Dizer o Direito

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Leis estaduais que concedam porte de arma a agentes de segurança socioeducativos são formalmente inconstitucionais, pois violam competência privativa da União

O caso concreto foi o seguinte:

No Estado do Espírito Santo foi editada a Lei Complementar nº 1.017/2022, que conferiu porte de arma de fogo para agentes socioeducativos.

 

Agentes socioeducativos são profissionais que atuam na reeducação e reintegração social de jovens em situação de risco ou que cometeram atos infracionais. Eles trabalham em instituições voltadas para medidas socioeducativas, como centros de internação e programas de liberdade assistida.

 

Confira a redação do art. 1º dessa Lei:

Art. 1º Os Agentes Penitenciários e os Agentes Socioeducativos, ativos e inativos, gozarão das seguintes prerrogativas, sem prejuízo de outras estabelecidas em lei:

(…)

IV – porte de arma de fogo de uso permitido e de uso restrito aos Agentes Socioeducativos.

§ 1º Fica proibido o porte e o uso de armas de fogo nas dependências internas das unidades socioeducativas.

(...)

 

ADI

O Procurador-Geral da República ajuizou ADI questionando a constitucionalidade desses dispositivos.

Dentre outros argumentos, o autor alegou que a previsão é formalmente inconstitucional porque usurpa a competência da União para autorizar, fiscalizar e legislar sobre o uso de material bélico, direito penal e processual (art. 22, I e XXI, CF/88).

Além disso, sustentou que as regras para concessão de porte de arma de fogo já foram previstas pela União, que exerceu a sua competência legal quanto à matéria ao editar a Lei nº 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), que não previu os agentes do sistema socioeducativo.

 

O STF concordou com o pedido formulado? Os dispositivos impugnados são inconstitucionais?

SIM.

 

Competência da União para tratar sobre o tema

A conduta de portar arma de fogo consiste, em regra, em um crime. O ordenamento jurídico prevê, contudo, hipóteses nas quais a pessoa é autorizada a portar a arma de fogo e, portanto, nesses casos, afasta-se a ilicitude.

Com isso, facilmente conclui-se que autorizar o porte de arma de fogo afasta, em tese, uma infração penal. Logo, essa é uma matéria relacionada com direito penal.

Segundo o art. 22, I, da Constituição compete privativamente à União legislar sobre direito penal. Além disso, também compete à União estabelecer as normas gerais sobre material bélico:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;

(...)

XXI - normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação, mobilização, inatividades e pensões das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares;

 

Além disso, a CF/88 também prevê ser competência privativa da União a autorização e fiscalização da produção e comércio de material bélico (art.  21, VI, CF/88), o que lhe viabiliza definir os requisitos sobre o porte funcional de arma de fogo:

Art. 21. Compete à União:

(...)

VI - autorizar e fiscalizar a produção e o comércio de material bélico;

 

Diante desse escopo, foi editada a Lei nº 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição.

 

O Estatuto do Desarmamento não concedeu porte de arma para os agentes do sistema socioeducativo

A Lei nº 10.826/2003 prevê, em seu art. 6º, as categorias e pessoas que podem, excepcionalmente, ter porte de arma de fogo.

Os agentes do sistema socioeducativo não foram contemplados nesse rol. Há uma razão material para tanto. Nos termos da lei, a autorização do porte somente se justifica para pessoas que, no exercício de sua profissão, estejam sujeitas a alguma periculosidade, ressalvada a hipótese esportiva prevista no art. 6º, IX.  E a sua necessidade tão somente se justifica a partir do confronto com o caso concreto, ou seja, com os fins relacionados a cada profissão.

Não obstante haja exceção legal para o porte pelos integrantes do quadro efetivo de agentes e guardas prisionais (art. 6º, §1º), a tarefa dos agentes de medida socioeducativa não se confunde com a dos agentes penitenciários.

O agente de segurança socioeducativo trabalha sob à égide do tratamento constitucional conferido à criança e ao adolescente (art. 227 da CF/88), ou seja, à luz da doutrina da proteção integral em que estes são vistos como sujeitos de direito em desenvolvimento.

Nessa perspectiva, as medidas socioeducativas possuem caráter pedagógico, voltado à sua preparação e reabilitação para a vida em comunidade, formando, portanto, cidadãos.

Permitir o porte de armas para os agentes nestes casos significaria reforçar a errônea ideia do caráter punitivo de tal rede de proteção. A medida socioeducativa não tem por escopo punir, mas prevenir e educar.

Dessa forma, os agentes inseridos nessa realidade detêm o dever de orientar pessoas, conforme se conclui da leitura do art. 18-A e art. 18-B, ambos da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

 

Em suma:

É inconstitucional lei estadual que concede porte de arma de fogo a agentes socioeducativos.

Isso porque a competência para legislar sobre direito penal e material bélico é privativa da União (art. 22, I e XXI, CF/88).

STF. Plenário. ADI 7.424/ES, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 06/02/2024 (Info 1122).

 

Vale registrar que já houve julgamento de ADI discutindo tema similar a este (lei estadual que concede porte de arma a agentes socioeducativos) no qual os argumentos acima foram veiculados:

Legislações estaduais que concedam porte de arma a Agentes de Segurança Socioeducativos são formalmente inconstitucionais, pois violam competência privativa da União.

A concessão de porte de arma de fogo a Agentes de Segurança Socioeducativos reforça a ideia equivocada de que as medidas socioeducativas possuem caráter punitivo, contrariando o seu caráter educativo e preventivo, fundado nas disposições constitucionais de proteção aos direitos da criança e do adolescente, razão pela qual é materialmente inconstitucional.

STF. Plenário. ADI 7269/MT, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 03/07/2023.


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