Dizer o Direito

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

É inconstitucional lei municipal que obriga o shopping center a ter ambulatório médico ou serviço de pronto-socorro equipado com médico e ambulância para atendimento de emergência

O caso concreto foi o seguinte:

No Município de São Paulo, a Lei nº 10.947/91, regulamentada pelo Decreto nº 29.728/91, obrigou que os shopping centers da cidade tivessem ambulatório ou serviço de pronto-socorro em suas instalações, com a presença de médico e ambulância:

Lei Municipal 10.947/91

Art. 1º Torna-se obrigatória, nos Shopping-centers existentes na área do Município a implantação de ambulatório médico ou serviço de pronto-socorro equipado para o atendimento de emergência, com pelo menos um médico e uma ambulância. (Redação dada pela Lei nº 11.649/1994)

Art. 2º No caso de novas construções de “shopping-centers”, não será concedido o Auto de Conclusão e o consequente alvará de funcionamento, quando a edificação não comportar área exclusivamente destinada à instalação dos serviços médicos de urgência exigidos nesta Lei.

Art. 3º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

 

ADI

A Associação Brasileira de Shopping Centers (ABRASCE) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade, perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP), questionando essa previsão.

O TJ/SP julgou improcedente a ADI e decidiu que a legislação impugnada seria constitucional.

Inconformada, a ABRASCE interpôs recurso extraordinário insistindo que a Lei e o Decreto seriam inconstitucionais.

 

O STF deu provimento ao recurso da ABRASCE? A Lei e o Decreto impugnados são inconstitucionais?

SIM.

É formal e materialmente inconstitucional lei municipal que impõe a instalação de ambulatório médico ou serviço de pronto-socorro, para prestação de atendimento de emergência, bem como a contratação de profissional médico, nos shopping centers existentes na área do município.

Essa previsão é formalmente inconstitucional porque viola a competência privativa da União para legislar sobre direito do trabalho e direito comercial (art. 22, I, CF/88).

Além disso, a lei é materialmente inconstitucional porque afronta os princípios da livre iniciativa (arts. 1º, IV, e 170, caput, CF/88), da razoabilidade e da proporcionalidade.

STF. Plenário. RE 833291/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 4/12/2023 (Repercussão Geral – Tema 1051) (Info 1119).

 

Inconstitucionalidade formal

Os Municípios, no exercício da competência suplementar, podem legislar sobre proteção e defesa da saúde, nos termos do art. 24, inciso XII, c/c o art. 30, incisos I e II, da Constituição Federal:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

(...)

XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;

 

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

 

Em relação à saúde, a Constituição Federal estabelece, no inciso II do art. 23, a competência administrativa comum entre União, estados, Distrito Federal e municípios para cuidar da saúde e da assistência pública:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

(...)

II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

 

No caso concreto, contudo, as normas municipais impugnadas não se limitaram a tratar sobre proteção a saúde. A Lei municipal, ao obrigar os shopping centers a manterem serviço de atendimento de emergência com a exigência de contratação de profissional médico, adentrou na seara do Direito do Trabalho e do Direito Comercial, matérias que são de competência privativa da União:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;

(...)

 

No mesmo sentido, o STF já decidiu que determinada lei municipal, ao ter exigido de supermercados a contratação de funcionário para prestação de serviço de acondicionamento ou embalagem de compras, invadiu a competência da União para legislar sobre direito do trabalho e comercial:

São inconstitucionais as leis que obrigam supermercados ou similares à prestação de serviços de acondicionamento ou embalagem das compras, por violação ao princípio da livre iniciativa (art. 1º, IV e art. 170 da CF/88).

STF. Plenário. ADI 907/RJ, Rel. Min. Alexandre de Moraes, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgado em 1º/8/2017 (Info 871).

STF. Plenário. RE 839950/RS, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 24/10/2018 (repercussão geral) (Info 921).

 

A mesma lógica se aplica, mutatis mutandis, no presente caso.

 

Inconstitucionalidade material

Além do vício formal, a lei é materialmente inconstitucional porque afronta os princípios da livre iniciativa (arts. 1º, IV, e 170, caput, CF/88), da razoabilidade e da proporcionalidade.

A livre iniciativa é um fundamento da República (art. 1º, inciso IV, da CF/88) e da ordem econômica (art. 170, caput, da CF/88):

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

 

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

 

A livre iniciativa é corolário da autonomia individual, sendo manifestada na liberdade negocial e na liberdade contratual. Vale ressaltar que a livre iniciativa não é absoluta, devendo se harmonizar com os outros interesses constitucionalmente protegidos. Há, portanto, situações nas quais será legítima a intervenção do Estado no domínio econômico, de modo a salvaguardar outros princípios constitucionais tão relevantes quanto o da livre iniciativa e que devem orientar o comportamento dos agentes estatais e privados em suas atividades, a exemplo da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da função social da propriedade.

No caso dos autos, porém, essa intervenção não foi legítima. O legislador municipal invadiu indevidamente o espaço da livre iniciativa.

Não se desconsidera que os direitos à vida, à dignidade da pessoa humana e à assistência à saúde têm estatura constitucional e podem ensejar uma intervenção do Poder Público caso o comportamento da iniciativa privada importe em obstrução a seu exercício.

Entretanto, as exigências contidas nas normas impugnadas afrontam, de forma desproporcional, a liberdade econômica, com demasiado ônus aos empresários do ramo, o que consiste em inadequada e impertinente intervenção estatal.

Ainda que a necessidade da intervenção estatal no âmbito econômico se oriente na direção de valores sociais, tal atuação não pode ser desproporcional.

As obrigações impostas pela legislação impugnada transbordaram os limites de intervenção estatal na atividade econômica desenvolvida pelos shopping centers, seja pela ausência de correlação com a prestação de serviços oferecida, seja pela imposição de altos custos na implantação e na manutenção do espaço, incluindo gastos com contratação, afora o custo de oportunidade de utilização do espaço.

 

Tese fixada pelo STF:

É inconstitucional lei municipal que estabelece a obrigação da implantação, nos shopping centers, de ambulatório médico ou serviço de pronto-socorro equipado para o atendimento de emergência.

STF. Plenário. RE 833291/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 4/12/2023 (Repercussão Geral – Tema 1051) (Info 1119).

 

Com base nesse entendimento, o Plenário, por unanimidade, ao apreciar o Tema 1.051 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário para declarar a inconstitucionalidade das Leis nº 10.947/1991 e nº 11.649/1994, ambas do Município de São Paulo, bem como, por arrastamento, do Decreto Municipal nº 29.728/1991.


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