Imagine a seguinte situação
hipotética:
João foi preso dirigindo uma
motocicleta mesmo sem ter habilitação.
Ele conduzia a moto em
zigue-zague entre as duas pistas de rolamento, quase atropelando pedestres que
atravessavam a rua, gerando, assim, perigo de dano.
Ficou constatado ainda que estava
embriagado.
João foi processado e condenado pela prática dos crimes dos
arts. 306 e 309 do Código de Trânsito, em concurso material (art. 69 do Código Penal):
Art. 306. Conduzir veículo automotor
com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de
outra substância psicoativa que determine dependência:
Penas - detenção, de seis meses a três
anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação
para dirigir veículo automotor.
Art. 309. Dirigir veículo automotor,
em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda,
se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano:
Penas - detenção, de seis meses a um
ano, ou multa.
Art. 69. Quando o agente, mediante
mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não,
aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja
incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se
primeiro aquela.
João foi sentenciado a uma pena
de 1 ano e 15 dias de detenção, em regime inicial semiaberto, e à suspensão ou
proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo
automotor por 2 meses. A pena privativa de liberdade foi substituída por duas
penas restritivas de direitos.
Recurso da defesa
O condenado interpôs apelação
pedindo o afastamento do concurso material entre os arts. 306 e 309 do
CTB, pois defendeu que o réu teria praticado apenas uma conduta (conduzir o
veículo).
Logo, deveria ser aplicado o
princípio da consunção.
Subsidiariamente, como segunda
tese defensiva, o réu pediu que fosse aplicada a regra do concurso formal (art.
70 do CP), e não do concurso material (art. 69 do CP).
A primeira tese da defesa é
aceita pelo STJ? É possível aplicar o princípio da consunção neste caso para
que o agente responda por um só crime?
NÃO.
Aplica-se o princípio da consunção quando um crime é meio
necessário ou normal fase de preparação ou de execução de outro crime. Conforme
ensina Michael Procópio:
“Segundo o princípio da consunção ou
absorção, o crime (fato) previsto por uma norma (consunta ou consumida)
constitui meio necessário ou fase normal de preparação de outro crime (previsto
na norma consuntiva). Nesse caso, apenas a norma consuntiva será aplicada no
caso concreto.” (AVELAR, Michael Procópio. Manual de Direito Penal. Salvador:
Juspodivm, 2023, p. 184).
Os crimes previstos nos arts. 306
e 309 do CTB são autônomos, com objetividades jurídicas distintas, motivo pelo
qual não incide o postulado da consunção.
O delito de condução de veículo
automotor sem habilitação não se afigura como meio necessário nem como fase de
preparação ou de execução do crime de embriaguez ao volante (STJ. 5ª Turma. AgRg
no REsp 1.745.604/MG, Rel. Min. Reynaldo Soares Da Fonseca, julgado em
14/8/2018).
Também não há que se falar em
aplicação do princípio da subsidiariedade:
A orientação jurisprudencial deste Tribunal Superior está
sedimentada no sentido de que os crimes do art. 306, caput, e do art. 309,
ambos do Código de Trânsito Brasileiro, não possuem relação de subsidiariedade,
sendo delitos autônomos, com objetividades jurídicas distintas.
STJ. 6ª Turma. AgRg no REsp 1.923.977/SP, Rel. Min. Laurita Vaz,
julgado em 20/9/2022.
A segunda tese da defesa é
acolhida pelo STJ? É possível, neste caso, aplicar a regra do concurso formal?
NÃO.
Os tipos penais do art. 306 e 309
do CTB possuem momentos consumativos distintos.
O crime de embriaguez ao volante
(art. 306 do CTB) é de perigo abstrato, de mera conduta.
O crime de direção de veículo
automotor sem a devida habilitação (art. 309 do CTB) é de perigo concreto.
É impossível aplicar o concurso
formal de crimes no presente caso, pois há duas ações isoladas, com desígnios
de vontades autônomas e com dois resultados distintos.
O momento em que o acusado passou
a conduzir a motocicleta em via pública, com a capacidade psicomotora alterada
em razão da influência de álcool (art. 306 do CTB), não se confunde com aquele
que é flagrado dirigindo referido automóvel, sem a devida habilitação ou
permissão para dirigir (art. 309 do CTB), em zigue-zague entre as duas pistas
de rolamento, quase atropelando pedestres que atravessavam a rua, gerando,
assim, perigo de dano. Nesse sentido:
Tendo havido a indicação de que os delitos, autônomos,
resultaram de ações distintas, não incide o concurso formal aos tipos penais
dos artigos 306 (embriaguez ao volante) e o art. 309 (direção de veículo
automotor sem a devida habilitação) do Código de Trânsito Brasileiro.
STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 749.440-SC, Rel. Min. Jesuíno Rissato
(Desembargador convocado do TJDFT), julgado em 23/8/2022.
Em suma
Súmula 664-STJ: É inaplicável a
consunção entre o delito de embriaguez ao volante e o de condução de veículo
automotor sem habilitação.
STJ.
3ª Seção. Aprovada em 08/11/2023.