sábado, 16 de março de 2024
A apreensão e perícia da substância entorpecente é imprescindível para a comprovação da materialidade do crime de tráfico de drogas? Ou o tráfico de drogas pode ser comprovado com testemunhas e interceptação telefônica?
Imagine a seguinte situação hipotética:
A polícia investigava há alguns
meses João, Pedro e Tiago, suspeitos de praticarem tráfico de drogas na região.
Havia, inclusive, o depoimento de pessoas que afirmaram que adquiram drogas com
o grupo.
Com base nesses elementos
informativos, a polícia requereu a interceptação telefônica dos suspeitos, o
que foi deferido.
Foram então captadas conversas
que indicavam a existência de negociações de drogas entre os membros do grupo,
com detalhes sobre venda, compra e oferta de substâncias ilícitas a terceiros.
O juiz também autorizou a
realização de busca e apreensão nas residências dos suspeitos. Apesar disso,
não foram encontradas drogas no local.
Com base nos depoimentos dos
compradores e nas conversas telefônicas, o Ministério Público estadual
denunciou João, Pedro e Tiago por tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2006).
Em resposta à acusação, dentre
outros argumentos, os réus alegaram não haver provas da materialidade dos
crimes, pois não foram apreendidas quaisquer substâncias entorpecentes com os
acusados e, por consequência, não havia laudo de constatação nem exame químico-toxicológico
nos autos.
O juiz não acolheu os argumentos
das defesas e condenou os acusados.
O Tribunal de Justiça, contudo,
deu provimento ao recurso da defesa e absolveu os réus por ausência de
materialidade. Como não houve a apreensão de entorpecentes com os acusados, não
houve também laudo de exame toxicológico, definitivo ou preliminar, de forma
que não se comprovou a materialidade do delito de tráfico de drogas.
Inconformado, o Ministério
Público interpôs recurso especial argumentando ser possível a comprovação da
materialidade do delito de tráfico de drogas através de diálogos extraídos de
aparelhos celulares e de provas orais produzidas acerca da comercialização de
entorpecentes.
O STJ concordou com os
argumentos do Ministério Público?
NÃO.
Acerca da matéria, a Terceira
Seção do STJ, no julgamento do HC 350.996/RJ, DJe de 29/8/2016, reconheceu que
o laudo toxicológico definitivo é imprescindível para a comprovação da
materialidade dos delitos envolvendo entorpecentes, sem o qual é forçosa a
absolvição do acusado, admitindo-se, no entanto, em situações excepcionais, a
possibilidade de demonstração da materialidade do crime de tráfico de drogas
por laudo de constatação provisório, desde que tal documento permita grau de
certeza idêntico ao do laudo definitivo e haja sido elaborado por perito
oficial, em procedimento e conclusões equivalentes. Confira trechos da ementa:
(...) 2. É imprescindível, para a condenação pelo crime de
tráfico de drogas, que seja anexado o laudo toxicológico definitivo, concluindo
que a falta desse laudo conduz à absolvição do acusado por falta de
materialidade delitiva. Precedentes.
3. Somente em situação excepcional poderá a materialidade do
crime de drogas ser suportada por laudo de constatação, quando permita grau de
certeza idêntico ao do laudo definitivo, pois elaborado por perito oficial, em
procedimento e com conclusões equivalentes.
4. A prova testemunhal não tem o condão de suprir a ausência do
laudo definitivo, na medida em que somente tem relevância no que diz respeito à
autoria e não à materialidade do delito, daí a imprescindibilidade. (...)
STJ. 3ª Seção. HC 350.996/RJ, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado
em 24/8/2016.
Em sentido semelhante, a Terceira
Seção do STJ, no julgamento do ERESp 1.544.057/RJ, pacificou o entendimento de
que o laudo toxicológico definitivo, em regra, é imprescindível à comprovação
da materialidade dos delitos envolvendo entorpecentes.
