Imagine a seguinte situação
hipotética:
Durante fiscalização de rotina, policiais rodoviários federais abordaram
o passageiro João da Silva no interior de um ônibus de transporte público
interestadual, que fazia o trajeto de Dourados (MS) para São Paulo (SP).
O passageiro estava sentado no último banco do veículo e, segundo os
policiais, demonstrou nervosismo ao avistá-los. Por esse motivo, foi
selecionado para inspeção da bagagem.
Durante a busca pessoal, os policiais encontraram entre as pernas de
João uma bolsa de viagem com 20 tabletes de maconha, totalizando 20kg.
João foi preso em flagrante.
O Ministério Público ofereceu denúncia contra João imputando-lhe a
prática do crime de tráfico de drogas.
Em alegações finais, a Defensoria Pública requereu a absolvição do réu
alegando que a busca pessoal realizada foi nula em razão da ausência de fundada
suspeita.
O juiz afastou a tese defensiva e condenou o réu, sentença mantida
pelo Tribunal de Justiça.
A Defensoria Pública impetrou, então, habeas corpus no STJ insistindo
que:
- o art. 244 do CPP afirma que a busca pessoal somente poderá ocorrer,
sem mandado judicial, quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na
posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito,
ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.
- a mera alegação genérica de “atitude suspeita” é insuficiente para a
licitude da busca pessoal;
- como, no caso concreto, não havia fundada suspeita, deve-se
reconhecer a nulidade da prova colhida.
No caso concreto, o STJ
concordou com os argumentos da defesa?
NÃO.
Requisitos da busca pessoal
do art. 244 do CPP
Confira o que diz o art. 244 do CPP sobre a busca pessoal:
Art. 244. A busca pessoal independerá de mandado, no
caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na
posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito,
ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.
A partir da leitura desse
dispositivo, é possível extrair três hipóteses de busca pessoal sem mandado:
a) no caso de prisão (ex: o
indivíduo é preso em flagrante, o que autoriza a realização de busca pessoal);
b) quando houver fundada suspeita
de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que
constituam corpo de delito; ou
c) quando a medida for
determinada no curso de busca domiciliar.
A Sexta Turma do STJ, no julgamento
do RHC 158.580/BA, aprofundou a compreensão acerca do instituto da busca
pessoal, analisando de forma exaustiva os requisitos do art. 244 do CPP.
Veja abaixo um resumo deste
importante precedente:
Para a busca pessoal ou veicular sem mandado judicial exige-se,
em termos de standard probatório, a existência de fundada suspeita (justa
causa) baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão
possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e
circunstâncias do caso concreto – de que o indivíduo esteja na posse de drogas,
armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito,
evidenciando-se a urgência de se executar a diligência.
Entretanto, o art. 244 do CPP não se limita a exigir que a
suspeita seja fundada. É preciso, também, que esteja relacionada à “posse de
arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”.
O art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como
“rotina” ou “praxe” do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e
motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e
motivação correlata.
Desse modo, a busca pessoal não pode ser realizada com base
unicamente em:
a) informações de fonte não identificada (e.g. denúncias
anônimas); ou
b) intuições e impressões subjetivas, intangíveis, apoiadas, por
exemplo, exclusivamente, no tirocínio (experiência) policial.
Assim, não é possível a busca pessoal unicamente pelo fato de o
policial, a partir de uma classificação subjetiva, ter considerado que a
pessoa:
• apresentou uma atitude ou aparência suspeita; ou
• teve uma reação ou expressão corporal tida como “nervosa”.
Essas circunstâncias não preenchem o standard probatório de
“fundada suspeita” exigido pelo art. 244 do CPP.
