Cartões de descontos em serviços
de saúde
Os cartões de desconto em
serviços de saúde são uma alternativa para pessoas que buscam acesso a
consultas médicas e exames com valores mais acessíveis, sem a necessidade de
aderir a um plano de saúde tradicional.
O usuário paga um valor (taxa de
adesão, mensalidade ou anuidade) e, em troca, recebe um cartão que oferece
descontos em diversos serviços médicos, como consultas e exames, em uma rede de
prestadores parceiros da empresa que oferece o cartão.
Após o pagamento da taxa, o
consumidor pode começar a utilizar o cartão imediatamente, sem período de
carência, para obter descontos em consultas, exames e, em alguns casos, em
farmácias e outros estabelecimentos. Os descontos são possíveis graças a parcerias
com clínicas, laboratórios e outros profissionais de saúde.
É importante ressaltar que os
cartões de desconto em saúde não são planos de saúde. Eles oferecem descontos
em procedimentos médicos, mas não cobrem atendimentos emergenciais e
internações, como fazem os planos de saúde. Alguns cartões podem até oferecer
atendimento online em caso de emergências, mas isso não substitui um plano de
saúde para situações de urgência.
Feito esse esclarecimento,
imagine a seguinte situação adaptada:
O Ministério Público Federal ajuizou
ação civil pública contra a empresa “TODOS Empreendimentos LTDA”, bem como
contra a ANS e a ANEEL.
A ANS,
Agência Nacional de Saúde Suplementar, é uma autarquia sob regime especial (agência
reguladora), criada pela Lei nº 9.961/2000, sendo responsável, dentre outras
atribuições, por regular o setor de planos de saúde no país.
A ANEEL, Agência
Nacional de Energia Elétrica, também é uma autarquia sob regime especial,
criada pela Lei nº 9.427/96, com a finalidade de regular e fiscalizar a
produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica no
Brasil.
Argumentação do MPF contra a TODOS: a
empresa estaria se apresentando, para o público consumidor, como uma operadora
de plano de saúde que fornece a seus segurados descontos em serviços de saúde,
educação e lazer, mediante a utilização do cartão denominado “CARTÃO DE TODOS”.
Tratava-se, no entanto, apenas de um cartão de descontos em serviços de saúde.
O serviço era cobrado mediante o
débito nas contas de energia elétrica, o que causava confusão aos consumidores.
Além de tudo, tal empresa não estava
registrada na ANS para operar como plano de saúde.
Argumentação do MPF contra a ANEEL: alegou
que a inclusão do pagamento dos “cartões de descontos” na mesma fatura e código
de barras do serviço de energia elétrica é uma prática abusiva, que viola o
Código de Defesa do Consumidor. A agência teria sido omissa ao
permitir as cobranças indevidas nas faturas de energia elétrica.
Argumentação do MPF contra a ANS: alegou que
a ANS deveria ter fiscalizado e regulamentado os serviços prestados pela TODOS,
que estaria oferecendo descontos em saúde mas operando à margem da lei.
Vejamos o que o STJ decidiu em relação
à ANEEL e a ANS.
É lícita a inclusão do pagamento dos
“cartões de descontos” na mesma fatura e código de barras do serviço de energia
elétrica?
NÃO.
Há necessidade do controle de
legalidade da forma de cobrança dos multicitados “cartões de desconto em
serviço de saúde” em razão do que dispõem os arts. 6º, III e IV; 37, §§1º e 3º,
e 39, I, do CDC.
A fatura para pagamento da conta de
energia e do multicitado “cartão de desconto em serviço de saúde” não admite
pagamento parcial, e ao consumidor somente é comunicado o direito à cisão das
cobranças quando já inadimplente e sujeito à suspensão do fornecimento de
energia elétrica.
Embora seja formalmente facultado ao
consumidor notificar a concessionária de energia quanto à discordância sobre o
valor cobrado pelo “cartão de desconto”, tal faculdade não é clara e intuitiva,
reverberando o caráter indevido e coercitivo resultante da cobrança conjunta
(casada), que retira a liberdade de escolha garantida ao consumidor pelo Código
de Defesa do Consumidor (CDC).
