Dizer o Direito

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

A remessa de valores para o exterior a título de alimentos internacionais é isenta do pagamento de tarifas bancárias

Alimentos internacionais

Se a pessoa obrigada a prestar os alimentos e a pessoa beneficiária moram em países diferentes, fala-se, neste caso, em alimentos internacionais (ou transnacionais).

As dificuldades relacionadas aos alimentos internacionais (pensão alimentícia em um contexto transnacional) são numerosas e podem ser bastante complexas. Aqui estão algumas das principais dificuldades:

• diferenças na legislação dos países;

• determinar qual jurisdição é responsável pelo caso e garantir que as decisões de um país sejam reconhecidas e executadas no outro;

• a execução de ordens de pensão alimentícia em outro país pode ser complicada em razão de dificuldades, como encontrar o devedor, avaliar sua situação financeira e depois efetivamente cobrar a dívida;

• custos legais e administrativos para a execução desses comandos.

 

Para enfrentar essas e outras dificuldades, diversos países, dentre eles o Brasil, aderiram a tratados internacionais como a Convenção de Nova Iorque e a Convenção de Haia sobre a Cobrança Internacional de Alimentos para Crianças e Outros Membros da Família, que visam facilitar a cooperação internacional e o reconhecimento mútuo de decisões de alimentos.

 

Convenção de Nova Iorque (Decreto Legislativo nº 56.826/65)

O Decreto nº 56.826, de 02 de setembro de 1965, internalizou no ordenamento jurídico pátrio os termos da Convenção de Nova Iorque para a prestação de alimentos no estrangeiro. Confira o Artigo I da Convenção:

ARTIGO I

Objeto de Convenção

1. A presente Convenção tem como objeto facilitar a uma pessoa, doravante designada como demandante, que se encontra no território de uma das Partes Contratantes, a obtenção de alimentos aos quais pretende ter direito por parte de outra pessoa, doravante designada como demandado, que se encontra sob jurisdição de outra Parte Contratante. Os organismos utilizados para êste fim serão doravante designados como Autoridades Remetentes e Instituições Intermediárias.

(...)

 

Assim, quando o alimentante reside no Brasil e o alimentando no exterior, a persecução (pedido) dos alimentos é realizada através de instituição intermediária, assumindo o Estado brasileiro, internacionalmente, a efetividade do direito aos alimentos.

Existem duas hipóteses de prestação de alimentos com base na Convenção de Nova Iorque:

1ª situação:

2ª situação

Alimentando (beneficiário) mora no exterior.

Alimentante (devedor) mora no Brasil.

Alimentando (beneficiário) mora no Brasil.

Alimentante (devedor) mora no exterior.

A competência para a ação de alimentos será da Justiça Federal brasileira (art. 109, III, da CF/88), considerando que aqui reside o alimentante (réu).

A competência para a ação de alimentos será da Justiça do país onde reside o alimentante (réu).

O alimentando entrega os documentos necessários para a ação à Autoridade Remetente do país onde mora e esta encaminha ao MPF (Instituição Interveniente) no Brasil.

O alimentando entrega os documentos ao MPF (que funciona como Autoridade Remetente) e este os encaminha à Instituição Interveniente do país onde reside o alimentante.

A ação será proposta pelo Procurador da República na Seção ou Subseção Judiciária em que residir o alimentante.

A ação será proposta pelo órgão que no país estrangeiro funciona como Instituição Interveniente.

 

Importante ressaltar que a mencionada convenção trata a prestação de alimentos no exterior como um problema humanitário, dadas as dificuldades legais e práticas envolvidas para efetivação do direito aos alimentos.

Justamente por essa razão, a Convenção de Nova Iorque prevê mecanismos que objetivam resolver esses problemas e vencer essas dificuldades.

 

Cobrança de tarifas bancárias reduziam os benefícios decorrentes dos alimentos

Acontece que, uma vez arbitrados os alimentos, vinha acontecendo um impasse: a remessa de recursos para exterior por meio de instituições financeiras, em regra, envolve a cobrança de tarifas, muitas vezes elevadas.

Em 2004, por exemplo, o Banco do Brasil cobrava, no total, cerca de US$150,00 (cento e cinquenta dólares) para realizar esse tipo de transação.

Assim, na prática, boa parte dos valores referentes aos alimentos enviados para o exterior acabava sendo consumido pelas taxas incidentes na transação.

Inclusive, em alguns casos, os alimentandos foram obrigados a receber seus alimentos apenas trimestralmente, pois, caso contrário, os gastos com transferências anulariam qualquer proveito econômico.

 

Ação civil pública pedindo a isenção das tarifas bancárias

Diante desse cenário, o Ministério Público Federal ingressou com ação civil pública em face do Banco do Brasil e da União.

