Dizer o Direito

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

INFORMATIVO Comentado 14 Edição Extraordinária STJ (completo e resumido)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível mais um INFORMATIVO COMENTADO.

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 14 EDIÇÃO EXTRAORDINÁRIA DO STJ


DIREITO ADMINISTRATIVO

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

§  As empresas estatais prestadoras de serviços públicos essenciais, não dedicadas à exploração de atividade econômica com finalidade lucrativa e natureza concorrencial, são equiparadas à Fazenda Pública no que tange à prescrição.

 

CONCURSOS PÚBLICOS

§  Em concursos públicos, o critério utilizado para determinar se um candidato tem direito a participar das vagas reservadas para pessoas negras baseia-se nas características físicas visíveis, como a cor da pele e traços faciais, ao invés de sua herança genética ou ascendência.

 

SERVIDORES PÚBLICOS

§  A GACEN é extensível aos aposentados e pensionistas que se enquadrarem na hipótese legal, pressupondo a percepção da gratificação quando o servidor ainda estava em atividade.

 

PROCESSO ADMINISTRATIVO

§  Negado o recurso administrativo interposto contra a multa, a data de vencimento continua sendo aquela contida na primeira notificação, incidindo juros de mora a partir do primeiro dia subsequente ao vencimento do prazo previsto para o pagamento da multa.

 

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

§  O art. 57 da Lei 9.784/99 fala que o recurso administrativo tramitará por três instâncias; isso não significa, contudo, que a parte poderá interpor três recursos.

 

CONTRATOS ADMINISTRATIVOS

§  O contrato de financiamento habitacional celebrado por empresa pública com mutuários, ainda que de baixa renda, pode conter cláusula de alienação fiduciária e, em caso de inadimplemento, pode ser realizado o leilão do imóvel, não havendo ilegalidade nessa prática.

 

TEMAS DIVERSOS

§  O ente federado pode promover diretamente ação judicial contra operadora privada de plano de saúde para ressarcimento de valores referentes a prestação de serviço de saúde em cumprimento de ordem judicial.

 

DIREITO ADMINISTRATIVO MILITAR

§  O reconhecimento do direito à reforma é devido ao militar temporário não estável no caso de cegueira, sem distinção se ela atinge um ou os dois olhos, sendo dispensável a comprovação do nexo de causalidade com o serviço castrense.

 

DIREITO AMBIENTAL

INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA

§  O autuado por infração ambiental pode ser intimado por edital para apresentar alegações finais no processo administrativo federal?

 

RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO AMBIENTAL

§  O desmatamento e a exploração madeireira sem licença ou autorização do órgão ambiental ocasiona danos ambientais, constitui infração ambiental e gera indenização por dano moral coletivo in re ipsa, incidindo a Súmula 629/STJ.

 

DIREITO DO CONSUMIDOR

PLANO DE SAÚDE

§  A regulamentação e a fiscalização dos denominados ‘cartões de descontos em serviços de saúde’ são de competência da ANS.

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

COMPETÊNCIA

§  Compete à Justiça Federal julgar a causa, estabelecida entre particulares, que tem por objeto reintegração de posse de imóvel que faz parte de comunidade quilombola.

 

FAZENDA PÚBLICA EM JUÍZO

§  A modificação, na fase de liquidação, do índice de juros de mora especificamente estabelecido em decisão transitada em julgado e proferida após o advento do Código Civil de 2002 e da Lei 11.960/2009 constitui ofensa à coisa julgada.

 

EXECUÇÃO (IMPENHORABILIDADE)

§  É possível a penhora dos valores decorrentes de recompra dos Certificados financeiros do Tesouro Série E (CFT-E).

 

EXECUÇÃO FISCAL

§  O Tema 444/STJ tratou sobre o redirecionamento contra os sócios da pessoa jurídica executada e que foi dissolvida irregularmente; apesar disso, esse entendimento pode ser aplicado também para outros responsáveis tributários, como é o caso do fiador da pessoa jurídica executada.

 

PROCESSO COLETIVO

§  Aplica-se o entendimento exarado pelo STF no julgamento do ARE 709.212/DF ao cumprimento de sentença coletiva que se pretende a execução individual dos direitos referentes à cobrança de valores não depositados no FGTS.

 

DIREITO TRIBUTÁRIO

IMPOSTO DE RENDA

§  Se empresa brasileira contrata serviços técnicos e de assistência técnica, sem transferência de tecnologia, de empresas situadas em países como Argentina, Chile, África do Sul e Peru, deverá reter o imposto de renda ao fazer a remessa do pagamento.

§  O art. 9º, da Lei 9.429/95, não impõe limitação temporal para a dedução de Juros sobre Capital Próprio (JCP) referentes a exercícios anteriores.

§  O § 1º do art. 7º da IN SRF 213/2002 é ilegal, pois permite a tributação do resultado positivo da equivalência patrimonial de empresas controladas ou coligadas no exterior além dos lucros efetivamente realizados, contrariando a legislação vigente.


segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

A regulamentação e a fiscalização dos denominados ‘cartões de descontos em serviços de saúde’ são de competência da ANS

Cartões de descontos em serviços de saúde

Os cartões de desconto em serviços de saúde são uma alternativa para pessoas que buscam acesso a consultas médicas e exames com valores mais acessíveis, sem a necessidade de aderir a um plano de saúde tradicional.

O usuário paga um valor (taxa de adesão, mensalidade ou anuidade) e, em troca, recebe um cartão que oferece descontos em diversos serviços médicos, como consultas e exames, em uma rede de prestadores parceiros da empresa que oferece o cartão.

Após o pagamento da taxa, o consumidor pode começar a utilizar o cartão imediatamente, sem período de carência, para obter descontos em consultas, exames e, em alguns casos, em farmácias e outros estabelecimentos. Os descontos são possíveis graças a parcerias com clínicas, laboratórios e outros profissionais de saúde.