Desse modo, não é admissível a
cobrança da energia elétrica e do denominado “cartão de descontos em serviços
de saúde” em um único código de barras. Isso porque confunde o consumidor que
normalmente utiliza tal produto - via de regra de baixa renda e portanto mais
vulnerável e hipossuficiente - sobre os serviços e produtos que estão sendo
efetivamente pagos, levando-o a uma falsa percepção de que, em não sendo quitada
a dívida do “cartão de descontos”, o fornecimento de energia poderá ser
interrompido. Tal prática desrespeita a legislação consumerista, em especial os
arts. 6º, III e IV; 37, §§1º e 3º, e 39, I, do CDC.
STJ. 2ª Turma. AgInt no AREsp 2.183.704/SP, Rel. Min. Herman
Benjamin, julgado em 2/10/2023.
A ANS deveria ter fiscalizado a
empresa?
SIM.
A Lei nº 9.656/98, que dispõe sobre os planos e seguros
privados de assistência à saúde, prevê, em seu art. 1º:
Art. 1º Submetem-se às
disposições desta Lei as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos
de assistência à saúde, sem prejuízo do cumprimento da legislação específica
que rege a sua atividade e, simultaneamente, das disposições da Lei nº 8.078,
de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), adotando-se, para
fins de aplicação das normas aqui estabelecidas, as seguintes definições:
(...)
§ 1º Está subordinada às normas e
à fiscalização da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS qualquer
modalidade de produto, serviço e contrato que apresente, além da garantia de
cobertura financeira de riscos de assistência médica, hospitalar e odontológica,
outras características que o diferencie de atividade exclusivamente financeira,
tais como:
(...)
b) oferecimento de rede credenciada ou referenciada;
Tais dispositivos devem ser
interpretados sistematicamente com o CDC, especialmente com os arts. 2º e 6º,
I, III, IV e VI, voltados à defesa dos direitos que transcendem o individual,
como é o caso da saúde, consagrando o direito à tutela da vida, da integridade
física e a efetiva prevenção dos danos que puderem advir de práticas abusivas.
A vulnerabilidade dos consumidores que
contratam e se valem de tais “cartões de desconto em serviços de saúde”, via de
regra economicamente hipossuficientes sob o ponto de vista técnico, jurídico e
econômico, evidencia e reforça a necessidade da regulamentação e fiscalização
desse produto pela ANS, de forma a tutelar a vida, a saúde e a segurança dos
consumidores, nos exatos termos da Lei Consumerista e da Lei nº 9.656/98.
O STJ já julgou, na Corte Especial, a
legitimidade do ato administrativo da ANS consistente na suspensão de
comercialização de produtos (planos de saúde) avaliados negativamente pela
autarquia federal.
Tal entendimento deve se estender -
principalmente - aos chamados “cartões de desconto em serviços de saúde”, que
seguem a mesma sistemática de oferta, com descontos, de rede credenciada ou
referenciada de atendimento em saúde aos consumidores, porquanto se assemelham
aos planos de saúde em regime de coparticipação, sendo irrelevante, para efeito
de tutela dos direitos do consumidor, o fato de os pagamentos aos profissionais
de saúde serem realizados diretamente pelos usuários, e não pelo plano de
saúde.
Desse modo, a atuação da ANS precisa
atuar neste caso para garantir a clareza e a adequação das informações sobre
esses produtos, assegurando que seus usuários compreendam eventuais diferenças
existentes para com os tradicionais planos de saúde.
Em suma:
A regulamentação e a fiscalização dos denominados
"cartões de descontos em serviços de saúde" são de competência da
Agência Nacional de Saúde.
STJ. 2ª
Turma. AgInt no AREsp 2.183.704-SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em
2/10/2023 (Info 14 – Edição Extraordinária).