O caso concreto foi o seguinte:
O partido Rede Sustentabilidade
ajuizou ADPF argumentando que muitos eleitores não têm condições econômicas de
pagar o transporte no dia das eleições para votar.
Além disso, o autor argumentou
que a frota do transporte coletivo costuma ser menor aos domingos.
Segundo a legenda, há, por parte
de alguns municípios, uma política inconstitucional de não prover adequadamente
transporte público e em frequência razoável para os eleitores. Citou, como
exemplo, o caso de Porto Alegre, que teria suspendido o passe livre no dia das
eleições, desde 1995.
Esse cenário faz com que as
pessoas mais pobres sejam privadas do seu direito constitucional ao voto.
Em razão do exposto, o partido
pediu que o STF determine aos municípios que garantam, nos dias das eleições,
serviço de transporte público urbano coletivo de passageiros gratuito em
frequência maior ou igual à dos dias úteis.
Medida liminar
Em 29 de setembro de 2022, antes
do primeiro turno das eleições de 2022, o Ministro Roberto Barroso, relator da
ADPF, atendeu parcialmente o pedido para:
i) determinar ao Poder Público
que mantivesse o serviço de transporte público urbano coletivo de passageiros
em níveis normais, sem redução específica no domingo das eleições, sob pena de
crime de responsabilidade;
ii) vedar aos Municípios que já
ofereciam o serviço de transporte público urbano coletivo de passageiros
gratuitamente, seja pelo domingo, seja pelo dia das eleições, que deixassem de
fornecê-lo;
iii) autorizar o Poder Público
municipal a determinar (e as concessionárias ou permissionárias do serviço
público a promover) a disponibilização gratuita do serviço de transporte
público urbano coletivo de passageiros em dias de realização de eleições,
inclusive com linhas especiais para regiões mais distantes dos locais de
votação. A autorização incluiu a possibilidade de utilização, para os mesmos
fins, de ônibus escolares e outros veículos públicos.
No dia 18/10/2023, o STF julgou
definitivamente o mérito da ação. O que ficou decidido? A
ausência de transporte público gratuito e com frequência regular nos domingos
de eleição viola a Constituição?
SIM.
Configura
omissão inconstitucional do Poder Público a falta de oferta, com a mesma
frequência e regularidade dos dias úteis, de transporte público coletivo
gratuito nas zonas urbanas em dia de eleições.
STF. Plenário.
ADPF 1013/DF, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 18/10/2023 (Info
1113).
O fornecimento desse serviço já é
previsto para os eleitores residentes em zonas rurais pela Lei nº 6.091/74 e
pela Resolução TSE 23.669/2021 (ao estudar, confira sempre se a Resolução não
foi substituída por uma mais atualizada).
Confira alguns trechos da Lei nº 6.091/74:
Art. 1º Os veículos e embarcações,
devidamente abastecidos e tripulados, pertencentes à União, Estados,
Territórios e Municípios e suas respectivas autarquias e sociedades de economia
mista, excluídos os de uso militar, ficarão à disposição da Justiça Eleitoral
para o transporte gratuito de eleitores em zonas rurais, em dias de eleição.
§ 1º Excetuam-se do disposto neste
artigo os veículos e embarcações em número justificadamente indispensável ao
funcionamento de serviço público insusceptível de interrupção.
§ 2º Até quinze dias antes das
eleições, a Justiça Eleitoral requisitará dos órgãos da administração direta ou
indireta da União, dos Estados, Territórios, Distrito Federal e Municípios os
funcionários e as instalações de que necessitar para possibilitar a execução
dos serviços de transporte e alimentação de eleitores previstos nesta Lei.
Art. 2º Se a utilização de veículos
pertencentes às entidades previstas no art. 1º não for suficiente para atender
ao disposto nesta Lei, a Justiça Eleitoral requisitará veículos e embarcações a
particulares, de preferência os de aluguel.
Parágrafo único. Os serviços
requisitados serão pagos, até trinta dias depois do pleito, a preços que
correspondam aos critérios da localidade. A despesa correrá por conta do Fundo
Partidário.
