Imagine a seguinte situação hipotética:
O Município, por meio de um Decreto, declarou o imóvel de
João como sendo de utilidade pública, para fins de desapropriação.
O imóvel foi avaliado em R$ 1 milhão.
O Município procurou João para fazer um acordo, contudo,
o particular não aceitou porque exigiu uma indenização maior.
Diante disso, o Município ajuizou ação de desapropriação
por utilidade pública contra João.
Na ação, o
autor pediu, liminarmente, a imissão provisória na posse. Para tanto, fez o
depósito em juízo, na forma do art. 15 do Decreto 3.365/41:
Art. 15. Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada
de conformidade com o art. 685 do Código de Processo Civil (obs: atual art. 874
do CPC/2015), o juiz mandará imiti-lo provisoriamente na posse dos bens.
Após a instrução processual, em que foi realizada perícia
do imóvel, o pedido de desapropriação foi julgado procedente em primeira
instância, com a fixação, todavia, da indenização devida pelo Município em R$
1.700.000,00 (um milhão e setecentos mil reais), a serem acrescidos de correção
monetária, juros de mora e juros compensatórios.
Na sentença, o juiz determinou que a diferença entre o valor
depositado e o valor fixado (R$ 700 mil) fosse pago pelo Município mediante
precatório (art. 100 da CF/88).
João recorreu alegando que o Município possui precatórios
pendentes de pagamento desde 2003.
Diante desse cenário, ele argumentou que, se o pagamento
for mediante precatório, a indenização não será prévia já que ele demorará
muitos anos para receber. Assim, João afirmou que o pagamento deveria ser
mediante depósito judicial direto a fim de se garantir a natureza prévia da
indenização (art. 5º, XXIV, CF/88).
O STF concordou com os argumentos do autor?
SIM.
Na hipótese
em que o ente federativo expropriante estiver em mora com a quitação de seus
precatórios (art. 100, CF/88), o pagamento da diferença entre o valor das
avaliações final e inicial do imóvel desapropriado pelo Poder Público deve ser
feito por meio de depósito judicial direto ao então proprietário, em respeito à
natureza prévia da indenização (art. 5º, XXIV, CF/88).
STF. Plenário.
RE 922.144/MG, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 19/10/2023
(Repercussão Geral – Tema 865) (Info 1113).
Efeitos práticos da desapropriação
A lógica que tem prevalecido em matéria de desapropriação
é a da distinção rígida entre posse e propriedade.
Nessa linha, a imissão provisória somente privaria o
titular do bem de sua posse, mas a perda da propriedade apenas se daria ao
final do processo.
Com esse fundamento se tem considerado como indenização prévia
aquela paga ao final da ação de desapropriação.
Com base na jurisprudência atual, o Poder Público obtém a
imissão na posse com base em avaliação administrativa unilateral, não submetida
a qualquer controle por parte do Poder Judiciário e do expropriado. E paga a
maior parte do valor da indenização por precatório judicial, possivelmente
décadas depois da perda da posse pelo particular.
Porém, o modelo vigente é potencialmente injusto com o
particular, pois, em suma:
(i) o proprietário perde a posse do seu bem no início do
processo, mediante depósito muitas vezes dissociado do correto valor de
mercado;
(ii) a ação de desapropriação tem longa tramitação, visto
que impõe a realização de perícia judicial e quase sempre envolve inúmeros
recursos e incidentes processuais; e
(iii) após o trânsito em julgado, o pagamento do quantum indenizatório se dá por
precatório judicial, cujo prazo de quitação é usualmente descumprido pelos
entes públicos.
Vale ressaltar que a sistemática atual também é ruim para
o Estado. A desapropriação é declarada e implementada em certa época, sob a
vigência de determinado governo, mas é paga muitos anos – por vezes, décadas –
depois. Em termos práticos, isso significa que os governantes atuais podem
desapropriar os bens que desejarem, pagando valor ínfimo. No momento do
pagamento definitivo, em geral, o governante é outro.
Além disso, o atual modelo de desapropriação gera, ainda,
outra consequência nefasta: o pagamento pelo Estado, ao final dos processos, de
indenizações bastante superiores ao valor de mercado do bem expropriado, em
decorrência dos juros compensatórios.
Assim, vê-se que o modelo atual de desapropriação não é bom
para o expropriado, que certamente preferiria receber apenas o preço justo de
seu bem no momento de imissão provisória na posse e acabar por receber o maior
montante por precatório, muito tempo depois da perda da posse. Não é bom para o
Estado, que tem que pagar muito mais pelo imóvel do que ele verdadeiramente
vale. E nem atende adequadamente a sociedade, gerando disfunções quanto ao
controle social das desapropriações e dos gastos públicos.
Pagamento das indenizações por desapropriação
Como visto acima, a aplicabilidade do regime de
precatórios às indenizações por desapropriação por utilidade pública foi
assentada a partir da premissa de que a desapropriação se concretizaria apenas
com o ato formal de outorga do título de propriedade ao Estado.
Assim, a diferença apurada entre o valor de depósito
inicial e o valor efetivo da indenização final, determinada pelo juízo
competente, deve ser paga por precatório.
A submissão da desapropriação ao regime de precatórios
não viola o comando constitucional de indenização prévia e justa, pois se
revela medida razoável para organizar as finanças públicas do ente público.
Contudo, a realidade da maioria dos entes expropriantes é
caracterizada pelo constante atraso no pagamento das referidas dívidas,
circunstância que deslegitima o Poder Público, desnatura a natureza prévia da
indenização e esvazia o conteúdo do direito de propriedade.
Nesse contexto, a medida excepcional, na qual a
complementação é paga mediante depósito judicial, objetiva não prejudicar
injustamente o antigo proprietário do imóvel pela demora exagerada no
recebimento do montante que lhe é devido, em especial porque, além da longa
tramitação usual das ações de desapropriação, ele perdeu a posse do bem ainda
no início do processo, mediante depósito dissociado do correto valor de
mercado.
Veja a tese fixada pelo STF:
No caso de
necessidade de complementação da indenização, ao final do processo
expropriatório, deverá o pagamento ser feito mediante depósito judicial direto
se o Poder Público não estiver em dia com os precatórios.
STF. Plenário.
RE 922.144/MG, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 19/10/2023
(Repercussão Geral – Tema 865) (Info 1113).
Modulação dos efeitos
A fim de
resguardar as legítimas expectativas daqueles que confiaram nos parâmetros
anteriormente estabelecidos pelas decisões do Supremo Tribunal Federal, bem
como considerando que a virada jurisprudencial equivale à criação de direito
novo e, por tal razão, não pode operar efeitos retroativos, como decorrência
direta da aplicação dos princípios da segurança jurídica, da proteção da
confiança e da boa-fé, o STF modulou os efeitos da decisão para que a tese
fixada seja aplicada somente às desapropriações propostas a partir da
publicação da ata da sessão desde julgamento, ressalvadas as ações judiciais em
curso em que se discuta expressamente a constitucionalidade do pagamento da
complementação da indenização por meio de precatório judicial.
Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, ao
apreciar o Tema 865 da repercussão geral, deu provimento ao recurso
extraordinário e limitou a eficácia temporal da decisão para que as teses ora fixadas
sejam aplicadas somente às desapropriações propostas a partir da publicação da
ata deste julgamento, ressalvadas as ações judiciais em curso em que se discuta
expressamente a constitucionalidade do pagamento da complementação da
indenização por meio de precatório judicial.