quinta-feira, 18 de janeiro de 2024
A Fazenda Pública é obrigada a aceitar a execução invertida?
STF JULGOU CONSTITUCIONAL A PRÁTICA DA EXECUÇÃO INVERTIDA
NOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS
Execução invertida
O CPC prevê que a execução contra a fazenda pública deverá
ser deflagrada por iniciativa do credor (exequente), que apresentará os
cálculos do valor que entende devido. Nesse sentido, confira o que diz o art.
534 do CPC:
Art. 534. No cumprimento de sentença
que impuser à Fazenda Pública o dever de pagar quantia certa, o exequente
apresentará demonstrativo discriminado e atualizado do crédito contendo:
I - o nome completo e o número de
inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional da Pessoa
Jurídica do exequente;
II - o índice de correção monetária
adotado;
III - os juros aplicados e as
respectivas taxas;
IV - o termo inicial e o termo final
dos juros e da correção monetária utilizados;
V - a periodicidade da capitalização
dos juros, se for o caso;
VI - a especificação dos eventuais
descontos obrigatórios realizados.
Ocorre que se percebeu que, na
maioria das vezes, o credor é pessoa que dispõe de poucos recursos e que não
tem quem possa fazer esses cálculos. Essa realidade se mostra ainda mais
evidente no caso dos Juizados Especiais Federais. Pensando nisso, alguns juízes
dos Juizados Especiais idealizaram uma adaptação do procedimento, que ficou
conhecida como “execução invertida”.
A execução invertida, em palavras
simples, consiste no seguinte: havendo uma decisão transitada em julgado
condenando a Fazenda Pública ao pagamento de uma quantia considerada como de
“pequeno valor”, o juiz do Juizado Especial Federal intima o Poder Público
(devedor) para que este elabore a planilha de cálculos com o valor que é devido
e apresente isso nos autos para análise do credor. Caso este concorde, haverá o
pagamento voluntário da obrigação e a execução se encerra rapidamente.
O ônus de preparar esses cálculos
e pedir a execução seria do particular (credor). No entanto, com essa
sistemática, há uma inversão desse ônus, de forma que a própria Fazenda
Pública, mesmo sendo a devedora, é quem apresenta os cálculos da quantia devida.
Vale ressaltar que esses cálculos, obviamente, deverão ser realizados segundo
os parâmetros que foram fixados pelo juízo na sentença/acórdão (título
executivo judicial).
A execução invertida é amplamente
admitida nos Juizados Especiais Federais. Nesse sentido:
Enunciado nº 129 do FONAJEF: Nos Juizados Especiais Federais, é
possível que o juiz determine que o executado apresente os cálculos de
liquidação.
ADPF
A União ajuizou ADPF para
questionar decisões dos Juizados Especiais Federais do Rio de Janeiro que
impuseram a ela o dever da execução invertida, isto é, o dever de apurar ou
indicar, nos processos em que figure como ré ou executada, o valor devido à
parte autora.
A União argumentou que a chamada
execução invertida seria inconstitucional.
O STF acolheu o argumento da
União? É inconstitucional a exigência feita pelo juízo no sentido de que a
Fazenda Pública apresente os documentos e faça os cálculos do quanto terá que
pagar?
NÃO.
Não ofende a ordem constitucional determinação judicial de
que a União proceda aos cálculos e apresente os documentos relativos à execução
nos processos em tramitação nos juizados especiais cíveis federais, ressalvada
a possibilidade de o exequente postular a nomeação de perito.
STF. Plenário. ADPF 219/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado
em 20/5/2021 (Info 1018).
O STF considerou legítima a
determinação de que, em decisões judiciais proferidas pelos Juizados Especiais Federais,
a União efetue os cálculos para a execução das verbas devidas nas ações em que
for condenada.
Entre os princípios que regem o
microssistema processual dos juizados especiais federais — versados na Lei nº
9.099/95 e na Lei nº 10.259/2001 — estão os da simplicidade, da economia
processual e da celeridade. A legislação potencializa o acesso à Justiça.
Em regra, é do credor a
iniciativa nas execuções civis, cabendo-lhe instruir a execução com os cálculos
da obrigação materializada no título. Apesar disso, não há vedação legal a que
se exija a colaboração do executado, principalmente quando se trata de ente da
Administração Pública federal.
