Dizer o Direito

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

A autorização judicial para que a polícia acompanhe as conversas dos suspeitos mediante o espelhamento via Whatsapp Web caracteriza-se como um meio de obtenção de prova equivalente à infiltração de agentes, sendo, portanto, extraordinário, mas válido

Imagine a seguinte situação hipotética:

A Polícia, após investigações, identificou fortes indícios da existência de uma organização criminosa liderada por João e Pedro, voltada à prática de tráfico de drogas, homicídio e outros delitos.

Após autorização judicial, foi realizada a interceptação telefônica dos aparelhos utilizados por João e Pedro.

O problema é que os suspeitos utilizavam quase que exclusivamente o WhatsApp para trocar mensagens sensíveis relativas aos delitos em apuração, não sendo elas interceptadas pelas companhias telefônicas.

Por essa razão, o Ministério Público requereu que a quebra de sigilo telefônico deferida se estendesse aos dados telemáticos das linhas utilizadas pelos suspeitos, com autorização de espelhamento, em tempo real, das mensagens e áudios de aplicativos de mensagens e redes sociais vinculados aos terminais interceptados, mediante utilização do software denominado WhatsApp Web.

O pedido foi deferido pelo juiz.

Como resultado dessa investigação e de ações controladas, a Polícia conseguiu provas dos crimes praticados pelos suspeitos.

Com base nesses elementos informativos, o Ministério Público ofereceu denúncia contra João, Pedro e outros integrantes da organização criminosa.

Os acusados alegaram a nulidade das provas obtidas mediante espelhamento do aplicativo WhatsApp, sob o fundamento de que essa técnica não encontra respaldo na Lei nº 9.296/96. Segundo a defesa, a mencionada lei admite apenas a quebra do sigilo telemático, e não a sua interceptação.

Os réus afirmaram que “admitir tal modalidade de prova apresenta-se um tanto temerário, na medida em que o espelhamento permite àquele que o efetuou a dissimular as mensagens enviadas, apagar as recebidas e criar muitas outras”.

Ressaltaram, ainda, que “ao contrário da interceptação, telefônica, no âmbito da qual o investigador de polícia atua como mero observador de conversas empreendidas por terceiros, no espelhamento realizado através do aplicativo Whatsapp, o investigador tem total possibilidade de interagir diretamente nas conversas que estão sendo travadas, hipótese extremamente temerária”.

 

O STJ concordou com os argumentos dos acusados?

NÃO.

O STJ considerou que a autorização judicial para que a polícia acompanhe as conversas dos suspeitos mediante o espelhamento via Whatsapp Web caracteriza-se como um meio de obtenção de prova equivalente à infiltração de agentes, sendo, portanto, extraordinário, mas válido.

 

Ações encobertas

Segundo constou no voto do Ministro Relator, no ordenamento pátrio, as ações encobertas recebem a denominação de infiltração de agentes.

 

O que é a infiltração de agentes?

A infiltração de agentes é uma técnica especial de investigação por meio da qual um policial, escondendo sua real identidade, finge ser também um criminoso a fim de ingressar na organização criminosa e, com isso, poder coletar elementos informativos a respeito dos delitos que são praticados pelo grupo, identificando os seus integrantes, sua forma de atuação, os locais onde moram e atuam, o produto dos delitos e qualquer outra prova que sirva para o desmantelamento da organização e para ser utilizado no processo penal.

 

Características

A doutrina aponta três características básicas que marcam o instituto:

a) a dissimulação, ou seja, a ocultação da condição de agente oficial e de suas verdadeiras intenções;

b) o engano, considerando que toda a operação de infiltração se apoia numa encenação que permite ao agente obter a confiança do suspeito; e

c) a interação, isto é, uma relação direta e pessoal entre o agente e o autor potencial.

Nesse sentido: MASSON, Cleber; MARÇAL, Vinícius. Crime organizado. 2ª ed. São Paulo: Método, 2016, p. 272/273.

 

Legislação sobre infiltração de agentes, inclusive em meios virtuais

A Lei de Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/2013) prevê que, em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros procedimentos já previstos em lei, infiltração, por policiais, em atividade de investigação, mediante motivada e sigilosa autorização judicial (art. 3º, VII e art. 10).

Com a infiltração permite-se que o agente estatal possa penetrar na organização criminosa, participando de atividades diárias, para, assim, compreendê-la e melhor combatê-la pelo repasse de informações às autoridades.

