Alimentos internacionais
Se a pessoa obrigada a prestar os alimentos e a pessoa
beneficiária moram em países diferentes, fala-se, neste caso, em alimentos
internacionais (ou transnacionais).
As dificuldades relacionadas aos
alimentos internacionais (pensão alimentícia em um contexto transnacional) são
numerosas e podem ser bastante complexas. Aqui estão algumas das principais
dificuldades:
• diferenças na legislação dos
países;
• determinar qual jurisdição é
responsável pelo caso e garantir que as decisões de um país sejam reconhecidas
e executadas no outro;
• a execução de ordens de pensão
alimentícia em outro país pode ser complicada em razão de dificuldades, como
encontrar o devedor, avaliar sua situação financeira e depois efetivamente
cobrar a dívida;
• custos legais e administrativos
para a execução desses comandos.
Para enfrentar essas e outras
dificuldades, diversos países, dentre eles o Brasil, aderiram a tratados
internacionais como a Convenção de Nova Iorque e a Convenção de Haia sobre a
Cobrança Internacional de Alimentos para Crianças e Outros Membros da Família,
que visam facilitar a cooperação internacional e o reconhecimento mútuo de
decisões de alimentos.
Convenção de Nova Iorque (Decreto Legislativo nº
56.826/65)
O Decreto nº 56.826, de 02 de setembro de 1965, internalizou
no ordenamento jurídico pátrio os termos da Convenção de Nova Iorque para a
prestação de alimentos no estrangeiro. Confira o Artigo I da Convenção:
ARTIGO I
Objeto de Convenção
1. A presente Convenção tem como
objeto facilitar a uma pessoa, doravante designada como demandante, que se
encontra no território de uma das Partes Contratantes, a obtenção de alimentos
aos quais pretende ter direito por parte de outra pessoa, doravante designada
como demandado, que se encontra sob jurisdição de outra Parte Contratante. Os
organismos utilizados para êste fim serão doravante designados como Autoridades
Remetentes e Instituições Intermediárias.
(...)
Assim, quando o alimentante
reside no Brasil e o alimentando no exterior, a persecução (pedido) dos
alimentos é realizada através de instituição intermediária, assumindo o Estado
brasileiro, internacionalmente, a efetividade do direito aos alimentos.
Existem duas hipóteses de prestação de alimentos com base na Convenção
de Nova Iorque:
1ª situação: |
2ª situação |
Alimentando (beneficiário) mora no exterior. Alimentante (devedor) mora no Brasil. |
Alimentando (beneficiário) mora no Brasil. Alimentante (devedor) mora no exterior. |
A competência para a ação de alimentos será
da Justiça Federal brasileira (art. 109, III, da CF/88), considerando que
aqui reside o alimentante (réu). |
A competência para a ação de alimentos será
da Justiça do país onde reside o alimentante (réu). |
O alimentando entrega os documentos
necessários para a ação à Autoridade Remetente do país onde mora e esta
encaminha ao MPF (Instituição Interveniente) no Brasil. |
O alimentando entrega os documentos ao MPF
(que funciona como Autoridade Remetente) e este os encaminha à Instituição
Interveniente do país onde reside o alimentante. |
A ação será proposta pelo Procurador da
República na Seção ou Subseção Judiciária em que residir o alimentante. |
A ação será proposta pelo órgão que no país
estrangeiro funciona como Instituição Interveniente. |
Importante ressaltar que a
mencionada convenção trata a prestação de alimentos no exterior como um
problema humanitário, dadas as dificuldades legais e práticas envolvidas para
efetivação do direito aos alimentos.
Justamente por essa razão, a
Convenção de Nova Iorque prevê mecanismos que objetivam resolver esses
problemas e vencer essas dificuldades.
Cobrança de tarifas
bancárias reduziam os benefícios decorrentes dos alimentos
Acontece que, uma vez arbitrados
os alimentos, vinha acontecendo um impasse: a remessa de recursos para exterior
por meio de instituições financeiras, em regra, envolve a cobrança de tarifas,
muitas vezes elevadas.
Em 2004, por exemplo, o Banco do
Brasil cobrava, no total, cerca de US$150,00 (cento e cinquenta dólares) para
realizar esse tipo de transação.
Assim, na prática, boa parte dos
valores referentes aos alimentos enviados para o exterior acabava sendo
consumido pelas taxas incidentes na transação.
Inclusive, em alguns casos, os
alimentandos foram obrigados a receber seus alimentos apenas trimestralmente,
pois, caso contrário, os gastos com transferências anulariam qualquer proveito
econômico.
Ação civil pública pedindo
a isenção das tarifas bancárias
Diante desse cenário, o Ministério
Público Federal ingressou com ação civil pública em face do Banco do Brasil e
da União.
