Para fins unicamente didáticos,
irei dividir a tese fixada pelo STJ em quatro partes:
PARTE 1: PRINCÍPIO DA INSIGINIFICÂNCIA: REGRA E EXCEÇÃO
O princípio da
insignificância pode ser aplicado no caso de crimes tributários e no
descaminho?
SIM. É plenamente possível que
incida o princípio da insignificância tanto nos crimes contra a ordem
tributária previstos na Lei nº 8.137/90 como também no caso do descaminho (art.
334 do CP).
O descaminho é também considerado
um crime contra a ordem tributária, apesar de estar previsto no art. 334 do
Código Penal e não na Lei nº 8.137/90.
Existe algum limite máximo
de valor para que possa ser aplicado o princípio da insignificância nos crimes
tributários?
SIM. A jurisprudência criou a
tese de que nos crimes tributários, para decidir se incide ou não o princípio
da insignificância, será necessário analisar, no caso concreto, o valor dos
tributos que deixaram de ser pagos.
E qual é, então, o valor
máximo considerado insignificante no caso de crimes tributários?
R$ 20 mil.
Assim, se o montante do tributo
que deixou de ser pago for igual ou inferior a R$ 20 mil, é possível, em tese,
aplicar o princípio da insignificância. Nesse sentido:
Incide o princípio da insignificância aos crimes tributários
federais e de descaminho quando o débito tributário verificado não ultrapassar
o limite de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), a teor do disposto no art. 20 da
Lei n. 10.522/2002, com as atualizações efetivadas pelas Portarias n. 75 e 130,
ambas do Ministério da Fazenda.
STJ. 3ª Seção. REsp 1.709.029/MG, Rel. Min. Sebastião Reis
Júnior, julgado em 28/02/2018 (Recurso Repetitivo – Tema 157).
Qual é o parâmetro para se
adotar esse valor?
Esse valor foi fixado pela
jurisprudência tendo como base a Portaria MF nº 75, de 29/03/2012, na qual o
Ministro da Fazenda determinou, em seu art. 1º, inciso II, “o não ajuizamento
de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado
seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais).”
Em outros termos, essa Portaria
determina que, até o valor de 20 mil reais, os débitos inscritos como Dívida
Ativa da União não serão executados.
Com base nisso, a jurisprudência
construiu o seguinte raciocínio: ora, não há sentido lógico permitir que alguém
seja processado criminalmente pela falta de recolhimento de um tributo que nem
sequer será cobrado no âmbito administrativo-tributário. Se a própria “vítima”
não irá cobrar o valor, não faz sentido aplicar o direito penal contra o autor
desse fato.
Vale lembrar que o direito penal
é a ultima ratio. Se a Administração Pública entende que, em razão do
valor, não vale a pena movimentar a máquina judiciária para cobrar a quantia,
com maior razão também não se deve iniciar uma ação penal para punir o agente.
Se o agente,
reiteradamente, comete descaminho, ele poderá ser beneficiado com o princípio
da insignificância?
Regra: NÃO.
Em regra, não se aplica o
princípio da insignificância para o agente que praticou descaminho se ficar
demonstrada a sua reiteração criminosa (criminoso habitual).
Se houver reiteração da conduta
delitiva, em regra, não será possível a aplicação do princípio da
insignificância ao crime de descaminho independentemente do valor do tributo
não recolhido, ou seja, mesmo que o descaminho envolva valores inferiores a R$
20 mil.
A reiteração da conduta é uma
circunstância apta a indicar uma conduta mais reprovável e de periculosidade
social relevante, inclusive porque transmite a ideia de impunidade, reduzindo o
caráter de prevenção geral da norma penal, de modo que, caso verificada, tem-se
por afastado, ao menos, dois dos pressupostos para reconhecimento da
atipicidade material da conduta nos moldes estabelecidos pela jurisprudência, a
saber:
a) a ausência de periculosidade
social da ação; e
b) o reduzido grau de
reprovabilidade do comportamento.
