Imagine a seguinte situação
hipotética:
João cumpria pena em regime
semiaberto.
O juiz da vara de execuções
penais concedeu ao condenado a progressão ao regime aberto.
Uma das condições impostas a João
foi a de que ele deveria ficar comparecendo mensalmente perante o juízo para
informar e justificar suas atividades.
O juiz poderia ter imposto
essa condição?
SIM. Isso está previsto no art. 113 c/c o art. 115, IV, da
Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84):
Art. 113. O ingresso do condenado em
regime aberto supõe a aceitação de seu programa e das condições impostas pelo
Juiz.
Art. 115. O Juiz poderá estabelecer
condições especiais para a concessão de regime aberto, sem prejuízo das
seguintes condições gerais e obrigatórias:
(...)
IV - comparecer a Juízo, para informar
e justificar as suas atividades, quando for determinado.
Recomendação nº 62/2020-CNJ
Ocorre que, diante da situação de
pandemia decorrente da Covid-19, o Conselho Nacional de Justiça recomendou a
suspensão temporária do dever de apresentação regular em juízo das pessoas em
cumprimento de pena no regime aberto (art. 5º, inciso V, da Recomendação nº
62/2020 do CNJ).
O Poder Judiciário do Estado
acolheu a recomendação e determinou a suspensão das apresentações mensais em
juízo dos apenados em regime aberto.
Juiz da execução suspendeu
o comparecimento obrigatório de João
Diante de tais atos normativos, o
magistrado singular suspendeu o dever de apresentação mensal em Juízo aplicado
aos apenados em regime aberto.
A defesa de João pleiteou que,
mesmo esses meses nos quais o comparecimento está suspenso, sejam computados
para fins de cumprimento de pena.
Em outras palavras, a defesa
pediu o reconhecimento do período de suspensão como pena efetivamente cumprida.
Isso porque o apenado não está comparecendo por força do ato normativo do TJ (e
não por vontade própria).
O pedido da defesa deve ser
acolhido?
NÃO.
A questão controvertida cinge-se
à possibilidade de cumprimento ficto da pena, em decorrência da pandemia da
Covid-19, bem como à possibilidade do juízo da execução desprezar período de
pena a cumprir e, desde logo, extinguir a punibilidade do apenado pelo
cumprimento da pena.
A jurisprudência do STJ é firme
no sentido de que “[n]ão é admissível, por ausência de previsão legal, que se
considere como cumprida a pena daquele que já obtivera - por motivo de força
maior e para não se expor a maior risco em virtude da pandemia - o benefício da
suspensão da pena restritiva de direitos, sendo absolutamente necessário o
efetivo cumprimento da pena como instrumento tanto de ressocialização do
apenado como de contraprestação em virtude da prática delitiva, a fim de que o
reeducando alcance o requisito necessário para a extinção de sua punibilidade”
(AgRg no HC 644.942/GO, Rel. Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma,
DJe 17/6/2021).
Com efeito, o período em que o
sentenciado deixou de comparecer em juízo por causa da pandemia da covid-19 não
pode ser considerado como tempo efetivamente cumprido.
Apesar de o reeducando não ter
dado causa àquela situação, não se pode concluir que a finalidade da pena
(retribuição e de ressocialização do indivíduo) tenha sido atingida apenas pelo
decurso do tempo.
É dever do juízo da execução dar
fiel cumprimento ao título judicial, executando a pena do réu nos limites
impostos na sentença. A alteração das disposições contidas no título judicial,
com o desprezo do período de pena remanescente, sem nenhuma justificativa
legal, viola a coisa julgada.
Desse modo, o réu não pode se
beneficiar daquilo que efetivamente não cumpriu, sob pena de se vulnerar a
função ressocializadora, bem como retributiva da reprimenda, ensejando, com
isso, grave insegurança jurídica no tocante à execução da pena.
É a posição mais atual do STJ:
O período em que o sentenciado deixou de comparecer
em juízo por causa da pandemia da covid-19 não pode ser considerado como tempo
de pena efetivamente cumprido.
STJ. 5ª
Turma. AgRg no REsp 2.076.164-PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em
9/10/2023 (Info 796).
Nos termos da jurisprudência desta Corte, o período em que o
agravante permaneceu desobrigado de se dirigir ao Juiz da execução penal, para
justificar suas atividades em razão da pandemia da covid-19, não é considerado
como pena cumprida.
STJ. 6ª Turma.
AgRg no REsp n. 2.010.509/TO, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro,
julgado em 28/8/2023.
O entendimento acima explicado
representa mudança de entendimento. Isso porque a 6ª Turma do STJ já havia
decidido em sentido contrário: no HC 657382/SC, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado
em 27/04/2021 (Info 694).
DOD Plus – não confundir com o
tema 1120
Os julgados mais recentes indicam que o STJ diferencia duas
situações:
a) O
período em que o sentenciado deixou de comparecer em juízo por causa da
pandemia da covid-19 não pode ser considerado como tempo de pena efetivamente
cumprido
Perceba que aqui o apenado não
trabalhou nem estudou, mas somente pediu para que fosse reconhecido o período
de suspensão do dever de apresentação regular em juízo (art. 5º, V, da Recomendação
62/2020) como pena cumprida (fictamente).
Nesse caso, para STJ, não é possível o
cumprimento ficto da pena:
STJ. 5ª
Turma. AgRg no REsp 2.076.164-PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em
9/10/2023 (Info 796).
STJ. 6ª Turma. AgRg no REsp n. 2.010.509/TO, Rel. Min.
Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 28/8/2023.
b) É
possível a concessão de remição ficta, com extensão do alcance da norma
prevista no art. 126, §4º, da LEP, aos apenados que estavam impossibilitados de
trabalhar ou estudar em razão da pandemia da Covid-19
Aos presos trabalhadores e estudantes
que se viram impedidos de realizarem suas atividades tão somente pela
superveniência do estado pandêmico, será possível o reconhecimento do direito à
remição da pena.
Aqui é diferente porque o apenado estava
trabalhando/estudando e se viu impedido de realizar suas atividades pela
superveniência da Covid-19.
Nesse caso, para o STJ, é possível o
reconhecimento da remição ficta em favor do apenado impedido:
Nada obstante a interpretação restritiva que deve ser conferida ao
art. 126, §4º, da LEP, os princípios da individualização da pena, da dignidade
da pessoa humana, da isonomia e da fraternidade, ao lado da teoria da
derrotabilidade da norma e da situação excepcionalíssima da pandemia de
covid-19, impõem o cômputo do período de restrições sanitárias como de efetivo
estudo ou trabalho em favor dos presos que já estavam trabalhando ou estudando
e se viram impossibilitados de continuar seus afazeres unicamente em razão do
estado pandêmico.
STJ. 3ª Seção. REsp n. 1.953.607/SC, relator Ministro Ribeiro
Dantas, Terceira Seção, julgado em 14/9/2022 (Recurso Repetitivo – Tema 1120)
(Info 749).