Imagine a seguinte situação
hipotética:
Regina tentou ingressar no
presídio com droga escondida em sua região pélvica.
Foi presa em flagrante e
denunciada por tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006).
Em juízo, a acusada manifestou o
desejo de permanecer em silêncio.
Ao final da instrução, Regina foi
condenada pelo crime, com a causa de diminuição do § 4º do art. 33, da LD. O
juiz aplicou a pena de 1 ano, 11 meses e 10 dias de reclusão, em regime inicial
aberto, tendo sido a pena privativa de liberdade substituída por duas penas restritivas
de direito.
Inconformada, a condenada interpôs recurso de apelação argumentando
que o Ministério Público deveria ter proposto a ela o acordo de não persecução
penal (ANPP):
Art. 28-A. Não sendo caso de
arquivamento e tendo o
investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de
infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4
(quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução
penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime,
mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:
(...)
O Tribunal de Justiça negou
provimento ao recurso defensivo alegando que a acusada não confessou a prática
do crime e que a confissão é um dos requisitos objetivos necessários para a aplicação
do ANPP.
A defesa discordou do acórdão e impetrou
habeas corpus endereçado ao STJ afirmando que a ausência de confissão não
impede, por si só, a remessa dos autos ao Ministério Público para que o ofereça
a proposta de ANPP. Isso porque, depois de oferecida a proposta, a acusada
poderia formalizar a confissão perante o Parquet, no ato de assinatura do
acordo.
Diante disso, a defesa pediu a
anulação do processo e que fosse determinada a intimação do Ministério Público para
se manifestar sobre eventual interesse na propositura de ANPP, nos termos do
art. 28-A do CPP.
O STJ concordou com os
argumentos da defesa?
SIM. Vamos entender com calma.
O MP denunciou a acusada pelo
caput do art. 33 da LD, crime cuja pena mínima é superior a 4 anos. Logo, não
cabia ANPP em razão da pena. No curso do processo, houve o reconhecimento da
causa de diminuição de pena do § 4º do art. 33. Diante dessa alteração do enquadramento
jurídico, a pena ficou abaixo de 4 anos. Com essa mudança superveniente, é
possível oferecer o ANPP?
SIM. O tema já foi enfrentado
pelo STJ:
É cabível ANPP em caso de tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº
11.343/2006)?
Em regra, não. Isso porque a pena mínima do crime de tráfico de
drogas é de 5 anos, nos termos do caput do art. 33 da Lei nº 11.343/2006.
Contudo, se for reconhecida a aplicação da minorante do tráfico
privilegiado (§ 4º do art. 33), aí sim caberá, em tese, o oferecimento de ANPP
porque a pena mínima ficará abaixo de 4 anos.
Imagine agora que o réu foi denunciado pelo caput do art. 33 da
Lei nº 11.343/2006 (tráfico de drogas).
Decisão judicial posterior à denúncia reconhece que o agente era
traficante privilegiado, merecendo o enquadramento no § 4º do art. 33 da LD, o
que permitiria o ANPP.
O Ministério Público deverá ser intimado para possibilitar a
proposta do ANPP.
O réu terá, em tese, direito ao ANPP porque o excesso de
acusação (overcharging) não deve prejudicar o acusado.
STJ. 5ª Turma.
HC 822.947-GO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 27/6/2023 (Info 13 –
Edição Extraordinária).
Em sentido semelhante:
Nos casos em que houver a modificação do quadro fático-jurídico,
e, ainda, em situações em que houver a desclassificação do delito - seja por emendatio
ou mutatio libelli -, uma vez preenchidos os requisitos legais exigidos
para o Acordo de Não Persecução Penal, torna-se cabível o instituto negocial.
Na situação em tela, houve uma relevante alteração do quadro
fático-jurídico, tornando-se potencialmente cabível o instituto negocial do
ANPP. Isso porque o TJ, ao julgar apelação interposta pela defesa, deu-lhe
provimento, a fim de reconhecer a continuidade delitiva entre os crimes de
falsidade ideológica (art. 299), tornando, assim, objetivamente viável a
realização do referido acordo, em razão do novo patamar de apenamento - pena
mínima cominada inferior a 4 anos.
Aplica-se aqui, mutatis mutandis, raciocínio similar àquele
constante da Súmula 337 do STJ (É cabível a suspensão condicional do processo
na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva).
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 2.016.905-SP, Rel. Min. Messod
Azulay Neto, julgado em 7/3/2023 (Info 772).
Oportuno lembrar, também, que no
julgamento do REsp 1.972.098/SC, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, a Quinta Turma
decidiu que “o réu fará jus à atenuante do art. 65, III, 'd', do CP quando
houver admitido a autoria do crime perante a autoridade, independentemente de a
confissão ser utilizada pelo juiz como um dos fundamentos da sentença
condenatória, e mesmo que seja ela parcial, qualificada, extrajudicial ou
retratada”, o que sobrelevou e desburocratizou o reconhecimento e a importância
da confissão para o deslinde do processo penal.
Voltando ao caso concreto:
No caso, o Tribunal de Justiça
decidiu que não poderia encaminhar os autos ao Ministério Público para que se
manifestasse sobre a proposição do ANPP porque não houve confissão formal e
circunstanciada da acusada (ela optou pelo exercício do direito ao silêncio).
Contudo, é de se destacar que, ao
tempo da opção pela não autoincriminação (no momento do interrogatório), não
estava no horizonte da acusada a possibilidade de ela celebrar ANPP, uma vez
que a denúncia não postulou o reconhecimento da minorante do tráfico de drogas,
o que só se tornou possível com a prolação da sentença penal condenatória que
aplicou em seu favor a causa de diminuição de pena prevista no §4º do art. 33
da Lei nº 11.343/2006.
Em outras palavras, no momento do
interrogatório, como não havia sido oferecido a ela a possibilidade de ANPP,
não havia razões para ela confessar.
O direito à não autoincriminação
(nemo tenetur se detegere) não pode ser interpretado em desfavor do réu,
sob pena de ofensa ao inciso LXIII do art. 5º da Constituição e parágrafo único
do art. 186 do CPP.
Assim, a invocação do direito ao
silêncio durante a persecução penal não pode impedir a incidência posterior do
ANPP, caso a superveniência de sentença condenatória autorize objetiva e
subjetivamente sua proposição.
Em verdade, mesmo que a acusada
tivesse negado a autoria, ainda assim seria necessário que o MP oferecesse o
acordo. Isso porque o ANPP é medida de natureza negocial, podendo o réu optar,
ou não, pelas vantagens do ajuste.
O CPP, em seu art. 28-A, não
determinou quando a confissão deve ser colhida, apenas que ela deve ser formal
e circunstanciada. Assim, essa confissão pode ser feita perante o MP, caso a
instituição ofereça o acordo e o réu decida aceitar.
Em suma:
A ausência de confissão formal e circunstanciada no
curso da ação penal não impede a remessa dos autos ao Parquet para
avaliar a possibilidade de propositura do acordo de não persecução penal, uma
vez que essa confissão pode ser formalizada perante o Ministério Público, no
ato de assinatura do acordo.
STJ. 5ª
Turma. HC 837.239-RJ, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 26/9/2023 (Info
789).