Ausente o referido exame, deve-se
absolver o acusado, ressalvada, no entanto, em situações excepcionais, a
possibilidade de aferição da materialidade do delito por laudo de constatação
provisório, desde que este tenha sido elaborado por perito oficial e permita
grau de certeza idêntico ao do laudo definitivo:
(...) 1. Nos casos em que ocorre a apreensão do entorpecente, o
laudo toxicológico definitivo é imprescindível à demonstração da materialidade
delitiva do delito e, nesse sentido, tem a natureza jurídica de prova, não
podendo ser confundido com mera nulidade, que corresponde a sanção cominada
pelo ordenamento jurídico ao ato praticado em desrespeito a formalidades
legais. (...)
2. Isso, no entanto, não elide a possibilidade de que, em
situação excepcional, a comprovação da materialidade do crime de drogas possa
ser efetuada pelo próprio laudo de constatação provisório, quando ele permita
grau de certeza idêntico ao do laudo definitivo, pois elaborado por perito
oficial, em procedimento e com conclusões equivalentes. Isso porque, a depender
do grau de complexidade e de novidade da droga apreendida, sua identificação
precisa como entorpecente pode exigir, ou não, a realização de exame mais
complexo que somente é efetuado no laudo definitivo.
3. Os testes toxicológicos preliminares, além de efetuarem
constatações com base em observações sensoriais (visuais, olfativas e táteis)
que comparam o material apreendido com drogas mais conhecidas, também fazem uso
de testes químicos pré-fabricados também chamados “narcotestes” e são capazes
de identificar princípios ativos existentes em uma gama de narcóticos já
conhecidos e mais comercializados.
4. Nesse sentido, o laudo preliminar de constatação, assinado
por perito criminal, identificando o material apreendido como cocaína em pó,
entorpecente identificável com facilidade mesmo por narcotestes pré-fabricados,
constitui uma das exceções em que a materialidade do delito pode ser provada
apenas com base no laudo preliminar de constatação.
5. De outro lado, muito embora a prova testemunhal e a confissão
isoladas ou em conjunto não se prestem a comprovar, por si sós, a materialidade
do delito, quando aliadas ao laudo toxicológico preliminar realizado nos moldes
aqui previstos, são capazes não só de demonstrar a autoria como também de
reforçar a evidência da materialidade do delito.
(...)
STJ. 3ª Seção. EREsp 1.544.057/RJ, Rel. Min. Reynaldo Soares da
Fonseca, DJe 9/11/2016.
Na oportunidade, foi ressalvada a
possibilidade de se manter o édito condenatório quando a prova da materialidade
delitiva estiver amparada em laudo preliminar, dotado de certeza idêntica à do
definitivo, certificado por perito oficial e em procedimento equivalente, que
possa atestar, com certo grau de certeza, a existência dos elementos físicos e
químicos que qualifiquem a substância como droga, nos termos previstos na
Portaria n. 344/1998, da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da
Saúde.
Pelo que se infere dos referidos
precedentes, em um ou outro caso, ou seja, com laudo toxicológico definitivo
ou, de forma excepcionalíssima, com laudo de constatação provisório, a apreensão de drogas se revela
imprescindível para a condenação do acusado pela prática do crime de tráfico de
drogas, não se prestando os demais elementos de prova, por si sós, ainda que em
conjunto, à comprovação da materialidade do delito.
Tal entendimento foi recentemente
consolidado pela Terceira Seção desta Corte Superior, na apreciação do HC
686.312/MS, DJe de 19/4/2023, oportunidade em que se assentou que “para a
perfectibilização do tipo previsto no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006
[...] é necessário que a substância seja efetivamente apreendida e periciada,
para que se possa identificar, com grau de certeza, qual é o tipo de substância
ou produto e se ela(e) efetivamente encontra-se prevista(o) na Portaria n.
