ele perderá o valor
que foi adiantado a título de honorários periciais.
Em outras palavras, aquilo que
era só um “adiantamento”, torna-se definitivo.
Se o INSS, ao final, for
vencedor (se o autor ganhar a demanda):
Neste caso, pela regra do art. 82, § 2º do CPC, o autor deveria
ressarcir o INSS quanto ao valor que ele adiantou:
Art. 82 (...)
§ 2º A sentença condenará o vencido a
pagar ao vencedor as despesas que antecipou.
Entretanto, não é possível aplicar simplesmente esse
dispositivo e adotar tal solução nos casos em que o autor da ação acidentária é
beneficiário de gratuidade de justiça. Isso porque existe uma regra especial de
isenção de ônus sucumbenciais no art. 129, parágrafo único, da Lei nº 8.213/91:
Art. 129 (...)
Parágrafo único. O procedimento
judicial de que trata o inciso II deste artigo é isento do pagamento de
quaisquer custas e de verbas relativas à sucumbência.
Diante disso, o STJ concluiu que, neste caso, tal ônus recai
sobre o Estado, ante a sua obrigação constitucional de garantir assistência
jurídica integral e gratuita aos hipossuficientes, como determina o art. 5º,
LXXIV, da CF/88:
Art. 5º (...)
LXXIV - o Estado prestará assistência
jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;
A efetivação da garantia
constitucional é responsabilidade tanto da União, quanto dos Estados e do
Distrito Federal.
Nesse panorama, o INSS somente
estará obrigado ao pagamento final dos honorários periciais, em ação
acidentária, se ele for sucumbente.
Se o pedido de benefício
acidentário for julgado improcedente, ou seja, se o INSS for a parte vencedora
da demanda, os honorários periciais, adiantados pela autarquia, na Justiça
Estadual e do Distrito Federal (art. 8º, § 2º, da Lei nº 8.620/93), constituirão
despesa a cargo do Estado em que tramitou a ação.
Isso foi sedimentado na tese
fixada no Tema 1.044:
STJ. 1ª Seção. REsp 1.824.823-PR, Rel. Min. Assusete Magalhães,
Primeira Seção, por unanimidade, julgado em 21/10/2021 (Recurso Repetitivo –
Tema 1044) (Info 715).
COMPETÊNCIA PARA JULGAR O CUMPRIMENTO DE SENTENÇA PROMOVIDO
PELO INSS RELATIVO AO RESSARCIMENTO DE HONORÁRIOS PERICIAIS ANTECIPADOS NO BOJO
DE AÇÃO ACIDENTÁRIA
Voltando ao exemplo
hipotético mencionado acima:
João ajuizou ação contra o INSS
pedindo a concessão de aposentadoria por incapacidade permanente em decorrência
de acidente de trabalho (ação acidentária).
A ação foi proposta na Justiça comum
estadual (1ª Vara Cível da
Justiça Estadual).
Foi concedida gratuidade da justiça em favor do autor.
João pediu a realização de perícia médica.
O médico perito cobrou R$ 1.500,00 de honorários
periciais, o que foi homologado pelo juízo.
O INSS adiantou o valor dessa despesa.
A perícia constatou que a limitação apresentada “em
hipótese alguma pode ser considerada como acidente de trabalho”, “sendo
consequência direta e exclusiva de acidente de trânsito anterior, sem relação
com o trabalho”.
Embasado nessas conclusões médicas, o Juízo estadual (1ª
Vara Cível da Justiça Estadual) julgou improcedente o pedido autoral.
Cumprimento de sentença pelo INSS
Diante do cenário acima, o INSS requereu, na 2ª Vara da Fazenda Pública da Justiça
Estadual, o início de cumprimento de sentença.
O objetivo do INSS era o de ser ressarcido pelo valor dos
honorários periciais que ele havia adiantado (R$ 1.500,00). De quem o INSS
cobrou o valor? Do Estado-membro.
Como João, o autor sucumbente, foi beneficiário da
assistência judiciária gratuita e a demanda tramitou perante o foro da Justiça
Estadual, o INSS indicou como executado o Estado do Mato Grosso do Sul.
A autarquia previdenciária cobrou do Estado-membro com
base no que o STJ decidiu no Tema 1.044 (acima estudado).
Conflito de competência
O Juízo da 2ª Vara da Fazenda Pública entendeu que era incompetente
para o processamento do cumprimento de sentença. O raciocínio do magistrado foi
o seguinte:
• no cumprimento de sentença, não se está mais discutindo
prestação previdenciária decorrente de acidente de trabalho;
• o que se está cobrando neste cumprimento de sentença é
o ressarcimento de honorários periciais;
• logo, a situação não se enquadra na exceção prevista na
parte final do inciso I do art. 109, da CF/88 (“… exceto as de falência, as
de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do
Trabalho”);
• a presença do INSS, autarquia federal, na lide, faz com
que a competência seja da Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da CF/88.