Alegou que é por meio da
obrigação alimentícia que se assegura o direito à vida, bem como os direitos à
saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização e
a cultura garantidos na Constituição Federal e no ECA.
Argumentou que o destinatário da
obrigação de prestar alimentos é o familiar em situação de fragilidade, que não
possui renda própria, tampouco patrimônio, e não pode subsistir com o próprio
trabalho.
Assim, os alimentos consistiriam
em um dever de natureza pública, imposto pelo legislador por razões
humanitárias, com vistas a prover a subsistência da necessidade, garantido pela
CF/88 e regulamentado pela Convenção de Nova Iorque e pelo Código Civil brasileiro.
Prosseguiu afirmando que os
alimentos são arbitrados em observância ao binômio possibilidade do alimentante
x necessidade do alimentado, vedando-se que o alimentando se locuplete com os
alimentos por ele recebidos, bem com o alimentante entregue-se a uma situação
de penúria em decorrência da obrigação alimentar.
Nesse contexto, concluiu que a
incidência de pesadas taxas bancárias para a remessa internacional seria
frontalmente contrária ao próprio instituto do direito à alimentos, bem como ao
disposto na Convenção de Nova Iorque, de status constitucional.
Alertou que o Estado tem dever de observância dos tratados e
convenções internacionais por ele assinados e ratificados e que, no caso das
transferências, a sociedade estatal estaria ofendendo, simultaneamente, o
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e o Artigo IX, 1, da
Convenção de Nova Iorque, que prevê que os demandantes gozarão do tratamento e
das isenções de custos e de despesas concedidas aos demandantes residentes no
Estado em cujo território for proposta a ação:
ARTIGO IX
Isenções e Facilidades
1. Nos procedimentos previstos na
presente Convenção, os demandantes gozarão do tratamento e das isenções de
custos e de despesas concedidas aos demandantes residentes no Estado em cujo
território fôr proposta a ação.
(...)
Em outras palavras, ao deixar de
isentar o alimentando do pagamento das taxas bancárias, o Brasil, enquanto
Estado signatário, estaria garantindo apenas parcialmente o direito que lhe
cumpre preservar.
Portanto, caberia ao Banco do
Brasil, que tem agência em diversos países, enquanto sociedade de economia
mista e, como tal, vinculada ao respeito às políticas públicas assumidas pelo
Governo Federal, isentar o alimentando do pagamento dessas taxas, ou, subsidiariamente,
que essas taxas fossem pagas pela União.
Ao final, requereu a procedência
da ação para que o Banco do Brasil fosse compelido a cessar a cobrança de
quaisquer taxas, tarifas ou quaisquer valores referentes à remessa de valores
ao exterior das pensões alimentícias pagas no Brasil, ressalvados apenas os
valores pagos ao banqueiro internacional, no caso de o dinheiro não ser
remetido para uma agência do próprio Banco do Brasil no exterior.
Subsidiariamente, requereu a
condenação da União na obrigação de assumir o encargo.
O Juiz Federal acolheu o
pedido do MPF?
SIM.
A ação foi distribuída para a 20ª
Vara Federal da Seção Judiciária de São Paulo.
Ao final da instrução, o pedido
foi julgado procedente para que o Banco do Brasil se abstivesse de cobrar
taxas, tarifas e quaisquer outros valores de remessa ao exterior de
importâncias pagas no Brasil a titular de pensão alimentícia, ressalvando-se
unicamente os valores devidos ao banqueiro internacional, na hipótese de a
localidade de destino não contar com agência do Banco do Brasil.
De acordo com a decisão, a
Convenção de Nova Iorque prevê expressamente o dever do Estado brasileiro de
facilitar a obtenção de alimentos por residentes no exterior, em razão da
remessa dos valores pelo prestador domiciliado no Brasil.
Como consequência lógica dessa
obrigação, o juízo concluiu que os alimentos remetidos ao exterior deve estar
livre de todas as custas da transferência, sob pena de implicar diminuição do
valor dos alimentos, os quais, dada a sua natureza, são irrenunciáveis,
irrepetíveis e irredutíveis. Ao permitir a cobrança de elevadas taxas,
estar-se-ia admitindo a redução substancial dos alimentos, o que não se
afiguraria juridicamente possível.
A sentença destacou que o
entendimento encontraria fundamento no Artigo IX, 1, da Convenção de Nova
Iorque, acima transcrita.
O Banco do Brasil não concordou e
interpôs apelação.
A Quinta Turma do TRF-3 negou
provimento ao recurso e confirmou a sentença.
Irresignado, o Banco do Brasil
interpôs recurso especial alegando, dentre outros argumentos, que a isenção
somente poderia ser assegurada se houvesse regulamentação pelo Banco Central.
O STJ manteve a sentença e
o acórdão? A isenção prevista na Convenção de Nova Iorque deve incidir sobre o
serviço bancário de remessa de valores para o exterior?
SIM.
