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segunda-feira, 11 de março de 2024

A anotação da alienação fiduciária no CRV não é necessária para que o Banco ingresse com ação de busca e apreensão do automóvel

A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DEVE SER ANOTADA NO CERTIFICADO DE REGISTRO DO VEÍCULO

Alienação fiduciária

“A alienação fiduciária em garantia é um contrato instrumental em que uma das partes, em confiança, aliena a outra a propriedade de um determinado bem, ficando esta parte (uma instituição financeira, em regra) obrigada a devolver àquela o bem que lhe foi alienado quando verificada a ocorrência de determinado fato.” (RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 827).

 

Alienação fiduciária de veículos

A espécie mais comum de alienação fiduciária é a de automóveis.

Ex: Antônio quer comprar um carro de R$ 70 mil, mas somente possui R$ 30 mil. Antônio procura o Banco “X”, que celebra com ele contrato de financiamento com garantia de alienação fiduciária.

Assim, o Banco “X” empresta R$ 40 mil a Antônio, que compra o veículo. Como garantia do pagamento do empréstimo, a propriedade resolúvel do carro ficará com o Banco “X” e a posse direta com Antônio.

Em outras palavras, Antônio ficará andando com o carro, mas, no documento, a propriedade do automóvel é do Banco “X” (constará “alienado fiduciariamente ao Banco X”). Diz-se que o banco tem a propriedade resolúvel porque, uma vez pago o empréstimo, a propriedade do carro pelo banco “resolve-se” (acaba) e o automóvel passa a pertencer a Antônio.

 

Registro do contrato de alienação fiduciária no DETRAN e anotação da informação no CRV

CRV (Certificado de Registro de Veículos) é um documento expedido pelo DETRAN no qual consta quem é o proprietário do veículo.

A legislação determina que, quando for realizada a alienação fiduciária de um veículo, o contrato deverá ser registrado no DETRAN e esta informação constará no CRV do automóvel.

No CRV, existe um campo chamado “observações” e lá constará uma frase mais ou menos com os seguintes dizeres: “AL.FID./BANCO XXX”, que significa alienado fiduciariamente para o banco XXX.

Essa informação é uma garantia tanto para o banco, como também para terceiros que eventualmente se interessem por comprar aquele carro. Isso porque, ao consultarem o documento do veículo (CRV), verão que existe esse gravame e que a pessoa que está na posse direta do veículo não possui ainda a propriedade plena do bem, já que aquele automóvel foi oferecido como garantia de uma dívida. Somente após pagar todo o débito é que o possuidor terá a propriedade plena.

 

Onde consta a obrigatoriedade de que o contrato de alienação fiduciária seja registrado no DETRAN?

É o Código Civil que determina que o contrato de alienação fiduciária seja registrado no DETRAN e que essa informação seja anotada no CRV. Confira:

Art. 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor.

§ 1º Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento (explico: DETRAN), fazendo-se a anotação no certificado de registro (esclareço: CRV).

(...)

 

O Código de Trânsito Brasileiro também traz essa exigência:

Art. 129-B. O registro de contratos de garantias de alienação fiduciária em operações financeiras, consórcio, arrendamento mercantil, reserva de domínio ou penhor será realizado nos órgãos ou entidades executivos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal, em observância ao disposto no § 1º do art. 1.361 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) , e na Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais). (Incluído pela Lei nº 14.071, de 2020)

Parágrafo único. O registro previsto no caput deste artigo será executado por empresas registradoras de contrato especializadas, na modalidade de credenciamento pelos órgãos executivos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal, observado o disposto no inciso III do parágrafo único do art. 79 da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. (Incluído dada pela Lei nº 14.599, de 2023)

 

Além de ser anotado no CRV, é necessário (obrigatório) que a alienação fiduciária seja registrada no cartório de Registro de Títulos e Documentos (RTD)?

NÃO. É desnecessário o registro do contrato de alienação fiduciária de veículos em cartório.