344/1998 da Anvisa”. Veja relevantes informações sobre esse precedente:
Para a condenação de alguém pela prática do crime de tráfico de
drogas, é necessária a apreensão de drogas e a consequente elaboração ao menos
de laudo preliminar, sob pena de se impor a absolvição do réu, por ausência de
provas acerca da materialidade do delito.
Nem mesmo em situação excepcional, a prova testemunhal ou a
confissão do acusado, por exemplo, poderiam ser reputadas como elementos
probatórios aptos a suprir a ausência do laudo toxicológico, seja ele
definitivo, seja ele provisório assinado por perito e com o mesmo grau de
certeza presente em um laudo definitivo.
Vale ressaltar que, para a caracterização do crime de tráfico de
drogas, não é necessária a apreensão de droga em poder de cada um dos acusados;
basta que, evidenciado o liame subjetivo entre os agentes, haja a apreensão de
drogas com apenas um deles para que esteja evidenciada, ao menos em tese, a
prática do delito em questão.
Assim, a mera ausência de apreensão de drogas na posse direta do
agente não afasta a materialidade do delito de tráfico quando estiver delineada
a sua ligação com outros integrantes da mesma organização criminosa que
mantinham a guarda dos estupefacientes destinados ao comércio proscrito.
No caso concreto, embora os depoimentos testemunhais e as provas
oriundas das interceptações telefônicas judicialmente autorizadas tenham
evidenciado que a paciente e os demais corréus supostamente adquiriam, vendiam
e ofereciam ‘drogas’ a terceiros - tais como maconha, cocaína e crack -, não há
como subsistir a condenação pela prática do delito descrito no art. 33, caput,
da Lei nº 11.343/2006, se, em nenhum momento, houve a apreensão de qualquer
substância entorpecente, seja em poder dela, seja em poder dos corréus ou de
terceiros não identificados.
Apesar das diversas diligências empreendidas pela acusação, que
envolveram o monitoramento dos acusados, a realização de interceptações
telefônicas, a oitiva de testemunhas (depoimentos de policiais) etc., não houve
a apreensão de droga, pressuposto da materialidade delitiva. Assim, mesmo sendo
possível extrair dos autos diversas tratativas de comercialização de
entorpecentes pelos acusados, essas provas podem caracterizar o crime de
associação para o tráfico de drogas, mas não o delito de tráfico em si.
Ao funcionar como regra
que disciplina a atividade probatória, a presunção de não culpabilidade
preserva a liberdade e a inocência do acusado contra juízos baseados em mera
probabilidade, determinando que somente a certeza pode lastrear uma condenação.
A presunção de inocência, sob tal perspectiva, impõe ao titular
da ação penal todo o ônus de provar a acusação, quer a parte objecti, quer a
parte subjecti. Não basta, portanto, atribuir a alguém conduta cuja compreensão
e subsunção jurídico-normativa, em sua dinâmica subjetiva - o ânimo a mover a
conduta -, decorre de avaliação pessoal de agentes do Estado, e não dos fatos e
das circunstâncias objetivamente demonstradas.
STJ. 3ª Seção. HC 686.312/MS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior,
relator para acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 12/4/2023.
Voltando ao caso concreto:
Embora as provas oriundas das
interceptações telefônicas judicialmente autorizadas e a prova oral tenham
evidenciado que os réus supostamente adquiriam, vendiam e ofereciam “drogas” a
terceiros, não havia mesmo como subsistir, como entendeu o Tribunal de Justiça,
a condenação pela prática do delito descrito no art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006,
na medida em que, em nenhum momento, houve a apreensão de qualquer substância
entorpecente em poder dos corréus ou de terceiros não identificados.
Em suma:
A apreensão e perícia da substância entorpecente é
imprescindível para a comprovação da materialidade do crime de tráfico de
drogas.
STJ. 5ª Turma. REsp 2.107.251-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca,
julgado em 20/2/2024 (Info 801).