Alegou que é por meio da obrigação alimentícia que se assegura o direito à vida, bem como os direitos à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização e a cultura garantidos na Constituição Federal e no ECA.

Argumentou que o destinatário da obrigação de prestar alimentos é o familiar em situação de fragilidade, que não possui renda própria, tampouco patrimônio, e não pode subsistir com o próprio trabalho.

Assim, os alimentos consistiriam em um dever de natureza pública, imposto pelo legislador por razões humanitárias, com vistas a prover a subsistência da necessidade, garantido pela CF/88 e regulamentado pela Convenção de Nova Iorque e pelo Código Civil brasileiro.

Prosseguiu afirmando que os alimentos são arbitrados em observância ao binômio possibilidade do alimentante x necessidade do alimentado, vedando-se que o alimentando se locuplete com os alimentos por ele recebidos, bem com o alimentante entregue-se a uma situação de penúria em decorrência da obrigação alimentar.

Nesse contexto, concluiu que a incidência de pesadas taxas bancárias para a remessa internacional seria frontalmente contrária ao próprio instituto do direito à alimentos, bem como ao disposto na Convenção de Nova Iorque, de status constitucional.

Alertou que o Estado tem dever de observância dos tratados e convenções internacionais por ele assinados e ratificados e que, no caso das transferências, a sociedade estatal estaria ofendendo, simultaneamente, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e o Artigo IX, 1, da Convenção de Nova Iorque, que prevê que os demandantes gozarão do tratamento e das isenções de custos e de despesas concedidas aos demandantes residentes no Estado em cujo território for proposta a ação:

ARTIGO IX

Isenções e Facilidades

1. Nos procedimentos previstos na presente Convenção, os demandantes gozarão do tratamento e das isenções de custos e de despesas concedidas aos demandantes residentes no Estado em cujo território fôr proposta a ação.

(...)

 

Em outras palavras, ao deixar de isentar o alimentando do pagamento das taxas bancárias, o Brasil, enquanto Estado signatário, estaria garantindo apenas parcialmente o direito que lhe cumpre preservar.

Portanto, caberia ao Banco do Brasil, que tem agência em diversos países, enquanto sociedade de economia mista e, como tal, vinculada ao respeito às políticas públicas assumidas pelo Governo Federal, isentar o alimentando do pagamento dessas taxas, ou, subsidiariamente, que essas taxas fossem pagas pela União.

Ao final, requereu a procedência da ação para que o Banco do Brasil fosse compelido a cessar a cobrança de quaisquer taxas, tarifas ou quaisquer valores referentes à remessa de valores ao exterior das pensões alimentícias pagas no Brasil, ressalvados apenas os valores pagos ao banqueiro internacional, no caso de o dinheiro não ser remetido para uma agência do próprio Banco do Brasil no exterior.

Subsidiariamente, requereu a condenação da União na obrigação de assumir o encargo.

 

O Juiz Federal acolheu o pedido do MPF?

SIM.

A ação foi distribuída para a 20ª Vara Federal da Seção Judiciária de São Paulo.

Ao final da instrução, o pedido foi julgado procedente para que o Banco do Brasil se abstivesse de cobrar taxas, tarifas e quaisquer outros valores de remessa ao exterior de importâncias pagas no Brasil a titular de pensão alimentícia, ressalvando-se unicamente os valores devidos ao banqueiro internacional, na hipótese de a localidade de destino não contar com agência do Banco do Brasil.

De acordo com a decisão, a Convenção de Nova Iorque prevê expressamente o dever do Estado brasileiro de facilitar a obtenção de alimentos por residentes no exterior, em razão da remessa dos valores pelo prestador domiciliado no Brasil.

Como consequência lógica dessa obrigação, o juízo concluiu que os alimentos remetidos ao exterior deve estar livre de todas as custas da transferência, sob pena de implicar diminuição do valor dos alimentos, os quais, dada a sua natureza, são irrenunciáveis, irrepetíveis e irredutíveis. Ao permitir a cobrança de elevadas taxas, estar-se-ia admitindo a redução substancial dos alimentos, o que não se afiguraria juridicamente possível.

A sentença destacou que o entendimento encontraria fundamento no Artigo IX, 1, da Convenção de Nova Iorque, acima transcrita.

O Banco do Brasil não concordou e interpôs apelação.

A Quinta Turma do TRF-3 negou provimento ao recurso e confirmou a sentença.

Irresignado, o Banco do Brasil interpôs recurso especial alegando, dentre outros argumentos, que a isenção somente poderia ser assegurada se houvesse regulamentação pelo Banco Central.

 

O STJ manteve a sentença e o acórdão? A isenção prevista na Convenção de Nova Iorque deve incidir sobre o serviço bancário de remessa de valores para o exterior?