O fato de haverem sido encontrados objetos ilícitos após a
revista não convalida a ilegalidade prévia, pois é necessário que o elemento
“fundada suspeita de posse de corpo de delito” seja aferido com base no que se
tinha antes da diligência. Se não havia fundada suspeita de que a pessoa estava
na posse de arma proibida, droga ou de objetos ou papéis que constituam corpo
de delito, não há como se admitir que a mera descoberta casual de situação de
flagrância, posterior à revista do indivíduo, justifique a medida.
A violação dessas regras e condições legais para busca pessoal
resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das
demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de
eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m)
realizado a diligência.
Há três razões principais para que se exijam elementos sólidos,
objetivos e concretos para a realização de busca pessoal – vulgarmente
conhecida como “dura”, “geral”, “revista”, “enquadro” ou “baculejo” –, além da
intuição baseada no tirocínio policial:
a) evitar o uso excessivo desse expediente e, por consequência,
a restrição desnecessária e abusiva dos direitos fundamentais à intimidade, à
privacidade e à liberdade (art. 5º, caput, e X, da Constituição), porquanto,
além de se tratar de conduta invasiva e constrangedora – mesmo se realizada com
urbanidade, o que infelizmente nem sempre ocorre –, também implica a detenção
do indivíduo, ainda que por breves instantes;
b) garantir a sindicabilidade da abordagem, isto é, permitir que
tanto possa ser contrastada e questionada pelas partes, quanto ter sua validade
controlada a posteriori por um terceiro imparcial (Poder Judiciário), o que se
inviabiliza quando a medida tem por base apenas aspectos subjetivos,
intangíveis e não demonstráveis;
c) evitar a repetição – ainda que nem sempre consciente – de
práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como
é o caso do perfilamento racial, reflexo direto do racismo estrutural.
STJ. 6ª Turma. RHC 158.580-BA, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz,
julgado em 19/04/2022 (Info 735).
É necessário diferenciar a
busca pessoal prevista no CPP da busca pessoa por razões de segurança (inspeção
de segurança)
A “busca pessoal” prevista no art. 244 do CPP não pode ser confundida
com a busca realizada como inspeção de segurança em procedimentos que não
possuem natureza processual penal.
Confira o que Renato Brasileiro ensina sobre o tema (LIMA,
Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal comentado. 2. ed. Salvador:
Juspodivm, 2017, p. 689):
a)
Busca pessoal por razões de segurança |
b)
Busca pessoal de natureza processual penal |
É aquela realizada em festas, boates, aeroportos, rodoviárias etc. Essa espécie de busca pessoal não está regulamentada pelo CPP,
devendo ser executada de maneira razoável e sem expor as pessoas a
constrangimento ou à humilhação. Sua execução tem natureza contratual, ou seja, caso a pessoa não se
submeta à medida, não poderá se valer do serviço ofertado nem tampouco
frequentar o estabelecimento. |
Regulamentada pelo art. 244 do CPP. Deve ser determinada quando houver fundada suspeita de que alguém
oculte consigo coisas achadas ou obtidas por meios criminosos, instrumentos
de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos,
armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a
fim delituoso, objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu,
apreender cartas abertas destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja
suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do
fato, assim como qualquer outro elemento de convicção. |
Não exige fundada suspeita. |
Exige fundada suspeita. |
Rosmar Rodrigues Alencar e Nestor Távora também diferenciam
as duas espécies:
“Por sua vez, a busca pessoal realizada em
festas, boates, aeroportos, não têm tratamento pelo CPP, devendo atender à
razoabilidade e respeitar a intimidade. Estão afetas ao lado contratual. Aquele
que não desejar se submeter à medida, tem a opção de não se valer do serviço
ofertado ou simplesmente não frequentar o estabelecimento.” (ALENCAR, Rosmar
Rodrigues; TÁVORA, Nestor Távora. Curso de direito processual penal. 12. ed.
