quarta-feira, 20 de dezembro de 2023
A recusa do detento em aceitar alimento que julga impróprio para consumo, quando realizada de forma pacífica e sem ameaçar a segurança do ambiente carcerário, não configura falta grave
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João cumpre pena na unidade
prisional.
Ele e outros detentos organizaram
uma “greve de fome” para protestar contra a qualidade da comida fornecida na
prisão. Argumentou-se que a comida fornecida era imprópria para o consumo.
A administração do presídio considerou a conduta de João
como falta grave, argumentando que ele estaria participando de um movimento
para subverter a ordem ou a disciplina, incidindo, portanto, na previsão do
art. 50, I, da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84):
Art. 50. Comete falta grave o
condenado à pena privativa de liberdade que:
I - incitar ou participar de movimento
para subverter a ordem ou a disciplina;
(...)
Diante disso, após processo
administrativo, João foi sancionado com a regressão de regime em razão da
prática de falta grave.
O apenado ingressou com agravo em
execução contra a decisão imposta e o caso chegou até o STJ.
O STJ concordou com a
punição imposta ao apenado?
NÃO.
O art. 50, I, da Lei nº 7.210/84
(Lei de Execução Penal) estabelece que comete falta grave o detento condenado à
pena privativa de liberdade que incitar ou participar de movimento para
subverter a ordem ou a disciplina.
No contexto desse dispositivo
legal, o termo “participar” significa envolver-se ativamente, cooperar ou
contribuir para a realização de um movimento que tenha o propósito de
desestabilizar a ordem ou a disciplina, seja por meio de ações concretas, como
o uso de violência ou ameaças, ou por meio de ações intelectuais, como o
planejamento ou a organização das atividades. Aquele que incita, ou seja, que
estimula, motiva ou encoraja outros indivíduos a praticar atos de subversão ou
indisciplina de forma coletiva, também será responsabilizado por essa infração.
A “greve de fome” realizada pelos detentos pode, em
determinadas circunstâncias, caracterizar a falta grave prevista no art. 50, I,
da LEP, especialmente se o movimento resultar na configuração do crime de motim
de presos, previsto no art. 354 do Código Penal, ou no crime de dano ao
patrimônio público, conforme estabelecido no art. 163 do Código Penal:
Crime de motim
Art. 354 - Amotinarem-se presos,
perturbando a ordem ou disciplina da prisão:
Pena - detenção, de seis meses a
dois anos, além da pena correspondente à violência.
Dano
Art. 163 - Destruir, inutilizar ou
deteriorar coisa alheia:
Pena - detenção, de um a seis meses,
ou multa.
Em tais situações, a recusa
deliberada em se alimentar pode ser considerada parte de um movimento que busca
subverter a ordem ou a disciplina no estabelecimento prisional, sujeitando os
envolvidos às sanções correspondentes.
No entanto, a recusa do detento
em aceitar alimento que julga impróprio para consumo não se configura como
falta grave, uma vez que no ordenamento jurídico vigente não existe qualquer
imposição que obrigue o indivíduo privado de liberdade a ingerir alimentos em
circunstâncias que considere inadequadas.
Essa atitude, quando realizada de
forma pacífica e sem ameaçar a segurança do ambiente carcerário, representa um
exercício do direito à liberdade de expressão por parte do detento, direito
esse amparado pelo próprio ordenamento jurídico no art. 5º, IV, da Constituição
da República.
Além disso, é fundamental
observar o art. 41 da Lei de Execução Penal, que elenca os direitos do preso,
notadamente o direito à “alimentação suficiente” e à “assistência material e à
saúde”.
A recusa em ingerir alimentos
inadequados está intrinsecamente ligada à obrigação legal de proporcionar
alimentação suficiente e está relacionada diretamente à assistência material e
à saúde do detento. A ingestão de alimentos inadequados poderia prejudicar
seriamente seu bem-estar físico e, consequentemente, sua saúde.
Portanto, a recusa do detento em
se negar a aceitar alimento que julga impróprio para consumo não se caracteriza
como falta grave. Ao contrário, essa atitude representa o exercício de seu
direito à liberdade de expressão e à preservação de sua dignidade, respeitando
os direitos fundamentais do ser humano no sistema penitenciário, conforme
preconizam as leis nacionais e os tratados internacionais ratificados pelo
Brasil. Isso, desde que seja feita de forma ordeira e sem colocar em risco a
ordem e a disciplina do estabelecimento prisional.
Em suma:
A recusa do detento em aceitar alimento que julga
impróprio para consumo, quando realizada de forma pacífica e sem ameaçar a
segurança do ambiente carcerário, não configura falta grave.
STJ. 5ª Turma. AREsp 2.418.453/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em
17/10/2023 (Info 792).