Imagine a seguinte situação
hipotética:
João é proprietário de uma enorme
fazenda.
Ele contratou Pedro para que
arregimentasse trabalhadores para a fazenda e também gerisse as atividades
desses trabalhadores no imóvel rural.
Pedro contratou cinco
trabalhadores, porém sem que fosse assegurado a eles qualquer direito previsto
na legislação trabalhista, mantendo-os em condições degradantes, análogas à de
escravo.
Não havia registro do contrato de
trabalho, nem recolhimento de FGTS.
Essa situação perdurou até
11/05/2011, quando uma equipe do Ministério do Trabalho e do Emprego fez uma
fiscalização no local e resgatou os trabalhadores.
A equipe constatou que os
trabalhadores permaneciam em um barraco de madeira improvisado com lona preta,
com chão de terra batida. Nos fundos desse barraco, em local improvisado, era
feito o preparo dos alimentos e armazenados os equipamentos para aplicação de
agrotóxico, sem qualquer tipo de higiene.
A água para consumo e higiene era
retirada de um córrego nos fundos do barraco, no mesmo local onde eram lavados
os equipamentos de aplicação de agrotóxicos.
O MPF ofereceu denúncia contra João e Pedro pela prática do
crime de redução à condição análoga a de escravo, tipificado pelo art. 149 do
CP:
Art. 149. Reduzir alguém a
condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a
jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer
restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com
o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito
anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
(...)
De quem é a competência
para julgar este delito?
Justiça Federal, nos termos do art. 109, VI, da CF/88:
Art. 109. Aos juízes federais
compete processar e julgar:
(...)
VI - os crimes contra a
organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema
financeiro e a ordem econômico-financeira;
Compete à Justiça Federal
processar e julgar o crime de redução a condição análoga à de escravo, na forma
do art. 109, VI, da CF/88 (STF. Plenário. RE 459510, Rel. Min. Cezar Peluso,
Rel. para acórdão Min. Dias Toffoli, julgado em 26/11/2015).
Absolvição sumária
O juiz absolveu sumariamente os
réus sob o argumento de que a submissão de trabalhadores a condições
degradantes de trabalho, por si só, não consubstanciaria a prática do crime de
trabalho escravo, uma vez que o tipo penal exigiria, em acréscimo, a existência
de um estado de sujeição tal que a vontade do trabalhador afigurar-se-ia
irrelevante, o que não se teria demonstrado nos autos, considerando que os
trabalhadores teriam declarado não haver cerceamento da liberdade por dívida,
retenção de documentos, isolamento físico ou vigilância ostensiva.
Em outras palavras, o magistrado
afirmou que o crime não se configurou porque não houve efetiva restrição de
liberdade das vítimas.
A decisão do juiz está de
acordo com a jurisprudência do STF e STJ?
NÃO.
O crime de redução a condição
análoga à de escravo pode ocorrer independentemente da restrição à liberdade de
locomoção do trabalhador, uma vez que esta é apenas uma das formas de
cometimento do delito, mas não é a única.
O art. 149 do CP prevê outras
condutas que podem ofender o bem juridicamente tutelado, isto é, a liberdade de
o indivíduo ir, vir e se autodeterminar, dentre elas submeter o sujeito passivo
do delito a condições degradantes de trabalho.
Assim, para a configuração
do crime, não é indispensável a prática de violência ou a restrição da
liberdade. Muita atenção para isso. Trata-se do entendimento pacífico do STF e
STJ:
(...) A
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende ser desnecessário haver
violência física para a configuração do delito de redução à condição análoga à
de escravo. É preciso apenas a coisificação do trabalhador, com a reiterada
ofensa a direitos fundamentais, vulnerando a sua dignidade como ser humano
(...)
STF. 2ª
Turma. Inq 3564, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 19/08/2014.
(...) Para configuração do crime do art. 149 do
Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir
e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da
vítima “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou “a condições
degradantes de trabalho”, condutas alternativas previstas no tipo penal. A
“escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da
liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não
necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade
tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só
mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus
direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito
ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a
sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém a condição
análoga à de escravo”. (...)
STF.
Plenário. Inq 3412, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Min. Rosa Weber,
julgado em 29/03/2012.
(...) O crime de redução a condição
análoga à de escravo pode ocorrer independentemente da restrição à liberdade de
locomoção do trabalhador, uma vez que esta é apenas uma das formas de cometimento
do delito, mas não é a única. (...)
STJ. 5ª Turma. REsp 1223781/MA, Rel. Min.
Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 23/08/2016.
O delito de submissão à condição análoga à de escravo se
configura independentemente de restrição à liberdade dos trabalhadores ou
retenção no local de trabalho por vigilância ou apossamento de seus documentos,
como crime de ação múltipla e conteúdo variado, bastando, a teor do art. 149 do
CP, a demonstração de submissão a trabalhos forçados, a jornadas exaustivas ou
a condições degradantes.
STJ. 6ª Turma. REsp 1.843.150/PA, Rel. Ministro Nefi Cordeiro,
DJe de 2/6/2020.
Para configurar o delito do art. 149 do Código Penal (redução a
condição análoga à de escravo) NÃO É imprescindível a restrição à liberdade de
locomoção dos trabalhadores.
O delito pode ser praticado por meio de outras condutas como no
caso em que os trabalhadores são sujeitados a condições degradantes, subumanas.
STJ. 3ª Seção. CC 127937-GO, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em
28/5/2014 (Info 543).
Portanto, ante a existência de
indícios de que os trabalhadores atuavam em condições degradantes e tendo em
vista que a efetiva restrição de liberdade das vítimas é prescindível para a
configuração do tipo penal em espécie, o qual consubstancia crime de ação
múltipla e de conteúdo variado, a conduta imputada aos denunciados pode, em
tese, revelar-se típica.
Em suma:
A efetiva restrição de liberdade das vítimas é
prescindível para a configuração do crime de redução a condição análoga à de
escravo.
STJ. 5ª
Turma. REsp 1.969.868-MT, Rel. Min. Messod Azulay Neto, julgado em 12/9/2023 (Info
787).