Das isenções previstas na
Convenção de Nova Iorque e seu alcance
A Convenção de Nova Iorque, em
seu preâmbulo, afirma que ela foi assinada para resolver os problemas e vencer
as dificuldades que envolvem “a execução de ações sobre prestação de alimentos
ou o cumprimento de decisões relativas ao assunto”, diante das “sérias
dificuldades legais e práticas”.
Objetivando alcançar seus objetivos, a Convenção de Nova
Iorque prevê que:
ARTIGO IX
Isenções e Facilidades
1. Nos procedimentos previstos na
presente Convenção, os demandantes gozarão do tratamento e das isenções de custos e de despesas concedidas aos
demandantes residentes no Estado em cujo território fôr proposta a ação.
(...)
A interpretação literal e isolada
da norma poderia conduzir à conclusão de que “as isenções de custos e de
despesas concedidas aos demandantes” abarcariam apenas as despesas judiciais.
Contudo, essa não seria a melhor
interpretação, uma vez que o dispositivo deve ser analisado sistematicamente,
considerando-se o objetivo da isenção, que é facilitar a “obtenção de
alimentos”, e não apenas a propositura de uma ação de alimentos.
Por isso, a expressão
“facilitação de acesso aos alimentos” deve compreender todos os mecanismos
necessários para que o alimentante (“demandado”) possa cumprir as decisões
judiciais que fixam a verba alimentar. Em outras palavras, deve englobar todos
os procedimentos necessários para a efetivação da decisão judicial, entre eles
o serviço bancário de remessa de valores para o exterior, sob pena de não
restarem afastados e vencidos os problemas e as dificuldades mencionadas na
Convenção.
Preservação da efetividade
do processo
A necessidade de isenção de
custos para a efetivação de decisões judiciais, a fim de preservar a
efetividade do processo, já vem sendo reconhecida pelo STJ, especialmente em
relação aos emolumentos devidos a Notários e Registradores. Nesse sentido:
A gratuidade de justiça concedida em processo judicial deve ser
estendida, para efeito de viabilizar o cumprimento de decisão do Poder
Judiciário e garantir a prestação jurisdicional plena, aos atos extrajudiciais
de notários e de registradores respectivos, indispensáveis à materialização do
julgado. Essa orientação é a que melhor se ajusta ao conjunto de princípios e
normas constitucionais voltados a garantir ao cidadão a possibilidade de
requerer aos poderes públicos, além do reconhecimento, a indispensável
efetividade dos seus direitos (art. 5º, XXXIV, XXXV, LXXIV, LXXVI e LXXVII, da
CF/88), cabendo ressaltar que a abstrata declaração judicial do direito nada
valerá sem a viabilidade da sua execução, do seu cumprimento.
STJ. 2ª Turma. AgRg no RMS 24.557/MT, Rel. Min. Castro Meira,
julgado em 7/2/2013.
Inclusive, justamente em razão da
interpretação que o STJ vinha dando ao princípio do acesso à justiça dos
financeiramente hipossuficientes, a isenção do pagamento de emolumentos a
Notários e Registradores passou a constar expressamente do CPC/2015, no art.
98, § 1º, IX.
Nesse passo, concluiu o relator
que, “onde houver a mesma razão, haverá o mesmo direito”.
Assim, como a remessa para o
exterior de verba alimentar fixada judicialmente representa a efetivação da
decisão judicial e, consequentemente, a obtenção dos alimentos, a isenção
prevista na Convenção de Nova Iorque deve incidir também sobre as tarifas bancárias
exigidas em tal operação, independentemente de norma regulamentar editada pelo
Banco Central do Brasil.
Essa isenção vale para
todos ou depende de comprovação da hipossuficiência do alimentando?
O Ministro Relator ressaltou que
a hipossuficiência do alimentando é presumida, pois trata-se de requisito que
já fora verificado por ocasião da imposição da obrigação de pagamento da verba
a alimentar. Por outro lado, conquanto o pagamento das tarifas seja de responsabilidade
do alimentante, a oneração do devedor pode comprometer a remessa da verba
alimentar, caracterizando-se como uma das dificuldades que a Convenção
pretendeu eliminar.
Afinal, conforme apontado na
petição inicial, as tarifas bancárias alcançavam, em meados de 2004, o montante
de US$ 126,00 (cento e vinte e seis dólares americanos).
Em suma:
A isenção prevista na Convenção de Nova Iorque
(Decreto Legislativo nº 56.826/65) deve incidir sobre todos os procedimentos
necessários à efetivação de decisão judicial que fixa a verba alimentar, entre
eles o serviço bancário de remessa de valores para o exterior,
independentemente de norma regulamentar editada pelo Banco Central do Brasil.
STJ. 3ª
Turma. REsp 1.705.928-SP, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 12/12/2023
(Info 15 – Edição Extraordinária).