segunda-feira, 1 de janeiro de 2024
Após a EC 66/2010, a separação judicial não é mais requisito para o divórcio nem existe mais como figura autônoma no ordenamento jurídico
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João era casado com Regina.
Querendo pôr fim ao casamento, João ingressou
com ação pedindo o divórcio.
O autor argumentou que, com a edição da EC
66/2010, o §6º do art. 226, da Constituição Federal passou a permitir o
divórcio direto, independentemente de prévia separação judicial.
EC 66/2010
A EC 66/2010 (conhecida como “Emenda do
Divórcio”), alterou a redação do art. 226, § 6º da CF/88, suprimindo os prazos
de um ano de separação judicial e de dois anos de separação de fato no
divórcio.
A EC 66/2010 retirou do texto da CF/88 a referência expressa
à existência de separação judicial. Compare as duas redações:
Antes
da EC 66/2010 |
DEPOIS
da EC 66/2010 |
Art. 226 (...) § 6º O casamento civil pode ser
dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano
nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois
anos. |
Art. 226 (...) § 6º O casamento civil pode ser
dissolvido pelo divórcio. |
Voltando ao caso concreto:
O juiz julgou o pedido procedente e decretou o
divórcio do casal.
Regina não concordou e recorreu da sentença.
A recorrente argumentou que, apesar de a CF/88 ter expurgado
de seu texto o termo “separação judicial”, o art. 1.571, III, do Código Civil
(que menciona a existência de separação judicial) não teria sido formalmente
revogado:
Art. 1.571. A sociedade conjugal
termina:
(...)
III - pela separação judicial;
Para Regina, o art. 226, § 6º, da Constituição
Federal apenas estabeleceu o divórcio, mas o seu exercício continuou regulamentado
pelo Código Civil, que exige a prévia separação judicial.
Dizendo de forma mais simples, alegou que compete
à lei federal criar as condições pelas quais o divórcio pode se concretizar.
Assim, enquanto houver previsão no Código
Civil da separação judicial, esse instituto deve ser respeitado.
O STF concordou com os argumentos
de Regina? A decretação do divórcio continuaria condicionado à prévia separação
judicial?
NÃO.
Como vimos acima, o art. 226, §6º, da CF/88,
em sua redação original, previa que o casamento civil poderia ser dissolvido
pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos
expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.
A alteração promovida pela EC 66/2010
objetivou simplificar o rompimento do vínculo matrimonial, eliminando as
referidas condicionantes. A atual redação do dispositivo constitucional prescreve
que o divórcio é incondicionado (não causal), de modo que a prévia separação
judicial ou fática não é mais necessária para alcançá-lo.
Além disso, a separação judicial não permanece
como instituto autônomo, pois a supressão da segunda parte do art. 226, § 6º,
da CF/1988 significa uma redução na margem de conformação legislativa, no
sentido de inviabilizar a criação de outras condicionantes para se efetivar o
divórcio.
O § 6º do art. 226 afirma que “o casamento
civil pode ser
dissolvido pelo divórcio”. Vale ressaltar, contudo, que o verbo “pode” não se
dirige ao legislador, não foi uma faculdade atribuída ao Congresso Nacional.
Esse verbo “pode” se dirige às pessoas casadas, enquanto direito a ser
exercido, quando e se assim desejarem.
Em suma:
Após a promulgação da Emenda Constitucional 66/2010,
a separação judicial não é mais requisito para o divórcio, nem subsiste como
figura autônoma no ordenamento jurídico brasileiro. Por essa razão, as normas
do Código Civil que tratam da separação judicial perderam sua validade, a
partir dessa alteração constitucional, o que permite que as pessoas se
divorciem, desde então, a qualquer momento.
STF.
Plenário. RE 1.167.478/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 8/11/2023 (Info
1116).
A Corte fixou a seguinte tese de
repercussão geral (Tema 1053):
Após a promulgação da EC nº 66/2010, a separação
judicial não é mais requisito para o divórcio nem subsiste como figura autônoma
no ordenamento jurídico. Sem prejuízo, preserva-se o estado civil das pessoas
que já estão separadas, por decisão judicial ou escritura pública, por se
tratar de ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, da CF).
STF.
Plenário. RE 1.167.478/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 8/11/2023 (Repercussão
Geral - Tema 1053) (Info 1116).