SIM.

 

Das isenções previstas na Convenção de Nova Iorque e seu alcance

A Convenção de Nova Iorque, em seu preâmbulo, afirma que ela foi assinada para resolver os problemas e vencer as dificuldades que envolvem “a execução de ações sobre prestação de alimentos ou o cumprimento de decisões relativas ao assunto”, diante das “sérias dificuldades legais e práticas”.

Objetivando alcançar seus objetivos, a Convenção de Nova Iorque prevê que:

ARTIGO IX

Isenções e Facilidades

1. Nos procedimentos previstos na presente Convenção, os demandantes gozarão do tratamento e das isenções de custos e de despesas concedidas aos demandantes residentes no Estado em cujo território fôr proposta a ação.

(...)

 

A interpretação literal e isolada da norma poderia conduzir à conclusão de que “as isenções de custos e de despesas concedidas aos demandantes” abarcariam apenas as despesas judiciais.

Contudo, essa não seria a melhor interpretação, uma vez que o dispositivo deve ser analisado sistematicamente, considerando-se o objetivo da isenção, que é facilitar a “obtenção de alimentos”, e não apenas a propositura de uma ação de alimentos.

Por isso, a expressão “facilitação de acesso aos alimentos” deve compreender todos os mecanismos necessários para que o alimentante (“demandado”) possa cumprir as decisões judiciais que fixam a verba alimentar. Em outras palavras, deve englobar todos os procedimentos necessários para a efetivação da decisão judicial, entre eles o serviço bancário de remessa de valores para o exterior, sob pena de não restarem afastados e vencidos os problemas e as dificuldades mencionadas na Convenção.

 

Preservação da efetividade do processo

A necessidade de isenção de custos para a efetivação de decisões judiciais, a fim de preservar a efetividade do processo, já vem sendo reconhecida pelo STJ, especialmente em relação aos emolumentos devidos a Notários e Registradores. Nesse sentido:

A gratuidade de justiça concedida em processo judicial deve ser estendida, para efeito de viabilizar o cumprimento de decisão do Poder Judiciário e garantir a prestação jurisdicional plena, aos atos extrajudiciais de notários e de registradores respectivos, indispensáveis à materialização do julgado. Essa orientação é a que melhor se ajusta ao conjunto de princípios e normas constitucionais voltados a garantir ao cidadão a possibilidade de requerer aos poderes públicos, além do reconhecimento, a indispensável efetividade dos seus direitos (art. 5º, XXXIV, XXXV, LXXIV, LXXVI e LXXVII, da CF/88), cabendo ressaltar que a abstrata declaração judicial do direito nada valerá sem a viabilidade da sua execução, do seu cumprimento.

STJ. 2ª Turma. AgRg no RMS 24.557/MT, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 7/2/2013.

 

Inclusive, justamente em razão da interpretação que o STJ vinha dando ao princípio do acesso à justiça dos financeiramente hipossuficientes, a isenção do pagamento de emolumentos a Notários e Registradores passou a constar expressamente do CPC/2015, no art. 98, § 1º, IX.

Nesse passo, concluiu o relator que, “onde houver a mesma razão, haverá o mesmo direito”.

Assim, como a remessa para o exterior de verba alimentar fixada judicialmente representa a efetivação da decisão judicial e, consequentemente, a obtenção dos alimentos, a isenção prevista na Convenção de Nova Iorque deve incidir também sobre as tarifas bancárias exigidas em tal operação, independentemente de norma regulamentar editada pelo Banco Central do Brasil.

 

Essa isenção vale para todos ou depende de comprovação da hipossuficiência do alimentando?

O Ministro Relator ressaltou que a hipossuficiência do alimentando é presumida, pois trata-se de requisito que já fora verificado por ocasião da imposição da obrigação de pagamento da verba a alimentar. Por outro lado, conquanto o pagamento das tarifas seja de responsabilidade do alimentante, a oneração do devedor pode comprometer a remessa da verba alimentar, caracterizando-se como uma das dificuldades que a Convenção pretendeu eliminar.

Afinal, conforme apontado na petição inicial, as tarifas bancárias alcançavam, em meados de 2004, o montante de US$ 126,00 (cento e vinte e seis dólares americanos).

 

Em suma:

A isenção prevista na Convenção de Nova Iorque (Decreto Legislativo nº 56.826/65) deve incidir sobre todos os procedimentos necessários à efetivação de decisão judicial que fixa a verba alimentar, entre eles o serviço bancário de remessa de valores para o exterior, independentemente de norma regulamentar editada pelo Banco Central do Brasil.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.705.928-SP, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 12/12/2023 (Info 15 – Edição Extraordinária).


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