Imagine a seguinte situação
hipotética:
Policiais militares encontram 20g
de um material que aparentava ser maconha, e 25g de uma substância que parecia
ser cocaína na mochila de João.
João foi preso em flagrante.
As drogas foram encaminhadas para
o Posto de Perícia Integrada, que elaborou o laudo de constatação preliminar e confirmou
que as substâncias apreendidas eram maconha e cocaína.
Em seguida, o Ministério Público
ofereceu denúncia contra João imputando-lhe o crime de tráfico de drogas (art.
33, caput, da Lei nº 11.343/2006).
A denúncia foi recebida.
No curso da instrução, foi
elaborado e juntado o laudo toxicológico definitivo, que, mais uma vez, confirmou que as
substâncias apreendidas eram maconha e cocaína.
Acontece que, apesar do perito
ter sido devidamente identificado, ele se esqueceu de assinar o laudo.
Essa falha passou despercebida e
o processo teve regular prosseguimento.
Ao final da instrução, o Juiz
proferiu sentença condenatória.
João interpôs apelação. Alegou,
dentre outros fundamentos, que não ficou provada a materialidade do crime. Isso
porque o exame toxicológico definitivo, imprescindível para a comprovação da
materialidade, não estava assinado pelo perito.
Destacou que o delito de tráfico
ilícito de drogas possui natureza material, se fazendo necessário, portanto, a
realização de laudo pericial definitivo válido para a constatação da existência
do entorpecente, não podendo ser suprido por nenhum outro meio de prova.
Os argumentos da defesa foram
acolhidos pelo Tribunal de Justiça e João foi absolvido.
Inconformado, o Ministério
Público interpôs recurso especial. Alegou que, apesar da ausência de
assinatura, o laudo identificou expressamente o nome do perito responsável pela
perícia e ainda possui código de barras numerado, que identifica seguramente o
documento.
Ressaltou, ainda, que não se pode
olvidar a presunção de legitimidade do documento público emanado da autoridade
policial, diante dos princípios da oficialidade e da legalidade, como
intrínsecos aos atos administrativos em geral, mesmo porque a defesa sequer se
insurgiu em relação à legitimidade do mencionado documento.
Acrescentou também que, no
direito brasileiro, não há provas absolutas, tanto que o art. 158, do CPP,
prevê o exame de corpo de delito indireto.
O STJ manteve a absolvição
por ausência de materialidade? A assinatura do laudo toxicológico definitivo
por perito criminal é imprescindível para a comprovação da materialidade do
delito de tráfico de drogas?
NÃO.
Havendo a apreensão de
entorpecente, devem ser elaborados dois laudos:
1) Laudo de constatação
O primeiro, denominado de laudo de constatação, deve indicar se o material apreendido
é, efetivamente, substância ou produto capaz de causar dependência, assim
especificado em lei ou relacionado em listas atualizadas periodicamente pelo
Poder Executivo da União, devendo apontar, ainda, a quantidade apreendida.
Trata-se, portanto, de um exame
provisório, apto a comprovar a materialidade do delito e, como tal, autorizar a
prisão do agente ou a instauração do respectivo inquérito policial, caso não
verificado o estado de flagrância. É firmado por um perito oficial ou, em sua
falta, por pessoa idônea.
2) Laudo definitivo
A lei também indica a existência
do laudo definitivo, que é realizado de forma científica e minuciosa e, como o
próprio nome indica, deve trazer a certeza quanto à materialidade do delito,
definindo se o material analisado efetivamente se cuida de substância ilícita,
a fim de embasar um juízo definitivo acerca do delito.
Laudo definitivo, em regra,
é imprescindível
Diante disso, a Terceira Seção do
STJ, no julgamento do ERESp 1.544.057/RJ, pacificou o entendimento de que o
laudo toxicológico definitivo, em regra, é imprescindível à comprovação da
materialidade dos delitos envolvendo entorpecentes. Ausente o referido exame, é
forçosa a absolvição do acusado, ressalvada, no entanto, em situações
excepcionais, a possibilidade de aferição da materialidade do delito por laudo
de constatação provisório, desde que este tenha sido elaborado por perito
oficial e permita grau de certeza idêntico ao do laudo definitivo:
(...) 1. Nos casos em que ocorre a apreensão do entorpecente, o
laudo toxicológico definitivo é imprescindível à demonstração da materialidade
delitiva do delito e, nesse sentido, tem a natureza jurídica de prova, não
podendo ser confundido com mera nulidade, que corresponde a sanção cominada
pelo ordenamento jurídico ao ato praticado em desrespeito a formalidades
legais. (...)