É importante ressaltar que os cartões de desconto em saúde não são planos de saúde. Eles oferecem descontos em procedimentos médicos, mas não cobrem atendimentos emergenciais e internações, como fazem os planos de saúde. Alguns cartões podem até oferecer atendimento online em caso de emergências, mas isso não substitui um plano de saúde para situações de urgência.

 

Feito esse esclarecimento, imagine a seguinte situação adaptada:

O Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública contra a empresa “TODOS Empreendimentos LTDA”, bem como contra a ANS e a ANEEL.

 

A ANS, Agência Nacional de Saúde Suplementar, é uma autarquia sob regime especial (agência reguladora), criada pela Lei nº 9.961/2000, sendo responsável, dentre outras atribuições, por regular o setor de planos de saúde no país.

A ANEEL, Agência Nacional de Energia Elétrica, também é uma autarquia sob regime especial, criada pela Lei nº 9.427/96, com a finalidade de regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica no Brasil.

 

Argumentação do MPF contra a TODOS: a empresa estaria se apresentando, para o público consumidor, como uma operadora de plano de saúde que fornece a seus segurados descontos em serviços de saúde, educação e lazer, mediante a utilização do cartão denominado “CARTÃO DE TODOS”. Tratava-se, no entanto, apenas de um cartão de descontos em serviços de saúde.

O serviço era cobrado mediante o débito nas contas de energia elétrica, o que causava confusão aos consumidores.

Além de tudo, tal empresa não estava registrada na ANS para operar como plano de saúde.

 

Argumentação do MPF contra a ANEEL: alegou que a inclusão do pagamento dos “cartões de descontos” na mesma fatura e código de barras do serviço de energia elétrica é uma prática abusiva, que viola o Código de Defesa do Consumidor. A agência teria sido omissa ao permitir as cobranças indevidas nas faturas de energia elétrica.

 

Argumentação do MPF contra a ANS: alegou que a ANS deveria ter fiscalizado e regulamentado os serviços prestados pela TODOS, que estaria oferecendo descontos em saúde mas operando à margem da lei.

 

Vejamos o que o STJ decidiu em relação à ANEEL e a ANS.

 

É lícita a inclusão do pagamento dos “cartões de descontos” na mesma fatura e código de barras do serviço de energia elétrica?

NÃO.

Há necessidade do controle de legalidade da forma de cobrança dos multicitados “cartões de desconto em serviço de saúde” em razão do que dispõem os arts. 6º, III e IV; 37, §§1º e 3º, e 39, I, do CDC.

A fatura para pagamento da conta de energia e do multicitado “cartão de desconto em serviço de saúde” não admite pagamento parcial, e ao consumidor somente é comunicado o direito à cisão das cobranças quando já inadimplente e sujeito à suspensão do fornecimento de energia elétrica.

Embora seja formalmente facultado ao consumidor notificar a concessionária de energia quanto à discordância sobre o valor cobrado pelo “cartão de desconto”, tal faculdade não é clara e intuitiva, reverberando o caráter indevido e coercitivo resultante da cobrança conjunta (casada), que retira a liberdade de escolha garantida ao consumidor pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Desse modo, não é admissível a cobrança da energia elétrica e do denominado “cartão de descontos em serviços de saúde” em um único código de barras. Isso porque confunde o consumidor que normalmente utiliza tal produto - via de regra de baixa renda e portanto mais vulnerável e hipossuficiente - sobre os serviços e produtos que estão sendo efetivamente pagos, levando-o a uma falsa percepção de que, em não sendo quitada a dívida do “cartão de descontos”, o fornecimento de energia poderá ser interrompido. Tal prática desrespeita a legislação consumerista, em especial os arts. 6º, III e IV; 37, §§1º e 3º, e 39, I, do CDC.

STJ. 2ª Turma. AgInt no AREsp 2.183.704/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 2/10/2023.

 

A ANS deveria ter fiscalizado a empresa?

SIM.

A Lei nº 9.656/98, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, prevê, em seu art. 1º:

Art. 1º Submetem-se às disposições desta Lei as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde, sem prejuízo do cumprimento da legislação específica que rege a sua atividade e, simultaneamente, das disposições da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), adotando-se, para fins de aplicação das normas aqui estabelecidas, as seguintes definições:

(...)

§ 1º Está subordinada às normas e à fiscalização da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS qualquer modalidade de produto, serviço e contrato que apresente, além da garantia de cobertura financeira de riscos de assistência médica, hospitalar e odontológica, outras características que o diferencie de atividade exclusivamente financeira, tais como:

(...)

b) oferecimento de rede credenciada ou referenciada;

 

Tais dispositivos devem ser interpretados sistematicamente com o CDC, especialmente com os arts. 2º e 6º, I, III, IV e VI, voltados à defesa dos direitos que transcendem o individual, como é o caso da saúde, consagrando o direito à tutela da vida, da integridade física e a efetiva prevenção dos danos que puderem advir de práticas abusivas.

A vulnerabilidade dos consumidores que contratam e se valem de tais “cartões de desconto em serviços de saúde”, via de regra economicamente hipossuficientes sob o ponto de vista técnico, jurídico e econômico, evidencia e reforça a necessidade da regulamentação e fiscalização desse produto pela ANS, de forma a tutelar a vida, a saúde e a segurança dos consumidores, nos exatos termos da Lei Consumerista e da Lei nº 9.656/98.

O  STJ já julgou, na Corte Especial, a legitimidade do ato administrativo da ANS consistente na suspensão de comercialização de produtos (planos de saúde) avaliados negativamente pela autarquia federal.

Tal entendimento deve se estender - principalmente - aos chamados “cartões de desconto em serviços de saúde”, que seguem a mesma sistemática de oferta, com descontos, de rede credenciada ou referenciada de atendimento em saúde aos consumidores, porquanto se assemelham aos planos de saúde em regime de coparticipação, sendo irrelevante, para efeito de tutela dos direitos do consumidor, o fato de os pagamentos aos profissionais de saúde serem realizados diretamente pelos usuários, e não pelo plano de saúde.