No âmbito dos juizados especiais federais, tudo
indica ser possível a inversão da ordem. A relação estabelecida entre o
particular que procura o juizado e a União é, evidentemente, assimétrica. Logo,
impõe-se potencializar os poderes conferidos pelo CPC ao magistrado para
restabelecer a efetiva igualdade entre as partes.
A leitura atual do papel exercido
pela Administração Pública dá primazia ao interesse público primário. A própria
legislação dos juizados pressupõe que a Administração agirá no intuito de
buscar a efetividade dos direitos dos administrados.
Exigir que exista sempre a
intervenção de perito designado pelo juízo revela incompatibilidade com os
princípios da economia processual, da celeridade e da efetividade do processo.
A nomeação de perito representa
custo ao Erário com os honorários correspondentes.
Além disso, os cálculos efetuados
deverão ser posteriormente revistos pela própria Administração fazendária a fim
de verificar o acerto do valor apurado.
De igual modo, se o exequente
apresentar valor excessivo, caberá à Fazenda declarar de imediato o valor que
entenda correto.
Logo, como a Fazenda Pública terá
que sempre analisar o valor, melhor que já faça isso de início, facilitando
todo o processo.
Acrescente-se, ainda, que, em
última análise, o dever de colaboração imputável ao Estado decorre dos
princípios da legalidade, da moralidade, da eficiência, e do subprincípio da
economicidade.
Obs: vale ressaltar que, apesar
de a tese fixada pelo STF falar apenas em União, é possível que seu raciocínio
seja também aplicado para as entidades federais, como o INSS, e para os outros
entes federativos, como Estados, DF e Municípios.
O credor será obrigado a
aceitar a execução invertida?
NÃO. O credor pode fazer absoluta
questão de que os cálculos sejam realizados por terceiro imparcial (perito do
juízo). Em tais hipóteses, ele deverá formular requerimento expresso,
incumbindo ao Estado viabilizar a atuação do perito.
A FAZENDA PÚBLICA NÃO É OBRIGADA A ACEITAR A EXECUÇÃO
INVERTIDA NO PROCEDIMENTO COMUM
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João ajuizou ação contra o INSS pedindo a concessão de aposentadoria
no valor mensal de R$ 7.500,00.
Essa ação foi ajuizada na vara federal comum (procedimento comum), e
não no Juizado Especial Federal (procedimento sumaríssimo). Por quê?
Normalmente, as ações
previdenciárias propostas contra o INSS são de competência dos Juizados
Especiais Federais. Isso, contudo, nem sempre é verdadeiro.
Os Juizados Especiais Federais somente podem julgar causas
de até 60 salários-mínimos. Dizemos que este é o teto do JEF, conforme prevê o
caput do art. 3º, da Lei nº 10.259/2001:
Art. 3º Compete ao Juizado
Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da
Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as
suas sentenças.
Se o autor vai ajuizar uma ação pedindo um benefício
previdenciário (ex: uma aposentadoria), o cálculo do valor da causa deverá
considerar a soma das 12 prestações que ainda irão vencer. Isso está previsto
no § 2º do art. 3º da Lei nº 10.259/2001:
Art. 3º (...)
§ 2º Quando a pretensão versar
sobre obrigações vincendas, para fins de competência do Juizado Especial, a
soma de doze parcelas não poderá exceder o valor referido no art. 3º, caput.
Em nosso exemplo, fazendo esse
cálculo, o valor da causa seria superior a 60 salários-mínimos e, portanto,
essa ação de João não é de competência do JEF por ultrapassar o seu teto.
Voltando ao caso concreto:
O Juiz Federal, no procedimento comum, julgou o pedido procedente e
condenou o INSS a conceder a aposentadoria ao autor.
O INSS foi condenado, ainda, a pagas as parcelas devidas desde a data
do requerimento administrativo, corrigidos monetariamente e acrescidos de juros
de mora, na forma do Manual de Cálculos da Justiça Federal.
Os honorários sucumbenciais foram arbitrados em 10% sobre o valor da
condenação.