Exceção: pode ser aplicado
se for socialmente recomendável.
O julgador poderá aplicar o
princípio da insignificância, mesmo havendo reiteração da conduta delitiva, se,
analisando as peculiaridades do caso concreto, entender que a medida é
socialmente recomendável.
Com efeito, é impossível
contemplar a multiplicidade de situações fáticas que podem acarretar na prática
de crime descaminho, sendo certo que, a depender das circunstâncias que
tangenciem a reiteração da conduta, o julgador pode compreender que o reconhecimento
da atipicidade material é a medida socialmente recomendável.
Nesse sentido:
A reiteração criminosa inviabiliza a aplicação do princípio da
insignificância nos crimes de descaminho, ressalvada a possibilidade de, no
caso concreto, as instâncias ordinárias verificarem que a medida é socialmente
recomendável.
STJ. 3ª Seção. EREsp
1.217.514-RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 9/12/2015 (Info
575).
Conclusão da primeira parte
da tese fixada no Tema 1.218:
A reiteração da conduta delitiva obsta a aplicação do
princípio da insignificância ao crime de descaminho - independentemente do
valor do tributo não recolhido -, ressalvada a possibilidade de, no caso
concreto, se concluir que a medida é socialmente recomendável.
STJ. 3ª
Seção. REsps 2.083.701-SP, 2.091.651-SP e 2.091.652-MS, Rel. Min. Sebastião
Reis Júnior, julgado em 28/2/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 1218) (Info 802).
PARTE 2: A CONTUMÁCIA PODE SER VERIFICADA A PARTIR DE
PROCEDIMENTOS FISCAIS E PENAIS, AINDA QUE NÃO DEFINITIVOS (AINDA QUE
PENDENDENTES)
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Em 25/05/2017, durante
fiscalização de rotina na rodovia interestadual, João foi preso em flagrante
transportando mercadorias de origem estrangeira introduzidas clandestinamente
no território nacional.
Os impostos devidos pela entrada
dos referidos bens no país totalizavam o valor de R$ 5 mil.
João foi denunciado pelo crime de descaminho previsto no art.
334 do Código Penal:
Art. 334. Iludir, no todo ou em
parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou
pelo consumo de mercadoria.
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4
(quatro) anos.
A defesa pediu a aplicação do
princípio da insignificância.
O juiz, contudo, negou o pleito argumentando
que João se estava diante de uma situação de reiteração da conduta delitiva. Isso
porque João já tinha sido preso em quatro oportunidades distintas praticando
descaminho: em 2010, 2013, 2014 e 2016.
Logo, para o magistrado, houve
uma contumácia, isto é, a repetição de uma conduta criminosa.
O réu recorreu alegando que
em nenhum desses quatro casos mencionados (2010, 2013, 2014 e 2016) houve
condenação criminal transitada em julgado. Logo, esses episódios não poderiam
ser utilizados para se caracterizar a reiteração da conduta delitiva
(contumácia), sob pena de ofensa ao princípio da presunção de inocência. Esse
argumento foi acolhido pelo STJ?
NÃO.
Não se exige condenações
anteriores para caracterização da contumácia. Basta que tenham sido instaurados
procedimentos penais ou fiscais por descaminho. Isso já é suficiente para
configurar contumácia e impedir, em regra, a aplicação do princípio da
insignificância.
Em suma: procedimentos pendentes
de definitividade (ainda não julgados), inclusive processos administrativo-fiscais,
podem ser considerados pelo juiz para formar convicção no sentido de que o réu
é contumaz na conduta delitiva e que, portanto, não deve receber o princípio da
insignificância.
Nesse sentido:
A existência de outras ações penais, inquéritos policiais em
curso ou procedimentos administrativos fiscais, em que pese não configurarem
reincidência, denotam a habitualidade delitiva do réu e afastam, por
consectário, a incidência do princípio da insignificância.
STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 2.258.294/SP, Rel. Min. Ribeiro
Dantas, julgado em 18/4/2023.
A reiteração delitiva no crime de descaminho impede o
reconhecimento do crime de bagatela. Além disso, apesar de não configurar
reincidência, a existência de outras ações penais, inquéritos policiais em
curso ou procedimentos administrativos fiscais é suficiente para caracterizar a
habitualidade delitiva e, consequentemente, afastar a incidência do princípio
da insignificância.
STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp 2.337.741/PR, Rel. Min. Antonio
Saldanha Palheiro, julgado em 5/9/2023.
O STF já decidiu que, em se tratando de crime de descaminho,
deve ser considerada a soma dos débitos consolidados para a análise do
preenchimento do requisito objetivo necessário à aplicação do princípio da
insignificância. Hipótese em que a notícia de que o ora agravante responde a
outros procedimentos administrativos fiscais inviabiliza, neste habeas corpus,
o pronto reconhecimento da atipicidade penal.
STF. 1ª Turma. HC 167235 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado
em 10/05/2019.
Crime de descaminho. Infrator contumaz. Existência de diversos
procedimentos administrativos fiscais em seu desfavor. Princípio da
insignificância. Não aplicabilidade, não obstante a expressividade financeira
do
tributo seja inferior ao patamar estipulado pelo art. 20 da Lei
nº 10.522/02 (atualizado pelas Portarias nºs 75 e 130/12 do Ministério da
Fazenda).
STF. 2ª Turma.
ARE 1448073 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 25/09/2023.
Conclusão da segunda parte
da tese fixada no Tema 1.218:
A contumácia pode ser aferida a partir de
procedimentos penais e fiscais pendentes de definitividade.
STJ. 3ª
Seção. REsps 2.083.701-SP, 2.091.651-SP e 2.091.652-MS, Rel. Min. Sebastião
Reis Júnior, julgado em 28/2/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 1218) (Info 802).
PARTE 3: NÃO HÁ UM LAPSO TEMPORAL MÁXIMO PARA VALORAÇÃO
DESSES PROCEDIMENTOS (NÃO SE APLICA O PRAZO DE 5 ANOS DO ART. 64, I, DO CP)
Imagine outra situação
hipotética:
Em 2024, durante fiscalização de
rotina na rodovia interestadual, Pedro foi preso em flagrante transportando
mercadorias de origem estrangeira introduzidas clandestinamente no território
nacional.
Os impostos devidos pela entrada
dos referidos bens no país totalizavam o valor de R$ 7 mil.
Pedro foi denunciado pelo crime de
descaminho previsto no art. 334 do Código Penal.
A defesa pediu a aplicação do
princípio da insignificância.
O juiz, contudo, negou o pleito
argumentando que Pedro se estava diante de uma situação de reiteração da
conduta delitiva. Isso porque o réu já tinha sido condenado por descaminho em 2010
e 2015.
Logo, para o magistrado, houve
uma contumácia, isto é, a repetição da conduta criminosa.
Pedro recorreu alegando que ele
foi condenado realmente nessas duas oportunidades. No entanto, já cumpriu pena,
tendo a execução penal sido extinta em 2018. Logo, já se passaram mais de 5
anos cumprimento da pena.
Desse modo, essas condenações não poderiam ser utilizadas para
mais nada, por força do art. 64, I, do Código Penal:
Art. 64. Para efeito de reincidência:
I - não prevalece a condenação
anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração
posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado
o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer
revogação;
(...)
Esse argumento de Pedro foi
acolhido pelo STJ?
NÃO.
O simples fato de ter
transcorrido mais de 5 anos do cumprimento ou extinção da pena não é motivo
suficiente para se ignorar essa condenação. Ela pode sim continuar sendo
utilizada para afastar o princípio da insignificância.