Desse modo, a atuação da ANS precisa atuar neste caso para garantir a clareza e a adequação das informações sobre esses produtos, assegurando que seus usuários compreendam eventuais diferenças existentes para com os tradicionais planos de saúde.

 

Em suma:

A regulamentação e a fiscalização dos denominados "cartões de descontos em serviços de saúde" são de competência da Agência Nacional de Saúde. 

STJ. 2ª Turma. AgInt no AREsp 2.183.704-SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 2/10/2023 (Info 14 – Edição Extraordinária).


sábado, 27 de janeiro de 2024

Um Estado pode entrar com ação diretamente contra uma operadora de plano de saúde para recuperar custos de tratamento médico fornecido a um beneficiário do plano, conforme determinado por decisão judicial?

Antes de explicar o julgado, é importante relembrarmos em que consiste o chamado ressarcimento ao SUS.

 

Ressarcimento ao SUS

O art. 32 da Lei nº 9.656/98 prevê que, se um cliente do plano de saúde utilizar-se dos serviços do SUS, o Poder Público poderá cobrar do referido plano o ressarcimento que ele teve com essas despesas. Veja:

Art. 32.  Serão ressarcidos pelas operadoras dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei, de acordo com normas a serem definidas pela ANS, os serviços de atendimento à saúde previstos nos respectivos contratos, prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde - SUS. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44/2001)

 

Assim, o chamado “ressarcimento ao SUS”, criado pelo art. 32 da Lei nº 9.656/98, é uma obrigação legal das operadoras de planos privados de assistência à saúde de restituir as despesas que o SUS teve ao atender uma pessoa que seja cliente e que esteja coberta por esses planos.

Apenas a título de curiosidade, na prática funciona assim:

1) O paciente é atendido em uma instituição pública ou privada, conveniada ou contratada, integrante do SUS;

2) A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) cruza os dados dos sistemas de informações do SUS com o Sistema de Informações de Beneficiários (SIB) da própria Agência para identificar as pessoas que foram atendidas na rede pública e que possuem plano de saúde;

3) A ANS notifica a operadora informando os atendimentos que realizou relacionados com seus clientes;

4) A operadora pode contestar isso nas instâncias administrativas, dizendo, por exemplo, que aquele serviço utilizado pelo seu cliente no SUS não era coberto pelo plano, que o paciente já havia deixado de ser usuário do plano etc.

5) Não havendo impugnação administrativa ou não sendo esta acolhida, a ANS cobra os valores devidos.

6) Caso não haja pagamento, a operadora será incluída no CADIN e os débitos inscritos em dívida ativa da ANS para, em seguida, serem executados.

7) Os valores recolhidos a título de ressarcimento ao SUS são repassados pela ANS para o Fundo Nacional de Saúde.

 

O art. 32 da Lei nº 9.656/98 é constitucional? É válida a sistemática do ressarcimento ao SUS?

SIM.

É constitucional o ressarcimento previsto no art. 32 da Lei nº 9.656/98, o qual é aplicável aos procedimentos médicos, hospitalares ou ambulatoriais custeados pelo SUS e posteriores a 4.6.1998, assegurados o contraditório e a ampla defesa, no âmbito administrativo, em todos os marcos jurídicos.

STF. Plenário. RE 597064/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 7/2/2018 (Repercussão Geral – Tema 345) (Info 890).

 

Imagine agora a seguinte situação hipotética:

Regina precisou realizar uma cirurgia bariátrica, que foi negada pelo SUS.

Inconformada, Regina ingressou com ação contra o Estado do Rio Grande do Sul a fim de obrigá-lo a custear o procedimento.

O juiz deferiu a tutela provisória de urgência e a Regina realizou a cirurgia custeada pelo SUS.

Ao final, a tutela foi confirmada e o pedido julgado procedente. Houve o trânsito em julgado.

Depois de um tempo, a Administração Pública constatou que Regina era cliente do plano de saúde Unimed, que tinha obrigação contratual de custear a bariátrica.

O Estado-membro tentou, administrativamente, conseguir o ressarcimento das despesas com o plano de saúde, mas o pedido foi negado.

Diante desse cenário, o Estado-membro ajuizou ação contra a Unimed buscando o ressarcimento ao SUS, com base no art. 32 da Lei nº 9.656/98.

A Unimed contestou apresentando dois argumentos principais:

1) o art. 32 não se aplicaria em casos de serviço prestado pelo SUS por força de decisão judicial;

2) a ANS é quem seria a responsável pelo ressarcimento, e não o Estado.

 

O STJ concordou com os argumentos do Estado-membro ou da Unimed?

Do Estado-membro.

O art. 32 da Lei nº 9.656/98 permite que os entes federados, ao cumprirem diretamente ordem judicial de prestação de saúde pelo SUS, possam, posteriormente, reclamar judicialmente o ressarcimento das despesas contra a operadora privada de plano de saúde.

Esse art. 32 não faz nenhuma ressalva, de forma que ele admite, de maneira ampla, a possibilidade de ressarcimento do serviço prestado em instituição integrante do SUS, independentemente de esse procedimento ter sido oferecido espontaneamente ou por determinação judicial.

Não há como excluir, das hipóteses de ressarcimento, os casos em que o atendimento (do segurado de plano particular) pelo SUS é determinado por ordem judicial, sob pena de “culminar com o patrocínio estatal da atividade privada” (STF, RE 597.064/RJ).

O art. 32 prevê um processo administrativo para o reembolso. Neste rito, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é a responsável por determinar o valor do serviço prestado pelo SUS, cobrar esse valor da operadora de plano de saúde privado, repassar o dinheiro ao Fundo Nacional de Saúde e, depois, compensar financeiramente a entidade que pagou pelo serviço.

No entanto, em casos específicos onde uma decisão judicial já determinou que o SUS forneça o procedimento/tratamento, não faria sentido seguir esse processo administrativo. Isso porque a decisão judicial já traz em si todas as informações necessárias para justificar o reembolso ao ente federativo que prestou o serviço.