Quando for realizada a alienação fiduciária de um veículo, o contrato deverá ser registrado no DETRAN e esta informação constará no CRV do automóvel.

É desnecessário o registro do contrato de alienação fiduciária de veículos em cartório.

STF. Plenário. RE 611639/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 21/10/2015 (repercussão geral).

STF. Plenário. ADI 4333/DF e ADI 4227/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgados em 21/10/2015 (Info 804).

 

A ANOTAÇÃO DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA NO CERTIFICADO DE REGISTRO DO VEÍCULO NÃO CONSTITUI REQUISITO PARA A AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO

Imagine a seguinte situação hipotética:

Antônio queria comprar o carro de João (Honda Civic).

O automóvel custava R$ 70 mil, mas Antônio somente possuía R$ 30 mil.

Diante disso, Antônio procurou o Banco “X”, que celebrou com ele contrato de financiamento com garantia de alienação fiduciária.

Assim, o Banco “X” emprestou R$ 40 mil a Antônio, que comprou o veículo de João.

Antônio se comprometeu a pagar o empréstimo à instituição financeira em 48 parcelas mensais.

Ocorre que nenhuma das partes providenciou para que a mudança de propriedade do veículo e o registro do gravame de alienação fiduciária (em favor do Banco “X”) fossem anotados no órgão de trânsito. Não foi feita a anotação da alienação fiduciária no CRV. Em palavras mais simples, o automóvel, nos registros do DETRAN, continuou em nome de João, antigo proprietário, estranho à relação contratual firmada entre Antônio e o Banco “X”.

 

Inadimplemento

Seis meses depois, Antônio enfrentou dificuldades financeiras e parou de pagar o financiamento.

O Banco, cumprindo aquilo que exige o art. 3º do DL 911/69, fez a notificação extrajudicial de Antônio, comprovando a mora:

Art. 3º O proprietário fiduciário ou credor poderá, desde que comprovada a mora, na forma estabelecida pelo § 2º do art. 2º, ou o inadimplemento, requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida liminarmente, podendo ser apreciada em plantão judiciário.

 

Essa notificação é indispensável para que o credor possa ajuizar ação de busca e apreensão. Confira:

Súmula 72-STJ: A comprovação da mora é imprescindível à busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente.

 

Ação de busca e apreensão

Depois de fazer a notificação extrajudicial, o Banco ajuizou ação de busca e apreensão contra Antônio, fundamentada no DL 911/69, requerendo que lhe fosse entregue o Honda Civic.

O Juiz, após dar a oportunidade de emenda, indeferiu a petição inicial e extinguiu o processo sem resolução de mérito, com base no art. 321 c/c art. 330, IV, ambos do CPC, porque a alienação fiduciária não foi anotada no certificado de registro do veículo:

Art. 321. O juiz, ao verificar que a petição inicial não preenche os requisitos dos arts. 319 e 320 ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor, no prazo de 15 (quinze) dias, a emende ou a complete, indicando com precisão o que deve ser corrigido ou completado.

Parágrafo único. Se o autor não cumprir a diligência, o juiz indeferirá a petição inicial.

 

Art. 330. A petição inicial será indeferida quando:

(...)

IV - não atendidas as prescrições dos arts. 106 e 321.

 

O STJ concordou com a decisão do magistrado? O registro da alienação fiduciária no órgão de trânsito é requisito para o ajuizamento da ação de busca e apreensão? O fato de o veículo estar registrado em nome de terceiro (em nosso exemplo, João) constitui óbice ao prosseguimento da demanda?

NÃO.

A ação de busca e apreensão é uma ação autônoma de conhecimento (art. 3º, §8º, do Decreto-Lei n. 911/1969) que tem por finalidade a retomada do bem pelo credor fiduciário:

Art. 3º O proprietário fiduciário ou credor poderá, desde que comprovada a mora, na forma estabelecida pelo § 2º do art. 2º, ou o inadimplemento, requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida liminarmente, podendo ser apreciada em plantão judiciário.

(...)

