Imagine a seguinte situação
hipotética:
A Polícia, após investigações,
identificou fortes indícios da existência de uma organização criminosa liderada
por João e Pedro, voltada à prática de tráfico de drogas, homicídio e outros
delitos.
Após autorização judicial, foi
realizada a interceptação telefônica dos aparelhos utilizados por João e Pedro.
O problema é que os suspeitos utilizavam
quase que exclusivamente o WhatsApp para trocar mensagens sensíveis relativas
aos delitos em apuração, não sendo elas interceptadas pelas companhias
telefônicas.
Por essa razão, o Ministério
Público requereu que a quebra de sigilo telefônico deferida se estendesse aos
dados telemáticos das linhas utilizadas pelos suspeitos, com autorização de
espelhamento, em tempo real, das mensagens e áudios de aplicativos de mensagens
e redes sociais vinculados aos terminais interceptados, mediante utilização do
software denominado WhatsApp Web.
O pedido foi deferido pelo juiz.
Como resultado dessa investigação
e de ações controladas, a Polícia conseguiu provas dos crimes praticados pelos
suspeitos.
Com base nesses elementos
informativos, o Ministério Público ofereceu denúncia contra João, Pedro e
outros integrantes da organização criminosa.
Os acusados alegaram a nulidade
das provas obtidas mediante espelhamento do aplicativo WhatsApp, sob o
fundamento de que essa técnica não encontra respaldo na Lei nº 9.296/96.
Segundo a defesa, a mencionada lei admite apenas a quebra do sigilo telemático,
e não a sua interceptação.
Os réus afirmaram que “admitir
tal modalidade de prova apresenta-se um tanto temerário, na medida em que o
espelhamento permite àquele que o efetuou a dissimular as mensagens enviadas,
apagar as recebidas e criar muitas outras”.
Ressaltaram, ainda, que “ao
contrário da interceptação, telefônica, no âmbito da qual o investigador de
polícia atua como mero observador de conversas empreendidas por terceiros, no
espelhamento realizado através do aplicativo Whatsapp, o investigador tem total
possibilidade de interagir diretamente nas conversas que estão sendo travadas,
hipótese extremamente temerária”.
O STJ concordou com os
argumentos dos acusados?
NÃO.
O STJ considerou que a
autorização judicial para que a polícia acompanhe as conversas dos suspeitos
mediante o espelhamento via Whatsapp Web caracteriza-se como um meio de
obtenção de prova equivalente à infiltração de agentes, sendo, portanto, extraordinário,
mas válido.
Ações encobertas
Segundo constou no voto do
Ministro Relator, no ordenamento pátrio, as ações encobertas recebem a
denominação de infiltração de agentes.
O que é a infiltração de
agentes?
A infiltração de agentes é uma
técnica especial de investigação por meio da qual um policial, escondendo sua
real identidade, finge ser também um criminoso a fim de ingressar na
organização criminosa e, com isso, poder coletar elementos informativos a respeito
dos delitos que são praticados pelo grupo, identificando os seus integrantes,
sua forma de atuação, os locais onde moram e atuam, o produto dos delitos e
qualquer outra prova que sirva para o desmantelamento da organização e para ser
utilizado no processo penal.
Características
A doutrina aponta três
características básicas que marcam o instituto:
a) a dissimulação, ou seja, a
ocultação da condição de agente oficial e de suas verdadeiras intenções;
b) o engano, considerando que
toda a operação de infiltração se apoia numa encenação que permite ao agente
obter a confiança do suspeito; e
c) a interação, isto é, uma
relação direta e pessoal entre o agente e o autor potencial.
Nesse sentido: MASSON, Cleber;
MARÇAL, Vinícius. Crime organizado. 2ª ed. São Paulo: Método, 2016, p. 272/273.
Legislação sobre infiltração
de agentes, inclusive em meios virtuais
A Lei de Organizações Criminosas (Lei
nº 12.850/2013) prevê que, em qualquer fase da persecução penal, serão
permitidos, sem prejuízo de outros procedimentos já previstos em lei,
infiltração, por policiais, em atividade de investigação, mediante motivada e
sigilosa autorização judicial (art. 3º, VII e art. 10).
Com a infiltração permite-se que
o agente estatal possa penetrar na organização criminosa, participando de
atividades diárias, para, assim, compreendê-la e melhor combatê-la pelo repasse
de informações às autoridades.
