Imagine a seguinte situação hipotética:
João tinha uma dívida, contraída
em 2005, com a empresa de telefonia celular.
Em
2014, a companhia de telefonia cedeu esse crédito para a Alfa Recuperação de
Créditos Ltda, uma empresa de factoring especializada em comprar créditos de
outras pessoas jurídicas para tentar recebê-los.
Em 2015, a Alfa começou a
realizar ligações para João, exigindo o pagamento da dívida, cujo vencimento
original foi em 23/02/2005.
Ação declaratória de
inexistência de débito
Diante disso, João ingressou com
ação declaratória de inexistência de débito. O autor argumentou que a dívida
venceu há mais de 10 anos, razão pela qual estava prescrita e, portanto, seria
inexigível.
Afirmou que a prescrição
quinquenal deveria ser aplicada, tendo como termo inicial a data de vencimento
do débito.
João também esclareceu que nunca
recebeu notificações sobre a dívida antes dessas cobranças por telefone. Ele
defendeu que, devido à prescrição, a dívida não poderia ser alvo de cobrança,
seja judicial ou extrajudicial.
Por fim, requereu que o juiz
julgasse o pedido procedente, reconhecendo a prescrição da dívida e,
consequentemente, declarando a inexigibilidade dos débitos.
Contestação
Em contestação, a ré alegou que o fato de o crédito estar
prescrito faz com que ele seja inexigível judicialmente, ou seja, ela não pode
ingressar com uma ação cobrando a dívida. No entanto, isso não impediria que
ela cobrasse extrajudicialmente o débito. Segundo o entendimento da factoring,
o Código Civil, no art. 882, autoriza, indiretamente, a cobrança e o pagamento
extrajudicial de dívidas prescritas:
Art. 882. Não se pode repetir o
que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente
inexigível.
A ré argumentou que não propôs
qualquer demanda contra o autor, nem negativou seu nome junto aos órgãos de
restrição ao crédito, de forma que não realizou qualquer ato contrário a
dignidade do consumidor ou que lhe cause prejuízo. O que se tem é que o crédito
foi cedido a ré, empresa de factoring que atua diretamente no mercado através
da compra de dívidas de grandes companhias e se sub-roga no direito de
cobrá-las.
O STJ concordou com os
argumentos do autor ou da ré?
Do autor.
Para o deslinde da controvérsia,
é necessário que se examine a atuação da prescrição no plano da eficácia, o que
perpassa, inicialmente, pela distinção entre os conceitos de direito subjetivo
e de pretensão, pois, somente esta é, propriamente, atingida pela prescrição.
Segundo a doutrina, a pretensão é
o poder de exigir um comportamento positivo ou negativo da outra parte da
relação jurídica. Observa-se, desse modo, que, antes do advento da pretensão,
já existe direito e dever, mas em situação estática. Isso porque a dinamicidade
do direito subjetivo surge, tão somente, com o nascimento da pretensão, que
pode ser ou não concomitante ao surgimento do próprio direito subjetivo.
Somente a partir desse momento, o titular do direito poderá exigir do devedor
que cumpra aquilo a que está obrigado.
No que diz respeito ao seu modo
de atuação, a prescrição não atinge a ação, mas sim a pretensão.
O art. 189 do Código Civil de 2002 deixa isso claro, tendo
representado importante inovação legislativa em face do direito anterior. Este
dispositivo acolheu a construção doutrinária ao estabelecer, expressamente, que
o alvo da prescrição é a pretensão, instituto de direito material:
Art. 189. Violado o direito,
nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos
prazos a que aludem os arts. 205 e 206.
Dessa forma, a doutrina defende
que “eventuais projeções ao direito de ação (em sentido processual) só se
justificam de modo reflexo.” Isso porque, sendo a pretensão e a ação em sentido
material encobertas pela prescrição, o seu titular não pode se servir dos
remédios processuais da ação em sentido processual.
A doutrina adverte que “a
consequência processual de não poder se servir da 'ação', no entanto, não tem o
condão de explicar o instituto. Trata-se de um resultado decorrente de uma
prévia eficácia que se sucedeu no direito material”. Nessa esteira de
intelecção, não se pode olvidar, ainda, que a “pretensão se submete ao
princípio da indiferença das vias, isto é, pode ser exercida tanto judicial,
quanto extrajudicialmente”.
Quando o credor cobra extrajudicialmente
o devedor, ele está, efetivamente, exercendo sua pretensão, ainda que fora do
processo. Se a pretensão é o poder de exigir o cumprimento da prestação, uma
vez paralisada em razão da prescrição, não será mais possível exigir o referido
comportamento do devedor, ou seja, não será mais possível cobrar a dívida,
ainda que extrajudicialmente. Logo, o reconhecimento da prescrição da pretensão
impede tanto a cobrança judicial quanto a cobrança extrajudicial do débito.
Não há, portanto, duas
pretensões, uma veiculada por meio do processo e outra veiculada
extrajudicialmente. Independentemente do instrumento utilizado, trata-se da
mesma pretensão, haurida do direito material. É a pretensão e não o direito
subjetivo que permite a exigência da dívida. Uma vez prescrita, resta
impossibilitada a cobrança da prestação. Nessas situações, não há que se falar
em pagamento indevido, nem sequer em enriquecimento sem causa, nos termos do
art. 882 do Código Civil, uma vez que o direito subjetivo (crédito) continua a
existir. O que não há, de fato, é a possibilidade de exigi-lo.
A partir da fundamentação
apresentada, extraem-se as seguintes consequências práticas: não é lícito ao
credor efetuar qualquer cobrança extrajudicial da dívida prescrita, seja por
meio de telefonemas, e-mail, mensagens de texto de celular (SMS e Whatsapp),
seja por meio da inscrição do nome do devedor em cadastro de inadimplentes com
o consequente impacto no seu score de crédito.
Em suma:
O reconhecimento da prescrição da pretensão impede
tanto a cobrança judicial quanto a cobrança extrajudicial do débito.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.088.100-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 17/10/2023 (Info
792).