Portanto, o processo administrativo conduzido pela ANS é uma das vias de ressarcimento, sendo a principal, que atende os casos ordinários (comuns). Mas não é o único meio. Os Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, após fornecerem serviços de saúde por ordem judicial, também podem promover diretamente a ação judicial contra o plano de saúde pedindo o reembolso dos valores gastos com o tratamento fornecido por força de decisão judicial.

 

Em suma:

O ente federado pode promover diretamente ação judicial contra operadora privada de plano de saúde para ressarcimento de valores referentes a prestação de serviço de saúde em cumprimento de ordem judicial. 

STJ. 1ª Turma. REsp 1.945.959-RS, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 17/10/2023 (Info 14 – Edição Extraordinária).


sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Em concursos públicos, o critério utilizado para determinar se um candidato tem direito a participar das vagas reservadas para pessoas negras baseia-se nas características físicas visíveis, como a cor da pele e traços faciais, e não apenas na sua herança genética ou ascendência

Imagine a seguinte situação hipotética:

João inscreveu-se em concurso público para o cargo de auditor fiscal no Estado da Bahia. Ele se candidatou às vagas reservadas para negros, tendo se declarado como pardo.

João foi aprovado em 1º lugar nas vagas reservadas para negros.

Ele foi então convocado para se submeter a um procedimento chamado de “aferição da condição autodeclarada”, a ser realizado por uma comissão especial. Vale ressaltar que esse procedimento estava previsto no edital, que afirmava que o critério de orientação para a confirmação do direito à cota era o fenótipo, e não meramente o genótipo ou a ancestralidade do candidato.

 

Primeira pergunta: isso é possível? O edital do concurso pode exigir que o candidato autodeclarado preto ou pardo se submeta a uma banca de heteroidentificação?

SIM.

É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa.

STF. Plenário. ADC 41/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 8/6/2017 (Info 868).

 

 O critério da autodeclaração é, em princípio, válido. Isso porque deve-se respeitar as pessoas tal como elas se percebem. Entretanto, é possível também que a Administração Pública adote um controle heterônomo, até mesmo para evitar abusos na autodeclaração.

Exemplos desse controle heterônomo: exigência de autodeclaração presencial perante a comissão do concurso; exigência de apresentação de fotos pelos candidatos; formação de comissões com composição plural para entrevista dos candidatos em momento posterior à autodeclaração.

 

Segunda pergunta: o que é fenótipo e genótipo?

• Fenótipo: refere-se às características observáveis de um indivíduo, como cor da pele, textura do cabelo, traços faciais etc. É o fenótipo que é considerado nos concursos públicos para determinar se um candidato é elegível para concorrer nas cotas raciais.

• Genótipo: refere-se à composição genética de um indivíduo, que inclui informação sobre seus ancestrais e herança genética. O candidato não pode ser incluído nas cotas raciais de concursos públicos com base unicamente no critério do genótipo.

 

Voltando ao caso concreto:

A comissão de heteroidentificação não reconheceu João como pardo, sob o argumento de que ele não apresentava os respectivos traços fenotípicos. Afirmou a comissão:

“Considerando a análise das imagens, verificou-se que o candidato, não apresenta traços fenotípicos negroides, que no seu conjunto ou isoladamente o remetam ao grupo destinatário da política de cotas.”

 

Inconformado, ele impetrou mandado de segurança alegando, dentre outros argumentos, que a Administração Pública, ao analisar se um candidato tem direito de concorrer à vagas reservadas para negros, não pode fazer uma a avaliação baseada no fenótipo do candidato, devendo  analisar seu genótipo ou ancestralidade. Argumentou que seus ancestrais são negros e que, portanto, tem o genótipo de negro.

O Tribunal de Justiça da Bahia denegou a segurança (julgou improcedente o pedido).

Ainda inconformado, João interpôs recurso ordinário em mandado de segurança dirigido ao STJ:

Constituição Federal

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

II - julgar, em recurso ordinário:

(..)

b) os mandados de segurança decididos em única instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando denegatória a decisão;

 

O STJ acolheu os argumentos de João?

NÃO.

O entendimento do STJ é o de que o critério de orientação para a confirmação do direito à concorrência especial deve se basear no fenótipo, e não meramente no genótipo, na ancestralidade do candidato. Nesse sentido:

O critério de orientação para a confirmação do direito à concorrência especial há de fundar-se no fenótipo e não meramente no genótipo, na ancestralidade do candidato.

STJ. 2ª Turma. AREsp 1.407.431/RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 14/5/2019.

 

(...) IV. O Edital que regula o referido concurso público prevê a adoção do critério de fenotipia (e não do genótipo ou ancestralidade) - ou seja, a manifestação visível das características físicas da pessoa -, para a seleção de candidatos autodeclarados negros (pretos ou pardos), estabelecendo que a autodeclaração étnico-racial deve ser aferida por uma Comissão de Verificação, adotando, ainda, o sistema misto de identificação do sistema de cotas raciais, no qual o enquadramento do candidato como negro não é efetuado somente com base na autodeclaração do candidato, mas sim em uma posterior análise por comissão especial, especialmente designada heteroidentificação.

(...)

VI. No caso, apesar da declaração da parte recorrente ser pessoa de etnia negra, a questão foi submetida, posteriormente, a uma Comissão para aferição dos requisitos, a qual, seguindo os termos do edital, não reconheceu a condição autodeclarada da autora, com base nos critérios fenotípicos. Diante do que ora sustenta, a análise da irresignação acerca do enquadramento nos requisitos para concorrência especial e da fundamentação do ato que determinou sua exclusão do concurso exigiria a dilação probatória, o que é sabidamente inviável na via escolhida, sem prejuízo das vias ordinárias. (...)

STJ. 2ª Turma. AgInt no RMS 61.579/RS, Rel. Min. Assusete Magalhães, julgado em 27/6/2022.

