Dizer o Direito

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

De quem é a competência para julgar o crime de vender CD ou DVD pirata?

Imagine a seguinte situação hipotética:

No dia 07 de dezembro de 2009, na BR 277, no Município de Medianeira (PR), João foi preso com centenas de CDs e DVDs falsificados.

A materialidade restou comprovada por meio de laudo pericial e João confessou, em sede policial, que obteve o material apreendido no Paraguai.

 

Qual é o crime praticado por João? A pessoa que vende CD ou DVD “pirata” pratica qual fato típico?

Essa conduta amolda-se ao § 2º do art. 184 do CP:

Violação de direito autoral

Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

(...)

§ 2º Na mesma pena do § 1º incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente.

 

Nesse sentido, confira o enunciado do STJ:

Súmula 502-STJ:Presentes a materialidade e a autoria, afigura-se típica, em relação ao crime previsto no artigo 184, parágrafo 2º, do Código Penal, a conduta de expor à venda CDs e DVDs piratas.

 

Voltando ao caso concreto:

O Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra João pelo delito do art. 184, § 2º, do CP.

O Juiz Federal, contudo, declinou da sua competência, sob o entendimento de que compete à Justiça Estadual processar e julgar o crime de violação de direito autoral.

O Procurador da República interpôs recurso, mas o TRF da 4ª Região manteve a incompetência da Justiça Federal para processar e julgar a ação penal ajuizada em virtude de suposto crime do art. 184, § 2º, do Código Penal, sob o fundamento de que a reprodução ilegal de CDs e DVDs implica ofensa apenas aos interesses particulares dos titulares dos direitos autorais e, ausente prejuízo a bem, serviço ou interesse da União, de suas autarquias ou empresas públicas, estaria afastada a competência da Justiça Federal para processar e julgar o feito.

Inconformado, o MPF interpôs recurso extraordinário. Alegou que, no caso concreto, restou comprovado que João importou as mídias do exterior, ficando demonstrada a transnacionalidade da conduta criminosa. Acrescentou que o Brasil é signatário de tratados internacionais que protegem os direitos autorais, o que atrai a competência da Justiça Federal com base no inciso V do art. 109 da Constituição Federal:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

(...)

V - os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;

 

O STF concordou com os argumentos do MPF? Se, na prática do crime de violação de direito autoral (art. 184, § 2º, CP) ficar demonstrada a transnacionalidade da ação criminosa, a competência para julgamento será da Justiça Federal com base no art. 109, V, CF/88?

SIM.

Para que o delito seja de competência da Justiça Federal com base no inciso V do art. 109 da CF/88, são necessários três requisitos:

a) que o fato seja previsto como crime em tratado ou convenção;

b) que o Brasil tenha assinado tratado/convenção internacional se comprometendo a combater essa espécie de delito;

c) que exista uma relação de internacionalidade entre a conduta criminosa praticada e o resultado que foi produzido ou que deveria ter sido produzido.

 

A relação de internacionalidade ocorre quando:

• iniciada a execução do crime no Brasil, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro;

• iniciada a execução do crime no estrangeiro, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no Brasil.

 

Tratado não precisa definir todos os elementos do crime

Vale ressaltar que não há necessidade de o tratado ou a convenção definirem todos os elementos do crime. Basta que exista a previsão de compromisso na repressão de determinada conduta.

 

A transposição das fronteiras não precisa ter sido consumada, podendo apenas ter sido tentada

O STF entende que basta a existência indícios de transnacionalidade. Nesse sentido:

Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes consistentes em disponibilizar ou adquirir material pornográfico envolvendo criança ou adolescente (arts. 241, 241-A e 241-B da Lei 8.069/1990) quando praticados por meio da rede mundial de computadores.

STF. Plenário. RE 628624 ED, Rel. Edson Fachin, julgado em 18/08/2020 (Repercussão Geral – Tema 393) (Info 990 – clipping).