DOD Plus – o julgado acima altera a jurisprudência do STJ sobre o tema:
Como vimos acima, apesar de a CF/88 ter expurgado de seu
texto o termo “separação judicial”, o art. 1.571, III, do CC (que menciona a
existência de separação judicial) não foi formalmente revogado. Em outras
palavras, o constituinte reformador tirou da Constituição a separação, mas ela
ainda continua presente no Código Civil. Diante disso, surgiram duas correntes:
O Direito brasileiro ainda admite a
existência da separação? |
|
1ª
corrente: SIM |
2ª
corrente: NÃO |
Uma primeira corrente defende que a
separação judicial continua a ser possível para aqueles que assim desejam. Os autores filiados a essa posição afirmam
que existem pessoas que, por razões religiosas ou filosóficas, não admitem o
divórcio e, assim, querem ficar apenas “separadas”, mas não “divorciadas”. Outro argumento é o de que a
separação seria uma alternativa interessante para os casais que não descartam
a possibilidade de reatarem, considerando que se estiverem apenas separados
poderão restabelecer, a todo tempo, a sociedade conjugal. Ao contrário, se
estiverem divorciados e desejarem se reconciliar, teriam que casar novamente,
o que seria mais burocrático. |
Sustenta que o art. 1.571, III, do CC,
mesmo não tendo sido alterado expressamente, foi revogado pela EC 66/2010
(não recepção). Logo, não é mais possível que haja separação judicial, mas
apenas o divórcio. |
Na V Jornada de Direito Civil foi
aprovado um enunciado adotando a 1ª corrente: Enunciado
514: Art. 1.571. A Emenda Constitucional n. 66/2010 não extinguiu o instituto
da separação judicial e extrajudicial. |
Essa segunda posição era defendida
por inúmeros doutrinadores, como Paulo Lôbo, Rodrigo da Cunha Pereira, Pablo
Stolze, Maria Berenice Dias, Flávio Tartuce, Cristiano Chaves e Nelson
Rosenvald. |
Qual foi a posição adotada pelo STJ?
A 1ª corrente. Decidiu o STJ:
A EC 66/2010 não
revogou, expressa ou tacitamente, a legislação ordinária que trata da separação
judicial.
STJ. 3ª Turma.
REsp 1.431.370-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 15/8/2017
(Info 610).
STJ. 4ª Turma.
REsp 1.247.098-MS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 14/3/2017 (Info
604).
A Emenda à
Constituição n. 66/2010 apenas excluiu os requisitos temporais para facilitar o
divórcio.
O constituinte
derivado reformador não revogou, expressa ou tacitamente, a legislação
ordinária que cuida da separação judicial, apenas facultou às partes dissolver
a sociedade conjugal direta e definitivamente através do divórcio.
STJ. 3ª Turma. AgInt
no REsp 1.882.664/MG, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 23/11/2020.
Principais argumentos invocados pelo
STJ para esta conclusão:
• Analisando a literalidade do art.
226, § 6º, percebe-se que a única alteração promovida pela EC 66/2010 foi a
supressão do requisito temporal para divórcio, bem como do sistema bifásico,
para que o casamento seja dissolvido pelo divórcio. Ocorreu, portanto,
facilitação ao divórcio (e não a abolição da separação judicial).
• O texto constitucional dispõe que o
casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. Isso significa que a CF
conferiu uma faculdade aos cônjuges, não significando, contudo, que tenha
extinguido a possibilidade de separação judicial.
• Se o divórcio é permitido sem
qualquer restrição, forçoso concluir que também é possível a separação judicial
considerando que, quem pode o mais, pode o menos também.
• Entender que a alteração promovida
pela EC 66/2010 suprimiu a existência da separação extrajudicial ou judicial
levaria à interpretação de que qualquer assunto que não fosse mais tratado no
texto constitucional por desconstitucionalização estaria extinto, o que seria
um absurdo.
• Não ocorreu a revogação tácita da
legislação infraconstitucional que versa sobre a separação, dado que a EC
66/2010 não tratou em momento algum sobre a separação, bem como não dispôs
sobre matéria com ela incompatível.
• O CPC/2015 (Lei nº 13.105/2015)
manteve em diversos dispositivos referências ao instituto da separação
judicial, inclusive regulando-o no capítulo que trata das ações de família,
demonstrando, de forma indiscutível, que a mens legis foi a de manter a figura
da separação no ordenamento jurídico pátrio.
Considerando
que essa posição do STJ de que o divórcio e a separação ainda coexistiram no
ordenamento jurídico, qual seria a diferença entre eles?
Separação
(judicial ou extrajudicial) |
Divórcio |
A separação seria modalidade de
extinção da sociedade conjugal, pondo fim aos deveres de coabitação e fidelidade,
bem como ao regime de bens (art. 1.571, III, do Código Civil) sem, no
entanto, dissolver o casamento. |
É forma de dissolução do vínculo
conjugal e extingue o próprio vínculo conjugal, pondo termo ao casamento,
refletindo diretamente sobre o estado civil da pessoa e permitindo que os
ex-cônjuges celebrem novo casamento, o que não ocorre com a separação. |
A separação seria uma medida
temporária e de escolha pessoal dos envolvidos, que podem optar, a qualquer
tempo, por restabelecer a sociedade conjugal ou pela sua
conversão definitiva em divórcio. |
O divórcio é, em tese, definitivo.
Caso as pessoas divorciadas desejem ficar novamente juntas, precisam se casar
novamente. |
Posição do STJ está superada
Penso que o entendimento do STJ acima
explicado encontra-se superado com a decisão do STF no Tema 1053.
O STF afirmou expressamente que “a separação
judicial não (...) subsiste como figura autônoma no ordenamento jurídico.”
Logo, não é mais permitido que um casal se separe judicialmente.
Como a questão foi decidida em repercussão
geral, o STJ deverá se adequar à tese fixada pelo STF.