 

Em suma:

O critério de orientação para a confirmação do direito à concorrência especial funda-se no fenótipo, e não meramente no genótipo, na ancestralidade do candidato. 

STJ. 1ª Turma. AgInt nos EDcl no RMS 69.978-BA, Rel. Min. Paulo Sérgio Domingues, julgado em 23/10/2023 (Info 14 – Edição Extraordinária).

 

Vale ressaltar que existem julgados do STJ nem admitindo mandado de segurança nesses casos quando o impetrante busca a reanálise de provas:

É inadequado o manejo de mandado de segurança com vistas à defesa do direito de candidato em concurso público a continuar concorrendo às vagas reservadas às pessoas pretas ou pardas, quando a comissão examinadora de heteroidentificação não confirma a sua autodeclaração.

STJ. 1ª Turma. RMS 58785-MS, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 23/08/2022 (Info 746).

 

No caso concreto acima explicado, João não pretendia a reanálise de provas, razão pela qual foi conhecido o mandado de segurança.

Vale registrar, por fim, que o candidato só pode ser excluído de concurso público por não se enquadrar na cota para negros se houver contraditório e ampla defesa:

A exclusão do candidato, que concorre à vaga reservada em concurso público, pelo critério da heteroidentificação, seja pela constatação de fraude, seja pela aferição do fenótipo ou por qualquer outro fundamento, exige o franqueamento do contraditório e da ampla defesa.

STJ. 2ª Turma. RMS 62040-MG, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 17/12/2019 (Info 666).


quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

As empresas estatais que prestam serviços públicos essenciais e não se dedicam à exploração de atividade econômica com finalidade lucrativa e natureza concorrencial são equiparadas à Fazenda Pública no que se refere à prescrição?

CDHU

A Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) é uma empresa pública (pessoa jurídica de direito privado) vinculada ao Estado de São Paulo.

A empresa tem por finalidade executar programas habitacionais em todo o território do Estado, voltados para o atendimento exclusivo da população de baixa renda.

Desse modo, podemos dizer que é a CDHU é uma entidade da Administração Indireta, com personalidade jurídica de direito privado, que atua na prestação de serviços públicos essenciais sem finalidade lucrativa e sem natureza concorrencial.

 

Imagine agora a seguinte situação hipotética:

A empresa Alfa foi contratada pela CDHU para construir um prédio.

A contratada fez a obra e, em março de 2015, a CDHU pagou o valor combinado no contrato.

Ocorre que esse pagamento foi feito com meses de atraso, porém, sem juros e correção monetária.

Diante disso, em março de 2019, a ALFA ajuizou ação contra a CDHU cobrando juros legais e correção monetária considerando que a companhia pagou apenas o valor principal.

Em contestação, a CDHU alegou a ocorrência da prescrição trienal, com base no art. 206, § 3º, do Código Civil. Isso porque o pagamento foi feito em março de 2015 e a ação somente foi proposta em março de 2019 (quatro anos depois). Veja o dispositivo legal invocado:

Art. 206. Prescreve:

(...)

§ 3º Em três anos:

(...)

III - a pretensão para haver juros, dividendos ou quaisquer prestações acessórias, pagáveis, em períodos não maiores de um ano, com capitalização ou sem ela;

 

O juiz rejeitou a alegação de prescrição sob o argumento de que o prazo prescricional seria de 5 anos, com base no art. 1º do Decreto 20.910/32:

Art. 1º As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.

 

A CDHU interpôs recurso, no qual defendeu que não o art. 1º do Decreto 20.910/32 não poderia ser aplicado para sociedades de economia mista.

 

O STJ concordou com a CDHU? O prazo prescricional é de 3 ou 5 anos?

NÃO. O prazo prescricional é de 5 anos. Aplica-se a prescrição quinquenal do Decreto nº 20.910/1932 às empresas estatais prestadoras de serviços públicos essenciais, não dedicadas à exploração de atividade econômica com finalidade lucrativa e natureza concorrencial, como é o caso da CDHU.

O art. 1º do Decreto nº 20.910/1932 fala em Fazenda:

Art. 1º As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.

 

Esse prazo de 5 anos, contudo, também é aplicável para “autarquias ou entidades e órgãos paraestatais” por expressa disposição do art. 2º do Decreto-Lei nº 4.597/1942:

Art. 2º O Decreto nº 20.910, de 6 de janeiro de 1932, que regula a prescrição quinquenal, abrange as dívidas passivas das autarquias, ou entidades e órgãos paraestatais, criados por lei e mantidos mediante impostos, taxas ou quaisquer contribuições, exigidas em virtude de lei federal, estadual ou municipal, bem como a todo e qualquer direito e ação contra os mesmos.

 

As empresas públicas e sociedades de economia mista - comumente designadas de empresas estatais -, possuem um regime jurídico híbrido, caracterizando-se pela convivência entre normas de Direito Público e de Direito Privado.

Assim, essas empresas, por mais que tenham sido constituídas como pessoas jurídicas de direito privado, sofrem também influxo (influência) de normas de direito público.

 

Se as empresas públicas e sociedades de economia mista...

• forem prestadoras de serviços públicos essenciais;

• não se dedicarem à exploração de atividade econômica com finalidade lucrativa; e

• tiverem natureza concorrencial...

 

... receberão tratamento jurídico assemelhado ao das pessoas jurídicas de direito público, operando-se verdadeira extensão do conceito de Fazenda Pública.

 

Logo, as empresas estatais prestadoras de serviços públicos essenciais, não dedicadas à exploração de atividade econômica com finalidade lucrativa e natureza concorrencial são equiparadas à Fazenda Pública.

Como são equiparadas à Fazenda Pública, as regras de prescrição estabelecidas no Código Civil não vão ter incidência quando a demanda envolver empresa estatal prestadora de serviços públicos essenciais, não dedicada à exploração de atividade econômica com finalidade lucrativa e natureza concorrencial.

