Dizer o Direito

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

É obrigatória a cobertura, pela operadora do plano de saúde, de cirurgias de transgenitalização e de plástica mamária com implantação de próteses em mulher transexual

Imagine a seguinte situação hipotética:

João da Silva, conhecido socialmente como Manoela, se reconhece emocional e psicologicamente como mulher.

Há cerca de 1 ano, Manoela vem passando por tratamento hormonal, com acompanhamento médico, para transição de gênero.

Manoela não reconhece mais o seu corpo biológico, o que ocasiona grave impacto em sua saúde mental, de forma que vem sendo assistida por psicólogo e psiquiatra, os quais a diagnosticaram com Transtorno de Identidade de Gênero, também conhecido como disforia de gênero, ou transexualismo, qualificado como CID 10 F64.

Os profissionais recomendaram que ela fizesse a cirurgia de transgenitalização.

Diante desse cenário, Manoela solicitou do plano de saúde autorização para realização e custeio do procedimento cirúrgico de transgenitalização e para a colocação de próteses mamárias.

O plano de saúde negou os procedimentos sob o argumento de que não estão previstos no rol obrigatório da ANS.

Manoela ajuizou ação contra o plano pedindo que ele fosse condenado a custear os referidos procedimentos. Pediu, ainda, a condenação da operadora ao pagamento de indenização por danos morais.

Em contestação, o plano reiterou o argumento de que não é obrigado a realizar procedimentos cirúrgicos que não estão previstos no rol da ANS.

O juiz julgou os pedidos procedentes, sentença mantida pelo Tribunal de Justiça.

Ainda inconformado, o plano de saúde interpôs recurso especial alegando que:

• o tratamento solicitado por Manoela não está previsto no rol de cobertura obrigatória do plano;

• o procedimento pretendido para mudança de sexo é experimental e a prótese mamária possui cobertura apenas para o tratamento e câncer, o que não é o caso da autora, que pretende a função apenas estética.

 

O STJ concordou com os argumentos do plano de saúde?

NÃO.

 

Não se trata de procedimento experimental

Os procedimentos de afirmação de gênero do masculino para o feminino são reconhecidos pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e foram também incorporados ao SUS, com indicação para o processo transexualizador, constando, inclusive, na tabela de procedimentos, medicamentos, órteses, próteses e materiais especiais do SUS, vinculados ao CID 10 F640 - transexualismo (atual CID 11 HA60 - incongruência de gênero), não se tratando, pois, de procedimentos experimentais.

 

Procedimentos para redesignação sexual estão incluídos no rol da ANS

Os procedimentos que integram a redesignação sexual no sexo masculino e a plástica mamária incluindo prótese, descritos na Portaria 2.803/2013 do Ministério da Saúde, constam do anexo I do rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS (Resolução ANS 465/2021), a saber: orquiectomia, amputação total do pênis, neovagina, reconstrução da mama com prótese, dentre outros.

 

A implantação de prótese mamária de silicone, no processo transexualizador, não é uma cirurgia meramente estética

No processo transexualizador, a cirurgia plástica mamária reconstrutiva bilateral, incluindo prótese mamária de silicone, é procedimento que, muito antes de melhorar a aparência, tem por objetivo a afirmação do próprio gênero, incluída no conceito de saúde integral do ser humano.

Essa medida tem por objetivo a prevenção ao adoecimento decorrente do sofrimento causado pela incongruência de gênero, pelo preconceito e pelo estigma social vivido por quem experiência a inadequação de um corpo masculino à sua identidade feminina.

 

Todos os requisitos estão preenchidos

Desse modo, percebe-se que estão preenchidos todos os requisitos para que o plano de saúde forneça os procedimentos considerando que:

1) foram procedimentos cirúrgicos prescritos pelo médico assistente;

2) são procedimentos que não se enquadram nas exceções do art. 10 da Lei nº 9.656/98 (obs: os incisos do art. 10 preveem procedimentos que o plano pode recusar);

3) são procedimentos reconhecidos pelo CFM e que foram incorporados ao SUS para a mesma indicação clínica (CID 10 F640 - transexualismo, atual CID 11 HA60 - incongruência de gênero);

4) são procedimentos listados no rol da ANS sem diretrizes de utilização.

 

Logo, estão satisfeitos os pressupostos que impõem à operadora do plano de saúde a obrigação de sua cobertura.

 

Em suma:

É obrigatória a cobertura, pela operadora do plano de saúde, de cirurgias de transgenitalização e de plástica mamária com implantação de próteses em mulher transexual. 

STJ. 3ª Turma. REsp 2.097.812-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 21/11/2023 (Info 798).

 

Indenização por danos morais

A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que o descumprimento contratual por parte da operadora de saúde, que culmina em negativa de cobertura para procedimento médico-hospitalar, enseja compensação por dano moral quando houver agravamento da condição de dor, abalo psicológico ou prejuízos à saúde já debilitada da paciente.

No caso concreto, Manoela “teve negada a cobertura integral em momento de tanta necessidade e delicado estado de saúde, circunstância que, indubitavelmente, agravou sua situação de aflição psicológica e de angústia, causando-lhe nítido sofrimento”.


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