Isso porque o STJ adota o chamado
“sistema da perpetuidade” segundo o qual, mesmo que ultrapassado o lapso
temporal de 5 anos mencionado no art. 64, I, do CP, a condenação anterior
transitada em julgado é considerada como maus antecedentes.
No mesmo sentido é o entendimento
do STF:
Os maus antecedentes não se submetem ao período depurador de
cinco anos, previsto no art. 64, I, do CP, aplicável apenas à reincidência.
STF. Plenário. RE 593818/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado
em 17/8/2020.
Vale ressaltar, contudo, que,
apesar de não haver uma desconsideração obrigatória de condenações cumpridas há
mais de 5 anos, o STJ afirmou que, no caso concreto, o juiz pode afastá-las,
com base nos princípios da proporcionalidade e razoabilidade. O magistrado deve
avaliar, portanto, se a conduta anterior é contemporânea o suficiente para
denotar que o agente ativo é contumaz na prática delitiva.
Desse modo, como terceira
conclusão, tem-se que:
Para a análise da contumácia pode ser aferida a
partir de procedimentos penais e fiscais pendentes de definitividade, sendo
inaplicável o prazo previsto no art. 64, I, do CP, incumbindo ao julgador
avaliar o lapso temporal transcorrido desde o último evento delituoso à luz dos
princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
STJ. 3ª
Seção. REsps 2.083.701-SP, 2.091.651-SP e 2.091.652-MS, Rel. Min. Sebastião
Reis Júnior, julgado em 28/2/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 1218) (Info 802).
A contumácia pode ser aferida a
partir de procedimentos penais e fiscais pendentes de definitividade, sendo
inaplicável o prazo previsto no art. 64, I, do CP, incumbindo ao julgador
avaliar o lapso temporal transcorrido desde o último evento delituoso à luz dos
princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
PARTE 4: EM CASO DE REITERAÇÃO, O VALOR DO TRIBUTO NÃO
RECOLHIDO NÃO POSSUI RELEVÂNCIA PARA FINS DE CONCLUSÃO NO SENTIDO DA
ATIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA
Se o agente é contumaz na prática
delitiva, não interesse perquirir o valor do tributo não recolhido para fins de
aplicação do princípio insignificância. Isso porque, como vimos, a contumácia,
em regra, indica, por si só, uma conduta mais gravosa e de periculosidade
social relevante, de modo que a reiteração, em regra, acaba por afastar os
requisitos necessários para o reconhecimento da atipicidade material da
conduta.
Nesse sentido:
O princípio da insignificância não tem aplicabilidade em casos
de reiteração da conduta delitiva, porquanto tal circunstância denota maior
grau de reprovabilidade do comportamento lesivo, sendo desnecessário perquirir
o valor dos tributos iludidos pelo acusado.
STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 2.258.294/SP, Rel. Min. Ribeiro
Dantas, julgado em 18/4/2023.
Admitir a incidência do princípio
da insignificância na hipótese de contumácia delitiva com base na totalidade do
tributo não recolhido (inferior a 20 mil reais), teria o efeito deletério de
estimular uma “economia do crime”, na medida em que acabaria por criar uma
“cota” de imunidade penal para a prática de sucessivas condutas delituosas.
Tese fixada:
A reiteração da conduta delitiva obsta a aplicação do
princípio da insignificância ao crime de descaminho - independentemente do
valor do tributo não recolhido -, ressalvada a possibilidade de, no caso
concreto, se concluir que a medida é socialmente recomendável. A contumácia
pode ser aferida a partir de procedimentos penais e fiscais pendentes de
definitividade, sendo inaplicável o prazo previsto no art. 64, I, do CP,
incumbindo ao julgador avaliar o lapso temporal transcorrido desde o último
evento delituoso à luz dos princípios da proporcionalidade e
razoabilidade.
STJ. 3ª Seção. REsps
2.083.701-SP, 2.091.651-SP e 2.091.652-MS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior,
julgado em 28/2/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 1218) (Info 802).