Em tais casos, aplica-se a prescrição quinquenal do Decreto nº 20.910/1932, por se tratar de entidade que, conquanto dotada de personalidade jurídica de direito privado, faz as vezes do próprio ente político ao qual se vincula e, com isso, pode, em certa medida, receber tratamento assemelhado ao de Fazenda Pública.

 

Em suma:

Aplica-se o regime normativo prescricional das pessoas jurídicas de direito público, previsto no Decreto nº 20.910/1932 e no Decreto-Lei nº 4.597/1942, às entidades da Administração Indireta com personalidade de direito privado que atuem na prestação de serviços públicos essenciais sem finalidade lucrativa e sem natureza concorrencial.

STJ. Corte Especial. EREsp 1.725.030-SP, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 14/12/2023 (Info 14 – Edição Extraordinária).


segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Revisão para o concurso de Promotor de Justiça de Goiás (MP/GO)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível a Revisão para o concurso de Promotor de Justiça de Goiás (MP/GO).

Bons estudos.



Revisão para o concurso de Delegado da Polícia Civil de Santa Catarina (PC/SC)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível a revisão para o concurso de Delegado da Polícia Civil de Santa Catarina (PC/SC).

Boa prova.






sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Súmula 664 do STJ

Imagine a seguinte situação hipotética:

João foi preso dirigindo uma motocicleta mesmo sem ter habilitação.

Ele conduzia a moto em zigue-zague entre as duas pistas de rolamento, quase atropelando pedestres que atravessavam a rua, gerando, assim, perigo de dano.

Ficou constatado ainda que estava embriagado.

João foi processado e condenado pela prática dos crimes dos arts. 306 e 309 do Código de Trânsito, em concurso material (art. 69 do Código Penal):

Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

 

Art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano:

Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.

 

Art. 69. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.

 

João foi sentenciado a uma pena de 1 ano e 15 dias de detenção, em regime inicial semiaberto, e à suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor por 2 meses. A pena privativa de liberdade foi substituída por duas penas restritivas de direitos.

 

Recurso da defesa

O condenado interpôs apelação pedindo o afastamento do concurso material entre os arts. 306 e 309 do CTB, pois defendeu que o réu teria praticado apenas uma conduta (conduzir o veículo).

Logo, deveria ser aplicado o princípio da consunção.

Subsidiariamente, como segunda tese defensiva, o réu pediu que fosse aplicada a regra do concurso formal (art. 70 do CP), e não do concurso material (art. 69 do CP).

 

A primeira tese da defesa é aceita pelo STJ? É possível aplicar o princípio da consunção neste caso para que o agente responda por um só crime?

NÃO.

Aplica-se o princípio da consunção quando um crime é meio necessário ou normal fase de preparação ou de execução de outro crime. Conforme ensina Michael Procópio:

“Segundo o princípio da consunção ou absorção, o crime (fato) previsto por uma norma (consunta ou consumida) constitui meio necessário ou fase normal de preparação de outro crime (previsto na norma consuntiva). Nesse caso, apenas a norma consuntiva será aplicada no caso concreto.” (AVELAR, Michael Procópio. Manual de Direito Penal. Salvador: Juspodivm, 2023, p. 184).

 

Os crimes previstos nos arts. 306 e 309 do CTB são autônomos, com objetividades jurídicas distintas, motivo pelo qual não incide o postulado da consunção.

O delito de condução de veículo automotor sem habilitação não se afigura como meio necessário nem como fase de preparação ou de execução do crime de embriaguez ao volante (STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1.745.604/MG, Rel. Min. Reynaldo Soares Da Fonseca, julgado em 14/8/2018).

Também não há que se falar em aplicação do princípio da subsidiariedade:

A orientação jurisprudencial deste Tribunal Superior está sedimentada no sentido de que os crimes do art. 306, caput, e do art. 309, ambos do Código de Trânsito Brasileiro, não possuem relação de subsidiariedade, sendo delitos autônomos, com objetividades jurídicas distintas.

STJ. 6ª Turma. AgRg no REsp 1.923.977/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 20/9/2022.

 

A segunda tese da defesa é acolhida pelo STJ? É possível, neste caso, aplicar a regra do concurso formal?

NÃO.

Os tipos penais do art. 306 e 309 do CTB possuem momentos consumativos distintos.

O crime de embriaguez ao volante (art. 306 do CTB) é de perigo abstrato, de mera conduta.

O crime de direção de veículo automotor sem a devida habilitação (art. 309 do CTB) é de perigo concreto.

É impossível aplicar o concurso formal de crimes no presente caso, pois há duas ações isoladas, com desígnios de vontades autônomas e com dois resultados distintos.

O momento em que o acusado passou a conduzir a motocicleta em via pública, com a capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool (art. 306 do CTB), não se confunde com aquele que é flagrado dirigindo referido automóvel, sem a devida habilitação ou permissão para dirigir (art. 309 do CTB), em zigue-zague entre as duas pistas de rolamento, quase atropelando pedestres que atravessavam a rua, gerando, assim, perigo de dano. Nesse sentido:

Tendo havido a indicação de que os delitos, autônomos, resultaram de ações distintas, não incide o concurso formal aos tipos penais dos artigos 306 (embriaguez ao volante) e o art. 309 (direção de veículo automotor sem a devida habilitação) do Código de Trânsito Brasileiro.

STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 749.440-SC, Rel. Min. Jesuíno Rissato (Desembargador convocado do TJDFT), julgado em 23/8/2022.

 

Em suma

Súmula 664-STJ: É inaplicável a consunção entre o delito de embriaguez ao volante e o de condução de veículo automotor sem habilitação.

STJ. 3ª Seção. Aprovada em 08/11/2023.


quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

A Fazenda Pública é obrigada a aceitar a execução invertida?