Não existe, contudo, uma lei que
assegure a mesma garantia para os eleitores da zona urbana.
Assim, existe uma falha em assegurar o exercício do direito
ao voto a todos os cidadãos. Essa omissão representa violação ao texto
constitucional, mais especificamente ao art. 14 da CF/88, na medida em que é
dever do Estado adotar medidas capazes de concretizar os direitos previstos na
Constituição Federal, no caso, que todos tenham plenas condições de participar
do processo eleitoral:
Art. 14. A soberania popular será
exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual
para todos, e, nos termos da lei, mediante:
(...)
A ausência de política pública
com essa finalidade tem o potencial de criar, na prática, um novo tipo de voto
censitário*, que retira dos mais pobres a possibilidade de participação no
processo eleitoral, tendo em vista a extrema desigualdade social existente no
Brasil.
* Voto censitário
O voto censitário é um tipo de voto que era comum em
muitos países durante o século XIX, onde apenas os cidadãos que pagavam uma
certa quantidade de impostos, ou seja, os mais ricos, tinham o direito de
votar. Esse sistema era baseado na ideia de que apenas aqueles que tinham uma
certa riqueza poderiam ter a capacidade de tomar decisões políticas. No
entanto, esse tipo de voto é considerado discriminatório e injusto, pois exclui
a grande maioria da população do processo de tomada de decisões políticas. Atualmente,
a maioria dos países adota o sistema de voto universal, onde todos os cidadãos
têm o direito de votar, independentemente de sua riqueza ou status social.
Tivemos exemplos de voto censitário no Brasil. A
Constituição de 1824 proibia o voto para pessoas que não tivessem renda líquida
anual de cem mil réis, ao passo que as Constituições de 1891 e de 1934 proibiam
que os mendigos pudessem votar.
O Estado tem o dever de adotar
medidas que concretizem os direitos previstos na ordem constitucional, de modo
que a falha em assegurar o exercício do direito ao voto é violadora da
Constituição.
Numa democracia, as eleições
devem contar com a participação do maior número de eleitores e transcorrer de
forma íntegra, proba e republicana.
O fornecimento gratuito de
transporte no dia das eleições promove dois valores relevantes:
1) a igualdade de participação,
proporcionando acesso ao voto por parte significativa dos eleitores; e
2) o combate a ilegalidades,
evitando que o transporte sirva como instrumento de interferência no resultado
eleitoral.
Apelo ao legislador
O STF decidiu, contudo, que não
deveria determinar imediatamente o fornecimento gratuito. Como não existe lei,
a providência mais adequada seria fazer um apelo ao Congresso Nacional para que
edite uma lei regulamentando a matéria. Isso porque a arena preferencial para
instituição da providência requerida na ação é o Parlamento, onde as decisões
políticas fundamentais devem ser tomadas em uma democracia.
Nesse cenário, justifica-se a
solução que reconheça a preferência do Congresso Nacional e, ao mesmo tempo,
garanta o cumprimento da Constituição. Inclusive, já existem diversos projetos
de lei em tramitação que equacionam adequadamente o problema.
Veja a tese fixada pelo STF:
É
inconstitucional a omissão do poder público em ofertar, nas zonas urbanas em
dias de eleições, transporte público coletivo de forma gratuita e em frequência
compatível com aquela praticada em dias úteis.
STF.
Plenário. ADPF 1013/DF, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 18/10/2023
(Info 1113).
Com base nesses e em outros
entendimentos, o Plenário do STF, por unanimidade, julgou parcialmente
procedente a ação para:
(i) confirmar, no mérito, a
medida cautelar concedida;
(ii) fazer apelo ao Congresso
Nacional para que edite lei regulamentadora da política de gratuidade de
transporte público nas zonas urbanas em dias de eleições, com frequência
compatível com aquela praticada em dias úteis; e,
(iii) caso não editada a lei
referida no item anterior, determinar ao Poder Público que, a partir das
eleições municipais de 2024, oferte, nas zonas urbanas em dias de eleições,
transporte coletivo municipal e intermunicipal, inclusive o metropolitano.