§ 8º A busca e apreensão prevista no presente artigo constitui processo autônomo e independente de qualquer procedimento posterior.

 

São documentos indispensáveis ao ajuizamento da ação de busca e apreensão:

1) a comprovação da mora do devedor fiduciante (Súmula 72 do STJ); e

2) o contrato escrito celebrado entre as partes.

 

Além disso, se o bem objeto da alienação fiduciária estiver registrado em nome de terceiro (como no caso concreto), a petição inicial deverá ser instruída com prova de que a posse do bem foi transferida ao devedor. Isso porque, a alienação fiduciária somente tem eficácia entre as partes contratantes (comprador e financiador) a partir do momento em que o devedor se torna proprietário do bem, o que ocorre com a tradição (arts. 1.267 e 1.361, § 3º, do CC).

 

Como se comprova esse item 3 acima?

Isso pode ser feito por meio da juntada do contrato de compra e venda ajustado entre o devedor fiduciante e o vendedor, da comprovação de que o vendedor participou do contrato de financiamento como interveniente anuente, de comunicação de venda ou de outro elemento legal ou moralmente legítimo. Também será possível a designação, pelo juiz, de audiência de justificação prévia.

 

E a anotação da alienação fiduciária no CRV?

A anotação da alienação fiduciária no certificado de registro do veículo não constitui requisito para a propositura da ação de busca e apreensão, uma vez que o registro é condição de eficácia da garantia perante terceiros e não entre os contratantes.

Essa conclusão está em harmonia com o entendimento materializado na Súmula 92 do STJ:

Súmula 92-STJ: A terceiro de boa-fé não é oponível a alienação fiduciária não anotada no Certificado de Registro do veículo automotor.

 

No caso concreto, as partes celebraram contrato de financiamento de veículo com pacto acessório de alienação fiduciária, o qual não foi registrado no órgão de trânsito competente, o que, todavia, não é exigido para ação de busca e apreensão.

 

Momento da eficácia perante as partes contratantes

Especificamente em relação aos contratantes (comprador e financiador), a alienação fiduciária tem eficácia a partir do momento em que o devedor se torna proprietário do bem, o que ocorre com a tradição (art. 1.267 do CC). Desse modo, se a posse do bem não passou ao devedor (se não houve tradição), a alienação fiduciária não terá eficácia nem mesmo entre as partes.

 

Em suma:

A anotação da alienação fiduciária no certificado de registro do veículo não constitui requisito para a propositura da ação de busca e apreensão, uma vez que o registro é condição de eficácia da garantia perante terceiros e não entre os contratantes. 

STJ. 3ª Turma. REsp 2.095.740-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 6/2/2024 (Info 800).

 

DOD Plus – julgados relacionados

O STJ já havia decidido de forma semelhante em caso de alienação fiduciária de bens imóveis:

A ausência de registro do contrato que serve de título à propriedade fiduciária no Registro de Imóveis não retira a validade do ajuste entre os contratantes; no entanto, para fazer a alienação extrajudicial do imóvel é necessária a efetivação do registro

A ausência de registro do contrato que serve de título à propriedade fiduciária no Registro de Imóveis não retira a eficácia do ajuste entre os contratantes. Ainda que o registro do contrato no competente Registro de Imóveis seja imprescindível à constituição da propriedade fiduciária de coisa imóvel, nos termos do art. 23 da Lei nº 9.514/97, sua ausência não retira a validade e a eficácia dos termos livre e previamente ajustados entre os contratantes, inclusive da cláusula que autoriza a alienação extrajudicial do imóvel em caso de inadimplência.

Vale ressaltar, contudo, que, para dar início à alienação extrajudicial do imóvel é, sim, imprescindível a efetivação do registro do contrato. Isso porque a constituição do devedor em mora e a eventual purgação desta se processa perante o Oficial de Registro de Imóveis, nos moldes do art. 26 da Lei nº 9.514/97.

STJ. 2ª Seção. EREsp 1.866.844-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 27/9/2023 (Info 789).


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