STF JULGOU CONSTITUCIONAL A PRÁTICA DA EXECUÇÃO INVERTIDA NOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS

Execução invertida

O CPC prevê que a execução contra a fazenda pública deverá ser deflagrada por iniciativa do credor (exequente), que apresentará os cálculos do valor que entende devido. Nesse sentido, confira o que diz o art. 534 do CPC:

Art. 534. No cumprimento de sentença que impuser à Fazenda Pública o dever de pagar quantia certa, o exequente apresentará demonstrativo discriminado e atualizado do crédito contendo:

I - o nome completo e o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica do exequente;

II - o índice de correção monetária adotado;

III - os juros aplicados e as respectivas taxas;

IV - o termo inicial e o termo final dos juros e da correção monetária utilizados;

V - a periodicidade da capitalização dos juros, se for o caso;

VI - a especificação dos eventuais descontos obrigatórios realizados.

 

Ocorre que se percebeu que, na maioria das vezes, o credor é pessoa que dispõe de poucos recursos e que não tem quem possa fazer esses cálculos. Essa realidade se mostra ainda mais evidente no caso dos Juizados Especiais Federais. Pensando nisso, alguns juízes dos Juizados Especiais idealizaram uma adaptação do procedimento, que ficou conhecida como “execução invertida”.

A execução invertida, em palavras simples, consiste no seguinte: havendo uma decisão transitada em julgado condenando a Fazenda Pública ao pagamento de uma quantia considerada como de “pequeno valor”, o juiz do Juizado Especial Federal intima o Poder Público (devedor) para que este elabore a planilha de cálculos com o valor que é devido e apresente isso nos autos para análise do credor. Caso este concorde, haverá o pagamento voluntário da obrigação e a execução se encerra rapidamente.

O ônus de preparar esses cálculos e pedir a execução seria do particular (credor). No entanto, com essa sistemática, há uma inversão desse ônus, de forma que a própria Fazenda Pública, mesmo sendo a devedora, é quem apresenta os cálculos da quantia devida. Vale ressaltar que esses cálculos, obviamente, deverão ser realizados segundo os parâmetros que foram fixados pelo juízo na sentença/acórdão (título executivo judicial).

A execução invertida é amplamente admitida nos Juizados Especiais Federais. Nesse sentido:

Enunciado nº 129 do FONAJEF: Nos Juizados Especiais Federais, é possível que o juiz determine que o executado apresente os cálculos de liquidação.

 

ADPF

A União ajuizou ADPF para questionar decisões dos Juizados Especiais Federais do Rio de Janeiro que impuseram a ela o dever da execução invertida, isto é, o dever de apurar ou indicar, nos processos em que figure como ré ou executada, o valor devido à parte autora.

A União argumentou que a chamada execução invertida seria inconstitucional.

 

O STF acolheu o argumento da União? É inconstitucional a exigência feita pelo juízo no sentido de que a Fazenda Pública apresente os documentos e faça os cálculos do quanto terá que pagar?

NÃO.

Não ofende a ordem constitucional determinação judicial de que a União proceda aos cálculos e apresente os documentos relativos à execução nos processos em tramitação nos juizados especiais cíveis federais, ressalvada a possibilidade de o exequente postular a nomeação de perito.

STF. Plenário. ADPF 219/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 20/5/2021 (Info 1018).

 

O STF considerou legítima a determinação de que, em decisões judiciais proferidas pelos Juizados Especiais Federais, a União efetue os cálculos para a execução das verbas devidas nas ações em que for condenada.

Entre os princípios que regem o microssistema processual dos juizados especiais federais — versados na Lei nº 9.099/95 e na Lei nº 10.259/2001 — estão os da simplicidade, da economia processual e da celeridade. A legislação potencializa o acesso à Justiça.

Em regra, é do credor a iniciativa nas execuções civis, cabendo-lhe instruir a execução com os cálculos da obrigação materializada no título. Apesar disso, não há vedação legal a que se exija a colaboração do executado, principalmente quando se trata de ente da Administração Pública federal.

No âmbito dos juizados especiais federais, tudo indica ser possível a inversão da ordem. A relação estabelecida entre o particular que procura o juizado e a União é, evidentemente, assimétrica. Logo, impõe-se potencializar os poderes conferidos pelo CPC ao magistrado para restabelecer a efetiva igualdade entre as partes.

A leitura atual do papel exercido pela Administração Pública dá primazia ao interesse público primário. A própria legislação dos juizados pressupõe que a Administração agirá no intuito de buscar a efetividade dos direitos dos administrados.

Exigir que exista sempre a intervenção de perito designado pelo juízo revela incompatibilidade com os princípios da economia processual, da celeridade e da efetividade do processo.

A nomeação de perito representa custo ao Erário com os honorários correspondentes.

Além disso, os cálculos efetuados deverão ser posteriormente revistos pela própria Administração fazendária a fim de verificar o acerto do valor apurado.

De igual modo, se o exequente apresentar valor excessivo, caberá à Fazenda declarar de imediato o valor que entenda correto.

Logo, como a Fazenda Pública terá que sempre analisar o valor, melhor que já faça isso de início, facilitando todo o processo.

Acrescente-se, ainda, que, em última análise, o dever de colaboração imputável ao Estado decorre dos princípios da legalidade, da moralidade, da eficiência, e do subprincípio da economicidade.

Obs: vale ressaltar que, apesar de a tese fixada pelo STF falar apenas em União, é possível que seu raciocínio seja também aplicado para as entidades federais, como o INSS, e para os outros entes federativos, como Estados, DF e Municípios.

 

O credor será obrigado a aceitar a execução invertida?

NÃO. O credor pode fazer absoluta questão de que os cálculos sejam realizados por terceiro imparcial (perito do juízo). Em tais hipóteses, ele deverá formular requerimento expresso, incumbindo ao Estado viabilizar a atuação do perito.

 

A FAZENDA PÚBLICA NÃO É OBRIGADA A ACEITAR A EXECUÇÃO INVERTIDA NO PROCEDIMENTO COMUM

Imagine a seguinte situação hipotética:

João ajuizou ação contra o INSS pedindo a concessão de aposentadoria no valor mensal de R$ 7.500,00.