Salvador: Ed. JusPodivm. 2017, p. 753)”
Desse modo, a denominada “busca
pessoal por razões de segurança” ou “inspeção de segurança”, ocorre
rotineiramente em aeroportos, rodoviárias, prédios públicos, eventos festivos,
ou seja, locais em que há grande circulação de pessoas e, em consequência,
necessidade de zelar pela integridade física dos usuários, bem como pela
segurança dos serviços e instalações.
Embora a inspeção de segurança
também envolva restrição a direito fundamental e possa ser alvo de controle
judicial a posteriori, a fim de averiguar a proporcionalidade da medida e a sua
realização sem exposição vexatória, o principal ponto de distinção em relação à
busca de natureza penal é a faculdade que o indivíduo tem de se sujeitar a ela
ou não.
Na busca pessoal por razões de
segurança, há um aspecto
de contratualidade, pois a recusa a se submeter à inspeção apenas irá
obstar o acesso ao serviço ou transporte coletivo, funcionando como uma medida
de segurança dissuasória da prática de ilícitos.
A título exemplificativo,
destaca-se que a inspeção de segurança em aeroportos decorre de cumprimento de
diretriz internacional, prevista no Anexo 17 da Convenção da Organização
Internacional de Aviação Civil (OACI), da qual o Brasil é signatário. O Decreto
nº 11.195/2022 regulamenta a questão e prevê expressamente que a inspeção de
passageiros e bagagens é de responsabilidade do operador de aeródromo, sob
supervisão da Polícia Federal (art. 81). Ou seja, delega-se essa possibilidade
ao agente privado, sendo a atuação policial também prevista, de forma
subsidiária e complementar.
Nesse contexto, se a busca ou
inspeção de segurança - em espaços e transporte coletivos - pode ser realizada
por agentes privados incumbidos da segurança, com mais razão pode - e deve -
ser realizada por agentes públicos que estejam atuando no mesmo contexto, sem
prejuízo do controle judicial a posteriori acerca da proporcionalidade da
medida, em ambos os casos.
O contexto que legitima a
inspeção de segurança em espaços e meios de transporte de uso coletivo é
absolutamente distinto daquele que ampara a realização da busca pessoal para
fins penais, na qual há que se observar a necessária referibilidade da medida (fundada
suspeita de posse de objetos ilícitos), conforme já muito bem tratado no
referido RHC 158.580/BA, da relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz.
No caso concreto, policiais
rodoviários federais, em fiscalização na Rodovia Castelo Branco, abordaram
ônibus que fazia o trajeto de Dourados (MS) para São Paulo (SP). Os agentes
públicos narraram que a seleção se deu a partir de análise comportamental
(nervosimo visível e troca de olhares entre um adolescente viajando sozinho e outro
passageiro que afirmou não conhecer). Afirmaram ainda que informaram ao acusado
quanto ao direito de permanecer em silêncio e, em seguida, iniciaram a vistoria
das bagagens, localizando cerca de 20kg de maconha, divididos em tabletes nos
pertences do acusado.
Assim, forçoso concluir que a
inspeção de segurança nas bagagens dos passageiros do ônibus, em fiscalização
de rotina realizada pela Polícia Rodoviária Federal, teve natureza
administrativa, ou seja, não se deu como busca pessoal de natureza processual penal
e, portanto, não precisava de fundada suspeita.
Ademais, se a bagagem dos
passageiros poderia ser submetida à inspeção aleatória na rodoviária ou em um
aeroporto, passando por um raio-X ou inspeção manual detalhada, sem qualquer
prévia indicação de suspeita, por exemplo, não há razão para questionar a
legalidade da vistoria feita pelos policiais rodoviários federais, que atuaram
no contexto fático de típica inspeção de segurança em transporte coletivo.
Em suma:
A inspeção de segurança nas bagagens dos passageiros
de ônibus, em fiscalização de rotina realizada pela Polícia Rodoviária Federal,
tem natureza administrativa e prescinde de fundada suspeita.
STJ. 6ª Turma. HC 625.274-SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em
17/10/2023 (Info 796).