 

No mesmo sentido, no julgamento do Tema 648, o STF estabeleceu a seguinte tese:

Compete à Justiça Federal processar e julgar o crime ambiental de caráter transnacional que envolva animais silvestres, ameaçados de extinção e espécimes exóticas ou protegidas por compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

STF. Plenário. RE 835558/SP, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 9/2/2017 (Repercussão Geral – Tema 648) (Info 853).

 

Dessa forma, a competência da Justiça Federal, sob o ângulo da Constituição Federal de 1988, incidirá sempre que a ação delituosa envolva bem jurídico objeto de mandados de proteção em Tratado ou Convenção internacional e, simultaneamente, seja caracterizada a transnacionalidade, pela transposição de fronteiras, consumada ou iniciada.

 

A proteção dos direitos autorais está prevista em tratados e convenções internacionais

A preocupação em proteger os direitos autorais não se limita apenas ao âmbito de um país, mas se estende internacionalmente. Isso significa que os países se comprometem, por meio de acordos e tratados internacionais, a respeitar e proteger esses direitos.

Esses tratados têm dois objetivos principais. Primeiro, eles buscam assegurar que os países participantes (chamados Estados-parte) se responsabilizem mutuamente em suas relações internacionais, promovendo um compromisso coletivo de proteção. Segundo, visam garantir que os direitos autorais sejam amplamente respeitados e que qualquer violação seja devidamente punida.

No Brasil, essas normas internacionais são internalizadas com força de lei ordinária. Isso significa que o Brasil adota em sua legislação as regras acordadas nesses tratados internacionais, incluindo as punições para quem violar os direitos autorais. Dessa forma, o país se alinha com os padrões globais de proteção aos direitos de propriedade intelectual, mostrando seu compromisso em proteger as criações intelectuais tanto dentro quanto fora de suas fronteiras.

Veja alguns tratados que o Brasil é signatário:

I - Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, de 9 de setembro de 1886, revista em Paris, em 24 de julho de 1971 (ratificada pelo Decreto Legislativo nº 94, de 1974, em vigor no Brasil desde 06 de maio de 1975, promulgado pelo Decreto nº 75.699/1975);

II - Convenção Interamericana sobre os Direitos de Autor em Obras Literárias, Científicas e Artísticas, firmada em Washington, em 22 de junho de 1946 (ratificada pelo Decreto Legislativo nº 12, de 1948, em vigor no Brasil desde 18 de maio de 1949, promulgada pelo Decreto 26.675/1949);

III - Convenção Universal Sobre Direito do Autor, concluída em Genebra, em 6 de setembro de 1952 (ratificada pelo Decreto Legislativo nº 12, de 1959, em vigor no Brasil desde 04 de julho de 1960, promulgada pelo Decreto 48.458/1960);

IV – Convenção sobre Proteção de produtores de Fonogramas contra a Reprodução não Autorizada de seus Fonogramas, concluída em Genebra, em 29 de outubro de 1971 (ratificada pelo Decreto Legislativo nº 59, de 1975, em vigor no Brasil desde 24 de dezembro de 1975, promulgada pelo Decreto 76.906/1975).

Desse modo, em face do compromisso internacional assumido pela República Federativa do Brasil em proteger os direitos autorais e as obras literárias e artísticas, se o crime de violação de direito autoral for praticado com transnacionalidade, a competência para seu julgamento será da Justiça Federal.

 

Em suma:

A competência para processar e julgar o crime de violação de direito autoral (art. 184, § 2º, CP) é da Justiça Federal quando verificada a transnacionalidade da ação criminosa (art. 109, V, CF/88).

STF. Plenário. RE 702.362/RS, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 19/12/2023 (Repercussão Geral – Tema 580) (Info 1121).

 

Tese fixada pelo STF:

Compete à Justiça Federal processar e julgar o crime de violação de direito autoral de caráter transnacional.

STF. Plenário. RE 702.362/RS, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 19/12/2023 (Repercussão Geral – Tema 580) (Info 1121).

 

Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, ao apreciar o Tema 580 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário, com a fixação da tese supracitada.


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