Essa ação foi ajuizada na vara federal comum (procedimento comum), e não no Juizado Especial Federal (procedimento sumaríssimo). Por quê?

Normalmente, as ações previdenciárias propostas contra o INSS são de competência dos Juizados Especiais Federais. Isso, contudo, nem sempre é verdadeiro.

Os Juizados Especiais Federais somente podem julgar causas de até 60 salários-mínimos. Dizemos que este é o teto do JEF, conforme prevê o caput do art. 3º, da Lei nº 10.259/2001:

Art. 3º Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças.

 

Se o autor vai ajuizar uma ação pedindo um benefício previdenciário (ex: uma aposentadoria), o cálculo do valor da causa deverá considerar a soma das 12 prestações que ainda irão vencer. Isso está previsto no § 2º do art. 3º da Lei nº 10.259/2001:

Art. 3º (...)

§ 2º Quando a pretensão versar sobre obrigações vincendas, para fins de competência do Juizado Especial, a soma de doze parcelas não poderá exceder o valor referido no art. 3º, caput.

 

Em nosso exemplo, fazendo esse cálculo, o valor da causa seria superior a 60 salários-mínimos e, portanto, essa ação de João não é de competência do JEF por ultrapassar o seu teto.

 

Voltando ao caso concreto:

O Juiz Federal, no procedimento comum, julgou o pedido procedente e condenou o INSS a conceder a aposentadoria ao autor.

O INSS foi condenado, ainda, a pagas as parcelas devidas desde a data do requerimento administrativo, corrigidos monetariamente e acrescidos de juros de mora, na forma do Manual de Cálculos da Justiça Federal.

Os honorários sucumbenciais foram arbitrados em 10% sobre o valor da condenação.

Constou ainda na sentença que, com o trânsito em julgado, o INSS teria 20 dias para promover os cálculos de acordo com os critérios estabelecidos para efeito de expedição de requisição de pagamento. E que juntado o cálculo, fosse aberta vista a parte autora por 10 dias. Em outras palavras, a sentença determinou a sistemática da execução invertida.

Irresignado, o INSS interpôs apelação dirigida ao TRF.

Argumentou que o juiz obrigou que a autarquia aceitasse a execução invertida, o que não seria possível.

O TRF negou provimento à apelação afirmando que o INSS tem estrutura técnica capacitada para elaboração do quantum debeatur. Inclusive, na prática, o próprio INSS sempre envia os valores apresentados pelo exequente para que o setor de cálculos da autarquia confira se eles estão corretos.

Isso significa que, na prática, o INSS já faz os cálculos. Logo, o comando contido na sentença não representaria um trabalho extra que a autarquia já não esteja acostumado a fazer.

O INSS não concordou e interpôs recurso especial argumentando que é ônus do credor promover a liquidação do julgado que lhe é favorável. O próprio acórdão teria reconhecido que a execução de valores em face da Fazenda Pública é de iniciativa do credor, mas que teria mantido a determinação apenas em face das vantagens trazidas pela execução invertida.

Mesmo na hipótese de o credor ser economicamente hipossuficiente, é dever legal do Poder Judiciário, e não do executado, fazer os cálculos da execução.

Por esses motivos, concluiu que a execução invertida é uma exceção à regra, uma faculdade do executado que pode ou não ser adotada, até porque há que se levar em conta também a possibilidade de desinteresse da parte credora em fazer valer o seu direito e mesmo a inércia gerar a prescrição nos termos da Súmula 150 do STF.

 

O STJ concordou com os argumentos do INSS?

SIM.

 

Conceito de execução invertida

O procedimento denominado “execução invertida” consiste na modificação do rito processual estabelecido no Código de Processo Civil, ofertando à parte executada (devedor) a possibilidade de apresentação dos cálculos e valor devido à parte exequente (credor).

Não há previsão legal de tal mecanismo processual, sendo ele uma construção jurisprudencial.

 

A execução invertida depende de uma concordância do devedor

O STJ entende que a “execução invertida” tem como fundamento basilar a “conduta espontânea” do devedor.

O devedor, de forma espontânea e voluntária, pode se antecipar e apresentar logo os cálculos da execução. Como decorrência disso, ele acelera o processo (princípio da duração razoável do processo) e receberá, como “recompensa”, a não condenação em honorários advocatícios.

No caso em exame, o juízo a quo deveria ter intimado previamente o INSS (parte executada), ofertando-lhe a possibilidade de cumprimento espontâneo da sentença. Caberia então a parte decidir pela apresentação ou não dos cálculos e valores devidos. Se o INSS não aceitasse fazer, assumiria a responsabilidade da condenação em honorários advocatícios, decorrentes da execução (princípio da causalidade). Se aceitasse, ficaria dispensado desse pagamento. Tal procedimento prévio de intimação da Fazenda Pública possui substrato na jurisprudência do STJ.

Ocorre que o juízo a quo não deu essa faculdade ao INSS, tendo obrigado a autarquia previdenciária a adotar a execução invertida, o que não encontra amparo na jurisprudência do STJ.

 

Mas o STF não obrigou a parte executada a aceitar a execução invertida?

Somente nos casos de Juizados Especiais Federais.

A decisão do STF na ADPF 219 se aplica apenas para as decisões proferidas pelos Juizados Especiais.

Nesse contexto, em que pese a importância e realce dos princípios que regem o microssistema dos juizados especiais, não há possibilidade de imposição automática de tais princípios, e por decorrência seus efeitos, para o âmbito dos processos ordinários (comuns).

No campo do processo civil, ordenado pelo Código de Processo Civil, outros princípios e vetores de julgamento sobressaem, como por exemplo: princípio da cooperação e comportamento processual probo (boa-fé).

 

Em suma:

Não é possível a determinação judicial à Fazenda Pública de adoção da prática jurisprudencial da execução invertida no cumprimento de sentença em procedimento comum. 

STJ. 2ª Turma. AREsp 2.014.491-RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 12/12/2023 (Info 799).


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