Dizer o Direito

sábado, 27 de janeiro de 2024

Um Estado pode entrar com ação diretamente contra uma operadora de plano de saúde para recuperar custos de tratamento médico fornecido a um beneficiário do plano, conforme determinado por decisão judicial?

Antes de explicar o julgado, é importante relembrarmos em que consiste o chamado ressarcimento ao SUS.

 

Ressarcimento ao SUS

O art. 32 da Lei nº 9.656/98 prevê que, se um cliente do plano de saúde utilizar-se dos serviços do SUS, o Poder Público poderá cobrar do referido plano o ressarcimento que ele teve com essas despesas. Veja:

Art. 32.  Serão ressarcidos pelas operadoras dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei, de acordo com normas a serem definidas pela ANS, os serviços de atendimento à saúde previstos nos respectivos contratos, prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde - SUS. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44/2001)

 

Assim, o chamado “ressarcimento ao SUS”, criado pelo art. 32 da Lei nº 9.656/98, é uma obrigação legal das operadoras de planos privados de assistência à saúde de restituir as despesas que o SUS teve ao atender uma pessoa que seja cliente e que esteja coberta por esses planos.

Apenas a título de curiosidade, na prática funciona assim:

1) O paciente é atendido em uma instituição pública ou privada, conveniada ou contratada, integrante do SUS;

2) A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) cruza os dados dos sistemas de informações do SUS com o Sistema de Informações de Beneficiários (SIB) da própria Agência para identificar as pessoas que foram atendidas na rede pública e que possuem plano de saúde;

3) A ANS notifica a operadora informando os atendimentos que realizou relacionados com seus clientes;

4) A operadora pode contestar isso nas instâncias administrativas, dizendo, por exemplo, que aquele serviço utilizado pelo seu cliente no SUS não era coberto pelo plano, que o paciente já havia deixado de ser usuário do plano etc.

5) Não havendo impugnação administrativa ou não sendo esta acolhida, a ANS cobra os valores devidos.

6) Caso não haja pagamento, a operadora será incluída no CADIN e os débitos inscritos em dívida ativa da ANS para, em seguida, serem executados.

7) Os valores recolhidos a título de ressarcimento ao SUS são repassados pela ANS para o Fundo Nacional de Saúde.

 

O art. 32 da Lei nº 9.656/98 é constitucional? É válida a sistemática do ressarcimento ao SUS?

SIM.

É constitucional o ressarcimento previsto no art. 32 da Lei nº 9.656/98, o qual é aplicável aos procedimentos médicos, hospitalares ou ambulatoriais custeados pelo SUS e posteriores a 4.6.1998, assegurados o contraditório e a ampla defesa, no âmbito administrativo, em todos os marcos jurídicos.

STF. Plenário. RE 597064/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 7/2/2018 (Repercussão Geral – Tema 345) (Info 890).

 

Imagine agora a seguinte situação hipotética:

Regina precisou realizar uma cirurgia bariátrica, que foi negada pelo SUS.

Inconformada, Regina ingressou com ação contra o Estado do Rio Grande do Sul a fim de obrigá-lo a custear o procedimento.

O juiz deferiu a tutela provisória de urgência e a Regina realizou a cirurgia custeada pelo SUS.

Ao final, a tutela foi confirmada e o pedido julgado procedente. Houve o trânsito em julgado.

Depois de um tempo, a Administração Pública constatou que Regina era cliente do plano de saúde Unimed, que tinha obrigação contratual de custear a bariátrica.

O Estado-membro tentou, administrativamente, conseguir o ressarcimento das despesas com o plano de saúde, mas o pedido foi negado.

Diante desse cenário, o Estado-membro ajuizou ação contra a Unimed buscando o ressarcimento ao SUS, com base no art. 32 da Lei nº 9.656/98.

A Unimed contestou apresentando dois argumentos principais:

1) o art. 32 não se aplicaria em casos de serviço prestado pelo SUS por força de decisão judicial;

2) a ANS é quem seria a responsável pelo ressarcimento, e não o Estado.

 

O STJ concordou com os argumentos do Estado-membro ou da Unimed?

Do Estado-membro.

O art. 32 da Lei nº 9.656/98 permite que os entes federados, ao cumprirem diretamente ordem judicial de prestação de saúde pelo SUS, possam, posteriormente, reclamar judicialmente o ressarcimento das despesas contra a operadora privada de plano de saúde.

Esse art. 32 não faz nenhuma ressalva, de forma que ele admite, de maneira ampla, a possibilidade de ressarcimento do serviço prestado em instituição integrante do SUS, independentemente de esse procedimento ter sido oferecido espontaneamente ou por determinação judicial.

Não há como excluir, das hipóteses de ressarcimento, os casos em que o atendimento (do segurado de plano particular) pelo SUS é determinado por ordem judicial, sob pena de “culminar com o patrocínio estatal da atividade privada” (STF, RE 597.064/RJ).

O art. 32 prevê um processo administrativo para o reembolso. Neste rito, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é a responsável por determinar o valor do serviço prestado pelo SUS, cobrar esse valor da operadora de plano de saúde privado, repassar o dinheiro ao Fundo Nacional de Saúde e, depois, compensar financeiramente a entidade que pagou pelo serviço.

No entanto, em casos específicos onde uma decisão judicial já determinou que o SUS forneça o procedimento/tratamento, não faria sentido seguir esse processo administrativo. Isso porque a decisão judicial já traz em si todas as informações necessárias para justificar o reembolso ao ente federativo que prestou o serviço.

Portanto, o processo administrativo conduzido pela ANS é uma das vias de ressarcimento, sendo a principal, que atende os casos ordinários (comuns). Mas não é o único meio. Os Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, após fornecerem serviços de saúde por ordem judicial, também podem promover diretamente a ação judicial contra o plano de saúde pedindo o reembolso dos valores gastos com o tratamento fornecido por força de decisão judicial.

 

Em suma:

O ente federado pode promover diretamente ação judicial contra operadora privada de plano de saúde para ressarcimento de valores referentes a prestação de serviço de saúde em cumprimento de ordem judicial. 

STJ. 1ª Turma. REsp 1.945.959-RS, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 17/10/2023 (Info 14 – Edição Extraordinária).


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