De idêntica forma, a Lei nº 12.850/2013 (Lei da ORCRIM), com
redação trazida pela Lei nº 13.694/2019, passou a prever, de forma expressa, a
figura do agente infiltrado virtual, em seu art. 10-A:
Art. 10-A. Será admitida a ação
de agentes de polícia infiltrados virtuais, obedecidos os requisitos do caput
do art. 10, na internet, com o fim de investigar os crimes previstos nesta Lei
e a eles conexos, praticados por organizações criminosas, desde que demonstrada
sua necessidade e indicados o alcance das tarefas dos policiais, os nomes ou
apelidos das pessoas investigadas e, quando possível, os dados de conexão ou
cadastrais que permitam a identificação dessas pessoas. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
Espelhamento do Whatsapp
Web é autorizado pelo art. 1º, parágrafo único
A Lei nº 9.296/96 (Lei de
Interceptação Telefônica) permite, em seu art. 1º, parágrafo único, a quebra do
sigilo no que concerne à comunicação de dados, mediante ordem judicial
fundamentada.
Nesse ponto reside a permissão
normativa para quebra de sigilo de dados informáticos e de forma subsequente,
para permitir a interação, a interceptação e a infiltração do agente, inclusive
pelo meio cibernético, consistente no espelhamento do Whatsapp Web.
De se mencionar, ainda, que a lei
que regulamenta o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), estabelece
princípios, garantias, direitos e deveres para uso da Internet no Brasil,
garante o acesso e a interferência no “fluxo das comunicações pela Internet,
por ordem judicial”.
A lei de interceptação, em
combinação com a Lei das Organizações Criminosas outorga legitimidade
(legalidade) e dita o rito (regra procedimental), a mencionado espelhamento, em
interpretação progressiva, em conformidade com a realidade atual, para adequar
a norma à evolução tecnológica.
Complexidades dos delitos
virtuais e necessidade de evolução da jurisprudência
A potencialidade danosa dos
delitos praticados por organizações criminosas, pelo meio virtual, aliada a
complexidade e dificuldade da persecução penal no âmbito cibernético devem
levar a jurisprudência a admitir as ações controladas e infiltradas no mesmo
plano virtual. De fato, nos últimos anos, as redes sociais e respectivos
aplicativos se tornaram uma ferramenta indispensável para a comunicação,
interação e compartilhamento de informações em todo o mundo. Entretanto, essa
rápida expansão e influência também trouxeram consigo uma série de desafios e
problemas no âmbito da investigação, no meio virtual, tornando-se a evolução da
jurisprudência acerca do tema questão cada vez mais relevante e urgente.
Desse modo, é necessário o estabelecimento
de regras processuais compatíveis com a modernidade do crime organizado, obviamente
que, sempre respeitando, dentro de tal quadro, os direitos e garantias
fundamentais do investigado. Essa garantia está respeitada considerando que,
para a infiltração, é necessária ordem judicial.
Assim, não há empecilho na
utilização de ações encobertas ou agentes infiltrados na persecução de delitos,
pela via dos meios virtuais, desde que sejam respeitados os critérios de
proporcionalidade (utilidade, necessidade) e seja observada a subsidiariedade, de
sorte que a mesma prova não pode ser obtida por outros meios disponíveis.
Voltando ao caso concreto
Na situação concreta, foi
autorizado o espelhamento via Whatsapp Web como meio de infiltração
investigativa, na medida em que a interceptação de dados direta, feita no
próprio aplicativo original do Whatsapp, se mostrou ineficiente considerando a
existência da criptografia de ponta a ponta que existe no aplicativo original,
impossibilitando o acesso ao teor das conversas ali travadas.
Diante desse cenário, é plausível
o espelhamento via Whatsapp Web, pelos órgãos de persecução, caracterizando-se
como uma modalidade equivalente à infiltração do agente, que consiste em meio
extraordinário, mas válido, de obtenção de prova.
Pode, desta forma, o agente
policial valer-se da utilização do espelhamento pela via do Whatsapp Web, desde
que respeitados os parâmetros de proporcionalidade, subsidiariedade, controle
judicial e legalidade, calcado pelo competente mandado judicial.
A Lei nº 9.296/1996 (Lei das
Interceptações Telefônicas), conjugada com a Lei nº 12.850/2013 (Lei das
Organizações Criminosas), outorgam substrato de validade processual às ações
infiltradas no plano cibernético, desde que observada a cláusula de reserva de
jurisdição.
Em suma:
É possível a utilização, no ordenamento jurídico
pátrio, de ações encobertas, controladas virtuais ou de agentes infiltrados no
plano cibernético, inclusive via espelhamento do Whatsapp Web, desde que o uso
da ação controlada na investigação criminal esteja amparada por autorização
judicial.
STJ. 5ª Turma. AREsp
2.309.888-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 17/10/2023
(Info 792).