Constou ainda na sentença que, com o
trânsito em julgado, o INSS teria 20 dias para promover os cálculos de acordo
com os critérios estabelecidos para efeito de expedição de requisição de
pagamento. E que juntado o cálculo, fosse aberta vista a parte autora por 10
dias. Em outras palavras, a
sentença determinou a sistemática da execução invertida.
Irresignado, o INSS interpôs apelação dirigida ao TRF.
Argumentou que o juiz obrigou que a autarquia aceitasse a execução
invertida, o que não seria possível.
O TRF negou provimento à apelação
afirmando que o INSS tem estrutura técnica capacitada para elaboração do quantum
debeatur. Inclusive, na prática, o próprio INSS sempre envia os valores
apresentados pelo exequente para que o setor de cálculos da autarquia confira
se eles estão corretos.
Isso significa que, na prática, o
INSS já faz os cálculos. Logo, o comando contido na sentença não representaria
um trabalho extra que a autarquia já não esteja acostumado a fazer.
O INSS não concordou e interpôs recurso especial argumentando que é
ônus do credor promover a liquidação do julgado que lhe é favorável. O próprio
acórdão teria reconhecido que a execução de valores em face da Fazenda Pública
é de iniciativa do credor, mas que teria mantido a determinação apenas em face
das vantagens trazidas pela execução invertida.
Mesmo na hipótese de o credor ser economicamente hipossuficiente, é dever
legal do Poder Judiciário, e não do executado, fazer os cálculos da execução.
Por esses motivos, concluiu que a execução invertida é uma exceção à
regra, uma faculdade do executado que pode ou não ser adotada, até porque há que
se levar em conta também a possibilidade de desinteresse da parte credora em
fazer valer o seu direito e mesmo a inércia gerar a prescrição nos termos da
Súmula 150 do STF.
O STJ concordou com os argumentos do INSS?
SIM.
Conceito de execução
invertida
O procedimento denominado “execução
invertida” consiste na modificação do rito processual estabelecido no Código de
Processo Civil, ofertando à parte executada (devedor) a possibilidade de
apresentação dos cálculos e valor devido à parte exequente (credor).
Não há previsão legal de tal
mecanismo processual, sendo ele uma construção jurisprudencial.
A execução invertida depende
de uma concordância do devedor
O STJ entende que a “execução
invertida” tem como fundamento basilar a “conduta espontânea” do devedor.
O devedor, de forma espontânea e
voluntária, pode se antecipar e apresentar logo os cálculos da execução. Como decorrência
disso, ele acelera o processo (princípio da duração razoável do processo) e
receberá, como “recompensa”, a não condenação em honorários advocatícios.
No caso em exame, o juízo a
quo deveria ter intimado previamente o INSS (parte executada),
ofertando-lhe a possibilidade de cumprimento espontâneo da sentença. Caberia
então a parte decidir pela apresentação ou não dos cálculos e valores devidos. Se
o INSS não aceitasse fazer, assumiria a responsabilidade da condenação em
honorários advocatícios, decorrentes da execução (princípio da causalidade). Se
aceitasse, ficaria dispensado desse pagamento. Tal procedimento prévio de
intimação da Fazenda Pública possui substrato na jurisprudência do STJ.
Ocorre que o juízo a quo não deu
essa faculdade ao INSS, tendo obrigado a autarquia previdenciária a adotar a
execução invertida, o que não encontra amparo na jurisprudência do STJ.
Mas o STF não obrigou a
parte executada a aceitar a execução invertida?
Somente nos casos de Juizados
Especiais Federais.
A decisão do STF na ADPF 219 se
aplica apenas para as decisões proferidas pelos Juizados Especiais.
Nesse contexto, em que pese a
importância e realce dos princípios que regem o microssistema dos juizados
especiais, não há possibilidade de imposição automática de tais princípios, e
por decorrência seus efeitos, para o âmbito dos processos ordinários (comuns).
No campo do processo civil,
ordenado pelo Código de Processo Civil, outros princípios e vetores de
julgamento sobressaem, como por exemplo: princípio da cooperação e
comportamento processual probo (boa-fé).
Em suma:
Não é possível a determinação judicial à Fazenda
Pública de adoção da prática jurisprudencial da execução invertida no
cumprimento de sentença em procedimento comum.
STJ. 2ª
Turma. AREsp 2.014.491-RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 12/12/2023 (Info
799).