De idêntica forma, a Lei nº 12.850/2013 (Lei da ORCRIM), com redação trazida pela Lei nº 13.694/2019, passou a prever, de forma expressa, a figura do agente infiltrado virtual, em seu art. 10-A:

Art. 10-A. Será admitida a ação de agentes de polícia infiltrados virtuais, obedecidos os requisitos do caput do art. 10, na internet, com o fim de investigar os crimes previstos nesta Lei e a eles conexos, praticados por organizações criminosas, desde que demonstrada sua necessidade e indicados o alcance das tarefas dos policiais, os nomes ou apelidos das pessoas investigadas e, quando possível, os dados de conexão ou cadastrais que permitam a identificação dessas pessoas.      (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

 

Espelhamento do Whatsapp Web é autorizado pelo art. 1º, parágrafo único

A Lei nº 9.296/96 (Lei de Interceptação Telefônica) permite, em seu art. 1º, parágrafo único, a quebra do sigilo no que concerne à comunicação de dados, mediante ordem judicial fundamentada.

Nesse ponto reside a permissão normativa para quebra de sigilo de dados informáticos e de forma subsequente, para permitir a interação, a interceptação e a infiltração do agente, inclusive pelo meio cibernético, consistente no espelhamento do Whatsapp Web.

De se mencionar, ainda, que a lei que regulamenta o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para uso da Internet no Brasil, garante o acesso e a interferência no “fluxo das comunicações pela Internet, por ordem judicial”.

A lei de interceptação, em combinação com a Lei das Organizações Criminosas outorga legitimidade (legalidade) e dita o rito (regra procedimental), a mencionado espelhamento, em interpretação progressiva, em conformidade com a realidade atual, para adequar a norma à evolução tecnológica.

 

Complexidades dos delitos virtuais e necessidade de evolução da jurisprudência

A potencialidade danosa dos delitos praticados por organizações criminosas, pelo meio virtual, aliada a complexidade e dificuldade da persecução penal no âmbito cibernético devem levar a jurisprudência a admitir as ações controladas e infiltradas no mesmo plano virtual. De fato, nos últimos anos, as redes sociais e respectivos aplicativos se tornaram uma ferramenta indispensável para a comunicação, interação e compartilhamento de informações em todo o mundo. Entretanto, essa rápida expansão e influência também trouxeram consigo uma série de desafios e problemas no âmbito da investigação, no meio virtual, tornando-se a evolução da jurisprudência acerca do tema questão cada vez mais relevante e urgente.

Desse modo, é necessário o estabelecimento de regras processuais compatíveis com a modernidade do crime organizado, obviamente que, sempre respeitando, dentro de tal quadro, os direitos e garantias fundamentais do investigado. Essa garantia está respeitada considerando que, para a infiltração, é necessária ordem judicial.

Assim, não há empecilho na utilização de ações encobertas ou agentes infiltrados na persecução de delitos, pela via dos meios virtuais, desde que sejam respeitados os critérios de proporcionalidade (utilidade, necessidade) e seja observada a subsidiariedade, de sorte que a mesma prova não pode ser obtida por outros meios disponíveis.

 

Voltando ao caso concreto

Na situação concreta, foi autorizado o espelhamento via Whatsapp Web como meio de infiltração investigativa, na medida em que a interceptação de dados direta, feita no próprio aplicativo original do Whatsapp, se mostrou ineficiente considerando a existência da criptografia de ponta a ponta que existe no aplicativo original, impossibilitando o acesso ao teor das conversas ali travadas.

Diante desse cenário, é plausível o espelhamento via Whatsapp Web, pelos órgãos de persecução, caracterizando-se como uma modalidade equivalente à infiltração do agente, que consiste em meio extraordinário, mas válido, de obtenção de prova.

Pode, desta forma, o agente policial valer-se da utilização do espelhamento pela via do Whatsapp Web, desde que respeitados os parâmetros de proporcionalidade, subsidiariedade, controle judicial e legalidade, calcado pelo competente mandado judicial.

A Lei nº 9.296/1996 (Lei das Interceptações Telefônicas), conjugada com a Lei nº 12.850/2013 (Lei das Organizações Criminosas), outorgam substrato de validade processual às ações infiltradas no plano cibernético, desde que observada a cláusula de reserva de jurisdição.

 

Em suma:

É possível a utilização, no ordenamento jurídico pátrio, de ações encobertas, controladas virtuais ou de agentes infiltrados no plano cibernético, inclusive via espelhamento do Whatsapp Web, desde que o uso da ação controlada na investigação criminal esteja amparada por autorização judicial. 

STJ. 5ª Turma. AREsp 2.309.888-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 17/10/2023 (Info 792).


Print Friendly and PDF