2. Isso, no entanto, não elide a possibilidade de que, em
situação excepcional, a comprovação da materialidade do crime de drogas possa
ser efetuada pelo próprio laudo de constatação provisório, quando ele permita
grau de certeza idêntico ao do laudo definitivo, pois elaborado por perito
oficial, em procedimento e com conclusões equivalentes. Isso porque, a depender
do grau de complexidade e de novidade da droga apreendida, sua identificação
precisa como entorpecente pode exigir, ou não, a realização de exame mais
complexo que somente é efetuado no laudo definitivo.
3. Os testes toxicológicos preliminares, além de efetuarem
constatações com base em observações sensoriais (visuais, olfativas e táteis)
que comparam o material apreendido com drogas mais conhecidas, também fazem uso
de testes químicos pré-fabricados também chamados “narcotestes” e são capazes
de identificar princípios ativos existentes em uma gama de narcóticos já
conhecidos e mais comercializados.
4. Nesse sentido, o laudo preliminar de constatação, assinado
por perito criminal, identificando o material apreendido como cocaína em pó,
entorpecente identificável com facilidade mesmo por narcotestes pré-fabricados,
constitui uma das exceções em que a materialidade do delito pode ser provada
apenas com base no laudo preliminar de constatação.
5. De outro lado, muito embora a prova testemunhal e a confissão
isoladas ou em conjunto não se prestem a comprovar, por si sós, a materialidade
do delito, quando aliadas ao laudo toxicológico preliminar realizado nos moldes
aqui previstos, são capazes não só de demonstrar a autoria como também de
reforçar a evidência da materialidade do delito.
(...)
STJ. 3ª Seção. EREsp 1.544.057/RJ, Rel. Min. Reynaldo Soares da
Fonseca, DJe 9/11/2016.
Conclui-se que, havendo apreensão
de material considerado como “droga”, a prova de sua materialidade depende,
efetivamente, de algum tipo de exame de corpo de delito efetuado por perito que
possa identificar, com certo grau de certeza, a existência dos elementos
físicos e químicos que qualifiquem a substância como entorpecente.
Em situações excepcionais, o STJ
admite que a materialidade do crime de tráfico de drogas seja comprovada pelo
próprio laudo de constatação provisório. Trata-se de situação singular, em que
a constatação permite grau de certeza correspondente ao laudo definitivo, pois
elaborado por perito oficial, em procedimento e com conclusões equivalentes e
seguras atestando a presença de substância ilícita no material analisado.
Desse modo, se a materialidade
delitiva do crime de tráfico pode, excepcionalmente, ser comprovada por laudo
de constatação provisório, não há de ser diferente a compreensão nos casos em
que o exame toxicológico definitivo não possui assinatura válida do perito. Ou
seja, reputa-se que esses casos − em que não consta a assinatura do perito
oficial que elaborou o laudo toxicológico definitivo − também se enquadram nas
excepcionalidades mencionadas pelo EREsp 1.544.057/RJ.
O STJ, em diversos julgados,
firmou o entendimento de que a simples falta de assinatura do perito criminal
no laudo toxicológico definitivo constitui mera irregularidade e não tem o condão de anular o exame, sobretudo
nos casos em que o perito oficial está devidamente identificado com seu nome e
número de registro no documento e houve o resultado positivo para as
substâncias ilícitas analisadas.
Tese firmada
Com esses fundamentos, o STJ
fixou a seguinte tese:
A simples falta de assinatura do perito encarregado
pela lavratura do laudo toxicológico definitivo constitui mera irregularidade e
não tem o condão de anular a prova pericial na hipótese de existirem outros
elementos que comprovem a sua autenticidade, notadamente quando o expert
estiver devidamente identificado e for constatada a existência de substância
ilícita.
STJ. 3ª Seção.
REsps 2.048.422-MG, REsp 2.048.645-MG e REsp 2.048.440-MG, Rel. Min. Sebastião
Reis Júnior, julgado em 22/11/2023 (Recurso Repetitivo – Tema 1206) (Info 796).
Caso concreto
Voltando ao caso concreto, o STJ
consignou que, além da existência de outros indícios que caminham no sentido de
corroborar a autoria e materialidade do crime imputado aos recorridos,
destaca-se que, apesar de não haver a assinatura do perito subscritor no laudo
toxicológico definitivo, o laudo cuja legitimidade se questiona ostenta timbre
oficial; há indicação do responsável pela perícia, bem como códigos de barra
nos rodapés das páginas, identificando o documento, assim como, no canto
superior esquerdo das páginas do referido documento, certidão da Polícia Civil
atestando que o laudo pericial confere com o original extraído do sistema “PCnet”,
ratificando, portanto, a veracidade e a autenticidade das provas periciais.
Acrescentou, ainda, que o exame
preliminar, devidamente assinado pelo perito criminal responsável, certificou
que o material apreendido se comportou como maconha e cocaína.
Assim, a ausência da assinatura,
dentro desse contexto fático, não seria elemento suficiente para retirar a
validade do laudo definitivo.