O caso concreto foi o seguinte:
No Estado do Espírito Santo foi editada a Lei
Complementar nº 1.017/2022, que conferiu porte de arma de fogo para agentes socioeducativos.
Agentes socioeducativos são
profissionais que atuam na reeducação e reintegração social de jovens em
situação de risco ou que cometeram atos infracionais. Eles trabalham em
instituições voltadas para medidas socioeducativas, como centros de internação
e programas de liberdade assistida.
Confira a
redação do art. 1º dessa Lei:
Art. 1º Os Agentes Penitenciários e os Agentes Socioeducativos, ativos e
inativos, gozarão das seguintes prerrogativas, sem prejuízo de outras
estabelecidas em lei:
(…)
IV – porte de arma de fogo de uso permitido e de uso restrito aos
Agentes Socioeducativos.
§ 1º Fica proibido o porte e o uso de armas de fogo nas dependências
internas das unidades socioeducativas.
(...)
ADI
O Procurador-Geral da República ajuizou ADI questionando
a constitucionalidade desses dispositivos.
Dentre outros argumentos, o autor alegou que a previsão é
formalmente inconstitucional porque usurpa a competência da União para autorizar,
fiscalizar e legislar sobre o uso de material bélico, direito penal e
processual (art. 22, I e XXI, CF/88).
Além disso, sustentou que as regras para concessão de
porte de arma de fogo já foram previstas pela União, que exerceu a sua
competência legal quanto à matéria ao editar a Lei nº 10.826/2003 (Estatuto do
Desarmamento), que não previu os agentes do sistema socioeducativo.
O STF concordou com o pedido formulado? Os dispositivos
impugnados são inconstitucionais?
SIM.
Competência da União para tratar sobre o tema
A conduta de portar arma de fogo consiste, em regra, em
um crime. O ordenamento jurídico prevê, contudo, hipóteses nas quais a pessoa é
autorizada a portar a arma de fogo e, portanto, nesses casos, afasta-se a
ilicitude.
Com isso, facilmente conclui-se que autorizar o porte de
arma de fogo afasta, em tese, uma infração penal. Logo, essa é uma matéria
relacionada com direito penal.
Segundo o
art. 22, I, da Constituição compete privativamente à União legislar sobre
direito penal. Além disso, também compete à União estabelecer as normas gerais
sobre material bélico:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário,
marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;
(...)
XXI - normas gerais de organização, efetivos, material bélico,
garantias, convocação, mobilização, inatividades e pensões das polícias
militares e dos corpos de bombeiros militares;
Além disso, a
CF/88 também prevê ser competência privativa da União a autorização e
fiscalização da produção e comércio de material bélico (art. 21, VI, CF/88), o que lhe viabiliza definir
os requisitos sobre o porte funcional de arma de fogo:
Art. 21. Compete à União:
(...)
VI - autorizar e fiscalizar a produção e o comércio de material bélico;
Diante desse escopo, foi editada a Lei nº 10.826/2003 (Estatuto
do Desarmamento), que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas
de fogo e munição.
O Estatuto do Desarmamento não concedeu porte de arma
para os agentes do sistema socioeducativo
A Lei nº 10.826/2003 prevê, em seu art. 6º, as categorias
e pessoas que podem, excepcionalmente, ter porte de arma de fogo.
Os agentes do sistema socioeducativo não foram
contemplados nesse rol. Há uma razão material para tanto. Nos termos da lei, a
autorização do porte somente se justifica para pessoas que, no exercício de sua
profissão, estejam sujeitas a alguma periculosidade, ressalvada a hipótese
esportiva prevista no art. 6º, IX. E a
sua necessidade tão somente se justifica a partir do confronto com o caso
concreto, ou seja, com os fins relacionados a cada profissão.
Não obstante haja exceção legal para o porte pelos
integrantes do quadro efetivo de agentes e guardas prisionais (art. 6º, §1º), a
tarefa dos agentes de medida socioeducativa não se confunde com a dos agentes
penitenciários.
O agente de segurança socioeducativo trabalha sob à égide
do tratamento constitucional conferido à criança e ao adolescente (art. 227 da
CF/88), ou seja, à luz da doutrina da proteção integral em que estes são vistos
como sujeitos de direito em desenvolvimento.
Nessa perspectiva, as medidas socioeducativas possuem
caráter pedagógico, voltado à sua preparação e reabilitação para a vida em
comunidade, formando, portanto, cidadãos.
Permitir o porte de armas para os agentes nestes casos
significaria reforçar a errônea ideia do caráter punitivo de tal rede de
proteção. A medida socioeducativa não tem por escopo punir, mas prevenir e
educar.
Dessa forma, os agentes inseridos nessa realidade detêm o
dever de orientar pessoas, conforme se conclui da leitura do art. 18-A e art.
18-B, ambos da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente).
Em suma:
É inconstitucional lei estadual que concede porte de arma
de fogo a agentes socioeducativos.
Isso porque a competência para legislar sobre direito
penal e material bélico é privativa da União (art. 22, I e XXI, CF/88).
STF. Plenário.
ADI 7.424/ES, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 06/02/2024 (Info 1122).
Vale registrar que já houve julgamento de ADI discutindo
tema similar a este (lei estadual que concede porte de arma a agentes
socioeducativos) no qual os argumentos acima foram veiculados:
Legislações
estaduais que concedam porte de arma a Agentes de Segurança Socioeducativos são
formalmente inconstitucionais, pois violam competência privativa da União.
A concessão de
porte de arma de fogo a Agentes de Segurança Socioeducativos reforça a ideia
equivocada de que as medidas socioeducativas possuem caráter punitivo,
contrariando o seu caráter educativo e preventivo, fundado nas disposições
constitucionais de proteção aos direitos da criança e do adolescente, razão
pela qual é materialmente inconstitucional.
STF. Plenário.
ADI 7269/MT, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 03/07/2023.