Diante disso, o Juízo da 2ª Vara da Fazenda Pública da
Justiça Estadual declinou da competência para a Justiça Federal.
O processo foi distribuído para a 3ª Vara Federal de Campo
Grande (MS).
O Juiz Federal, ao receber os autos, discordou das
conclusões do Juízo estadual.
Argumentou que “ainda que o exequente seja autarquia
federal — o que, em regra, atrairia a competência para a Justiça Federal —, a
fase cognitiva do processo tramitou perante a Justiça Estadual, por força da
exceção constante no art. 109, I da CF, dada a natureza acidentária da causa”,
de modo que “a competência estadual, para julgar demandas em que o INSS é
parte, não se esgota na fase cognitiva do processo, devendo estender-se,
também, para a fase de cumprimento de sentença”.
Suscitou, por essas conclusões, conflito de
competência perante o STJ.
Como o STJ resolveu o conflito de competência? De
quem é a competência neste nosso exemplo?
2ª Vara da Fazenda Pública da Justiça Estadual.
O STJ baseou sua decisão nos arts. 516 e 43 do CPC.
O art. 516 do CPC prevê que o cumprimento de sentença deve,
em regra, tramitar perante o juízo que decidiu a causa. Veja:
Art. 516. O cumprimento da
sentença efetuar-se-á perante:
I – os tribunais, nas causas de
sua competência originária;
II – o juízo que decidiu a causa
no primeiro grau de jurisdição;
III – o juízo cível competente,
quando se tratar de sentença penal condenatória, de sentença arbitral, de
sentença estrangeira ou de acórdão proferido pelo Tribunal Marítimo.
Parágrafo único. Nas hipóteses
dos incisos II e III, o exequente poderá optar pelo juízo do atual domicílio do
executado, pelo juízo do local onde se encontrem os bens sujeitos à execução ou
pelo juízo do local onde deva ser executada a obrigação de fazer ou de não
fazer, casos em que a remessa dos autos do processo será solicitada ao juízo de
origem.
Essa regra
geral de competência para os títulos judiciais decorre do sincretismo
processual, ou seja, da ideia segundo a qual o reconhecimento do direito e
a sua efetivação ocorrem no mesmo processo, diferindo-se apenas por fases.
Para a solução do caso, deve ser considerado, ainda, o
princípio da perpetuatio jurisdictionis, segundo o qual são
“irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente,
salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta
(art. 43 do CPC)”:
Art. 43. Determina-se a
competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo
irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas
posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a
competência absoluta.
Assim, em regra, o juízo que
formou o título executivo é o competente para executá-lo, estando as exceções
previstas no próprio artigo de lei, de modo que somente não serão executados
perante o juízo que processou a ação os títulos formados a partir de sentença
penal condenatória, de sentença arbitral, de sentença estrangeira ou de acórdão
proferido pelo Tribunal Marítimo ou, ainda, nos casos em que os bens sujeitos à
constrição judicial se encontrarem em foro diverso ou se diverso for o foro
atual do domicílio do executado.
E, no caso em discussão,
observa-se que não se enquadra em nenhuma das situações que excepcionam a regra
contida no art. 516, II, do CPC, porquanto a exequente pretende efetivar o
direito à percepção dos honorários periciais antecipados na lide, em razão de o
vencido ser beneficiário da justiça gratuita.
Nesse mesmo sentido, o STJ vem
reconhecendo a competência do Juízo Estadual para o processamento e julgamento
do cumprimento de sentença promovido pelo INSS, relativo ao ressarcimento de
honorários periciais antecipados no bojo de ação acidentária, nos seguintes
julgados: CC n. 186.830/MS, relator Ministro Herman Benjamin, DJe de 12/4/2022;
CC n. 186.831/MS, relator Ministro Manoel Erhardt (Desembargador Federal
convocado do TRF/5ª Região), DJe de 31/3/2022; CC n. 186.837/MS, relator
Ministro Benedito Gonçalves, DJe de 28/3/2022; CC n. 186.666/MS, relator
Ministro Francisco Falcão, DJe de 18/3/2022, entre outros.
Dessa forma, deve ser declarado
competente para o processamento e julgamento do feito, no caso, o Juízo
Estadual, ora suscitado.
Em suma:
Compete ao Juízo Estadual o processamento e
julgamento do cumprimento de sentença promovido pelo INSS relativo ao
ressarcimento de honorários periciais antecipados no bojo de ação
acidentária.
STJ. 1ª Seção.
CC 191.185-MS, Rel. Min. Afrânio Vilela, julgado em 28/2/2024 (Info 802).