O caso concreto foi o seguinte:
No Município
de São Paulo, a Lei nº 10.947/91, regulamentada pelo Decreto nº 29.728/91,
obrigou que os shopping centers da cidade tivessem ambulatório ou serviço de pronto-socorro
em suas instalações, com a presença de médico e ambulância:
Lei Municipal 10.947/91
Art. 1º Torna-se obrigatória, nos Shopping-centers existentes na área do
Município a implantação de ambulatório médico ou serviço de pronto-socorro
equipado para o atendimento de emergência, com pelo menos um médico e uma
ambulância. (Redação dada pela Lei nº 11.649/1994)
Art. 2º No caso de novas construções de “shopping-centers”, não será
concedido o Auto de Conclusão e o consequente alvará de funcionamento, quando a
edificação não comportar área exclusivamente destinada à instalação dos
serviços médicos de urgência exigidos nesta Lei.
Art. 3º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas
as disposições em contrário.
ADI
A Associação Brasileira de Shopping Centers (ABRASCE) ajuizou ação direta de
inconstitucionalidade, perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
(TJ/SP), questionando essa previsão.
O TJ/SP julgou improcedente a ADI e decidiu que a
legislação impugnada seria constitucional.
Inconformada, a ABRASCE interpôs recurso extraordinário
insistindo que a Lei e o Decreto seriam inconstitucionais.
O STF deu provimento ao recurso da ABRASCE? A Lei e o
Decreto impugnados são inconstitucionais?
SIM.
É formal e
materialmente inconstitucional lei municipal que impõe a instalação de
ambulatório médico ou serviço de pronto-socorro, para prestação de atendimento
de emergência, bem como a contratação de profissional médico, nos shopping centers existentes na área do
município.
Essa previsão
é formalmente inconstitucional porque viola a competência privativa da União
para legislar sobre direito do trabalho e direito comercial (art. 22, I,
CF/88).
Além disso, a
lei é materialmente inconstitucional porque afronta os princípios da livre
iniciativa (arts. 1º, IV, e 170, caput,
CF/88), da razoabilidade e da proporcionalidade.
STF. Plenário.
RE 833291/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 4/12/2023 (Repercussão Geral –
Tema 1051) (Info 1119).
Inconstitucionalidade formal
Os
Municípios, no exercício da competência suplementar, podem legislar sobre
proteção e defesa da saúde, nos termos do art. 24, inciso XII, c/c o art. 30,
incisos I e II, da Constituição Federal:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar
concorrentemente sobre:
(...)
XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;
Art. 30. Compete aos Municípios:
I - legislar sobre assuntos de interesse local;
II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
Em relação à
saúde, a Constituição Federal estabelece, no inciso II do art. 23, a
competência administrativa comum entre União, estados, Distrito Federal e
municípios para cuidar da saúde e da assistência pública:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios:
(...)
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das
pessoas portadoras de deficiência;
No caso
concreto, contudo, as normas municipais impugnadas não se limitaram a tratar
sobre proteção a saúde. A Lei municipal, ao obrigar os shopping centers a manterem serviço de atendimento de emergência
com a exigência de contratação de profissional médico, adentrou na seara do
Direito do Trabalho e do Direito Comercial, matérias que são de competência
privativa da União:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário,
marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;
(...)
No mesmo sentido, o STF já decidiu que determinada lei
municipal, ao ter exigido de supermercados a contratação de funcionário para
prestação de serviço de acondicionamento ou embalagem de compras, invadiu a
competência da União para legislar sobre direito do trabalho e comercial:
São
inconstitucionais as leis que obrigam supermercados ou similares à prestação de
serviços de acondicionamento ou embalagem das compras, por violação ao
princípio da livre iniciativa (art. 1º, IV e art. 170 da CF/88).
STF. Plenário.
ADI 907/RJ, Rel. Min. Alexandre de Moraes, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso,
julgado em 1º/8/2017 (Info 871).
STF. Plenário. RE
839950/RS, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 24/10/2018 (repercussão geral) (Info
921).
A mesma lógica se aplica, mutatis mutandis, no presente caso.
Inconstitucionalidade material
Além do vício formal, a lei é materialmente
inconstitucional porque afronta os princípios da livre iniciativa (arts. 1º,
IV, e 170, caput, CF/88), da razoabilidade e da proporcionalidade.
A livre
iniciativa é um fundamento da República (art. 1º, inciso IV, da CF/88) e da
ordem econômica (art. 170, caput, da
CF/88):
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e
na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
A livre iniciativa é corolário da autonomia individual,
sendo manifestada na liberdade negocial e na liberdade contratual. Vale
ressaltar que a livre iniciativa não é absoluta, devendo se harmonizar com os
outros interesses constitucionalmente protegidos. Há, portanto, situações nas
quais será legítima a intervenção do Estado no domínio econômico, de modo a
salvaguardar outros princípios constitucionais tão relevantes quanto o da livre
iniciativa e que devem orientar o comportamento dos agentes estatais e privados
em suas atividades, a exemplo da dignidade da pessoa humana, dos valores
sociais do trabalho e da função social da propriedade.
No caso dos autos, porém, essa intervenção não foi
legítima. O legislador municipal invadiu indevidamente o espaço da livre
iniciativa.
Não se desconsidera que os direitos à vida, à dignidade
da pessoa humana e à assistência à saúde têm estatura constitucional e podem
ensejar uma intervenção do Poder Público caso o comportamento da iniciativa
privada importe em obstrução a seu exercício.
Entretanto, as exigências contidas nas normas impugnadas
afrontam, de forma desproporcional, a liberdade econômica, com demasiado ônus
aos empresários do ramo, o que consiste em inadequada e impertinente
intervenção estatal.
Ainda que a necessidade da intervenção estatal no âmbito
econômico se oriente na direção de valores sociais, tal atuação não pode ser
desproporcional.
As obrigações impostas pela legislação impugnada
transbordaram os limites de intervenção estatal na atividade econômica
desenvolvida pelos shopping centers, seja pela ausência de correlação com a
prestação de serviços oferecida, seja pela imposição de altos custos na
implantação e na manutenção do espaço, incluindo gastos com contratação, afora
o custo de oportunidade de utilização do espaço.
Tese fixada pelo STF:
É
inconstitucional lei municipal que estabelece a obrigação da implantação, nos shopping centers, de ambulatório médico
ou serviço de pronto-socorro equipado para o atendimento de emergência.
STF. Plenário.
RE 833291/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 4/12/2023 (Repercussão Geral –
Tema 1051) (Info 1119).
Com base nesse entendimento, o Plenário, por unanimidade,
ao apreciar o Tema 1.051 da repercussão geral, deu provimento ao recurso
extraordinário para declarar a inconstitucionalidade das Leis nº 10.947/1991 e
nº 11.649/1994, ambas do Município de São Paulo, bem como, por arrastamento, do
Decreto Municipal nº 29.728/1991.