Dizer o Direito

domingo, 31 de dezembro de 2023

Se o estrangeiro entrou no Brasil usando passaporte falso, mas depois foi a ele concedida a residência permanente, isso equivale a uma anistia legal, não devendo ele responder pelo crime de uso de documento falso

Imagine a seguinte situação adaptada:

No dia 04/04/2015, nas dependências do aeroporto internacional de Guarulhos/SP, Mamadou, senegalês, entrou no Brasil com um passaporte de serviço falsificado de Guiné-Bissau, apresentando-o para as autoridades migratórias brasileiras.

Alguns dias depois, em 20/04/2015, Mamadou requereu refúgio na Delegacia da Polícia Federal de Caxias do Sul, apresentando sua identidade senegalesa. Na ocasião, ao ser questionado sobre como conseguiu ingressar no Brasil, ele confessou que tinha passaporte falso e o entregou espontaneamente, ocasião em que o documento foi apreendido. Afirmou, ainda, ser cidadão senegalês e que obteve o documento mediante o pagamento de aproximadamente R$ 12.500,00 (doze mil e quinhentos reais). Alegou ter usado o passaporte falso porque soube que os cidadãos da República da Guiné-Bissau seriam isentos de visto de ingresso no Brasil.

Durante o inquérito policial, a perícia confirmou que o passaporte utilizado era falso.

Em razão desses fatos, o Mamadou foi denunciado pelo MPF como incurso no crime previsto no art. 304 c/c art. 297 do Código Penal:

Uso de documento falso

Art. 304 - Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302:

Pena - a cominada à falsificação ou à alteração.

 

Falsificação de documento público

Art. 297. Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro:

Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa.

 

O Juiz Federal rejeitou a denúncia, por ausência de justa causa, com base no art. 395, III, do CPP:

Art. 395.  A denúncia ou queixa será rejeitada quando:

(...)

III - faltar justa causa para o exercício da ação penal.

 

O magistrado ressaltou que, embora o pedido de refúgio de Mamadou tenha sido indeferido, o Governo brasileiro concedeu a ele residência permanente. Dessa forma, do ponto de vista da política criminal e humanitário, não teria o menor sentido lógico e jurídico o Estado brasileiro permitir a permanência de estrangeiro que notoriamente ingressou de forma irregular no país e autorizar-se em contrapartida e sucessivamente, uma persecução penal em seu desfavor, em decorrência do ingresso irregular com uso de documento falso.

O MPF interpôs recurso em sentido estrito.

O TRF da 3ª Região deu provimento ao RESE para receber a denúncia e determinar ao Juiz que desse prosseguimento ao feito.

O réu, assistido pela DPU, interpôs recurso especial. Requereu a manutenção da decisão do juiz de primeiro grau, que rejeitou a denúncia oferecida pelo MPF, por ausência de justa causa.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa?

SIM.

O art. 8º da Lei dos Refugiados (Lei nº 9.474/97) afirma que a entrada irregular de estrangeiros no território nacional não impede que eles solicitem refúgio às autoridades competentes:

Art. 8º O ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio às autoridades competentes.

 

Em outras palavras, salvo raras exceções, o fato de o estrangeiro ter ingressado de maneira irregular, seja de forma ilegal ou ilícita, não impede que ele alcance a qualidade jurídica de refugiado.

Quando uma pessoa qualificada como “refugiado” comete alguma conduta ilícita com o propósito de ingressar no território nacional e essa conduta está diretamente relacionada a esse intento, o procedimento, seja ele de natureza cível, administrativa ou criminal, deve ser arquivado, com base no § 1º do art. 10 da referida lei:

Art. 10. A solicitação, apresentada nas condições previstas nos artigos anteriores, suspenderá qualquer procedimento administrativo ou criminal pela entrada irregular, instaurado contra o peticionário e pessoas de seu grupo familiar que o acompanhem.

§ 1º Se a condição de refugiado for reconhecida, o procedimento será arquivado, desde que demonstrado que a infração correspondente foi determinada pelos mesmos fatos que justificaram o dito reconhecimento.

(...)

 

No caso concreto, embora o pedido de reconhecimento da condição de refugiado tenha sido indeferido pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) devido à falta de demonstração de um fundado temor de perseguição compatível com os critérios de elegibilidade previstos no art. 10 da Lei nº 9.474/97, é importante destacar que o estrangeiro encontra-se classificado como residente no território nacional e recebeu um visto ou a permissão permanente, o que denota a condição de residência legal no Brasil.

O art. 395, III, do CPP prescreve a rejeição da denúncia quando inexistir justa causa para o início do processo penal, isto é, quando não houver fundamentos sólidos para a persecução penal. Essa medida, na situação em análise, é necessária, pois configura uma aplicação pertinente do princípio da intervenção mínima e reforça a relevância do caráter fragmentário do direito penal, já que a própria administração pública reconheceu o direito de residência permanente no território nacional.

Nesse contexto, também, é apropriado evocar a analogia in bonam partem, uma vez que a interpretação nos conduz à conclusão de que a concessão de residência permanente ao estrangeiro equivale a uma anistia legal para os crimes de uso de documento falso e falsificação de documento público, conforme estabelecido no art. 10, § 1º, da Lei nº 9.474/97 em relação aos refugiados. Logo, tal situação resulta na inexistência de justa causa para a ação penal, considerando a correlação entre o uso de passaporte falso e sua entrada irregular no Brasil.

 

Em suma:

Ainda que indeferido o pedido de refúgio, a concessão de residência permanente ao estrangeiro equivale a uma anistia legal para os crimes de uso de documento falso e falsificação de documento público, conforme estabelecido no art. 10, § 1º, da Lei nº 9.474/97 em relação aos refugiados. 

STJ. 5ª Turma. AREsp 2.346.755-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 7/11/2023 (Info 795).


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