Imagine a seguinte situação adaptada:
No dia 04/04/2015, nas
dependências do aeroporto internacional de Guarulhos/SP, Mamadou, senegalês,
entrou no Brasil com um passaporte de serviço falsificado de Guiné-Bissau,
apresentando-o para as autoridades migratórias brasileiras.
Alguns dias depois, em
20/04/2015, Mamadou requereu refúgio na Delegacia da Polícia Federal de Caxias
do Sul, apresentando sua identidade senegalesa. Na ocasião, ao ser questionado
sobre como conseguiu ingressar no Brasil, ele confessou que tinha passaporte
falso e o entregou espontaneamente, ocasião em que o documento foi apreendido.
Afirmou, ainda, ser cidadão senegalês e que obteve o documento mediante o
pagamento de aproximadamente R$ 12.500,00 (doze mil e quinhentos reais). Alegou
ter usado o passaporte falso porque soube que os cidadãos da República da
Guiné-Bissau seriam isentos de visto de ingresso no Brasil.
Durante o inquérito policial, a
perícia confirmou que o passaporte utilizado era falso.
Em razão desses fatos, o Mamadou foi denunciado pelo MPF
como incurso no crime previsto no art. 304 c/c art. 297 do Código Penal:
Uso de documento falso
Art. 304 - Fazer uso de qualquer
dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302:
Pena - a cominada à falsificação
ou à alteração.
Falsificação de documento público
Art. 297. Falsificar, no todo ou
em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro:
Pena - reclusão, de dois a seis
anos, e multa.
O Juiz Federal rejeitou a denúncia, por ausência de justa
causa, com base no art. 395, III, do CPP:
Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando:
(...)
III - faltar justa causa para o
exercício da ação penal.
O magistrado ressaltou que, embora o pedido de refúgio de Mamadou tenha
sido indeferido, o Governo brasileiro concedeu a ele residência permanente.
Dessa forma, do ponto de vista da política criminal e humanitário, não teria o
menor sentido lógico e jurídico o Estado brasileiro permitir a permanência de
estrangeiro que notoriamente ingressou de forma irregular no país e
autorizar-se em contrapartida e sucessivamente, uma persecução penal em seu
desfavor, em decorrência do ingresso irregular com uso de documento falso.
O MPF interpôs recurso em sentido estrito.
O TRF da 3ª Região deu provimento
ao RESE para receber a denúncia e determinar ao Juiz que desse prosseguimento
ao feito.
O réu, assistido pela DPU, interpôs
recurso especial. Requereu a manutenção da decisão do juiz de primeiro grau,
que rejeitou a denúncia oferecida pelo MPF, por ausência de justa causa.
O STJ concordou com os
argumentos da defesa?
SIM.
O art. 8º da Lei dos Refugiados (Lei nº 9.474/97) afirma que
a entrada irregular de estrangeiros no território nacional não impede que eles
solicitem refúgio às autoridades competentes:
Art. 8º O ingresso irregular no
território nacional não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar
refúgio às autoridades competentes.
Em outras palavras, salvo raras
exceções, o fato de o estrangeiro ter ingressado de maneira irregular, seja de
forma ilegal ou ilícita, não impede que ele alcance a qualidade jurídica de
refugiado.
Quando uma pessoa qualificada como “refugiado” comete alguma
conduta ilícita com o propósito de ingressar no território nacional e essa
conduta está diretamente relacionada a esse intento, o procedimento, seja ele
de natureza cível, administrativa ou criminal, deve ser arquivado, com base no
§ 1º do art. 10 da referida lei:
Art. 10. A solicitação,
apresentada nas condições previstas nos artigos anteriores, suspenderá qualquer
procedimento administrativo ou criminal pela entrada irregular, instaurado
contra o peticionário e pessoas de seu grupo familiar que o acompanhem.
§ 1º Se a condição de refugiado
for reconhecida, o procedimento será arquivado, desde que demonstrado que a
infração correspondente foi determinada pelos mesmos fatos que justificaram o
dito reconhecimento.
(...)
No caso concreto, embora o pedido
de reconhecimento da condição de refugiado tenha sido indeferido pelo Comitê
Nacional para os Refugiados (CONARE) devido à falta de demonstração de um
fundado temor de perseguição compatível com os critérios de elegibilidade
previstos no art. 10 da Lei nº 9.474/97, é importante destacar que o
estrangeiro encontra-se classificado como residente no território nacional e
recebeu um visto ou a permissão permanente, o que denota a condição de
residência legal no Brasil.
O art. 395, III, do CPP prescreve
a rejeição da denúncia quando inexistir justa causa para o início do processo
penal, isto é, quando não houver fundamentos sólidos para a persecução penal.
Essa medida, na situação em análise, é necessária, pois configura uma aplicação
pertinente do princípio da intervenção mínima e reforça a relevância do caráter
fragmentário do direito penal, já que a própria administração pública
reconheceu o direito de residência permanente no território nacional.
Nesse contexto, também, é
apropriado evocar a analogia in bonam partem, uma vez que a
interpretação nos conduz à conclusão de que a concessão de residência
permanente ao estrangeiro equivale a uma anistia legal para os crimes de uso de
documento falso e falsificação de documento público, conforme estabelecido no
art. 10, § 1º, da Lei nº 9.474/97 em relação aos refugiados. Logo, tal situação
resulta na inexistência de justa causa para a ação penal, considerando a
correlação entre o uso de passaporte falso e sua entrada irregular no Brasil.
Em suma:
Ainda que indeferido o pedido de refúgio, a concessão
de residência permanente ao estrangeiro equivale a uma anistia legal para os
crimes de uso de documento falso e falsificação de documento público, conforme
estabelecido no art. 10, § 1º, da Lei nº 9.474/97 em relação aos
refugiados.
STJ. 5ª Turma. AREsp 2.346.755-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em
7/11/2023 (Info 795).