Imagine a seguinte situação adaptada:
João foi surpreendido, em via
pública, por policiais militares portando invólucros de maconha.
Ao ser indagado, ele confessou a
prática de venda ilícita de entorpecentes e informou aos policiais o local onde
teria mais 50 invólucros da mesma droga.
João foi preso em flagrante e
denunciado por tráfico de drogas.
No depoimento prestado em juízo, um
dos policiais declarou que, não fosse a indicação do réu, eles não teriam
localizado as drogas que estavam escondidas.
João foi condenado. O magistrado entendeu que ele havia
apontado espontaneamente o restante do produto do crime e, por essa razão,
concedeu o benefício da redução da pena na fração de 1/3, com fundamento no art.
41 da Lei nº 11.343/2006:
Art. 41. O indiciado ou acusado
que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal
na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e na recuperação
total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida
de um terço a dois terços.
O Ministério Público apelou
alegando que o acusado não mereceria a redução porque os requisitos do art. 41
da Lei de Drogas não foram cumulativamente preenchidos:
a) existência de inquérito
policial, com indiciamento, ou processo criminal contra o autor da delação;
b) prestação de colaboração
voluntária (livre de qual quer coação física ou moral);
c) concurso de pessoas em
qualquer delito previsto no artigo 11.343/2006, vale dizer, é necessário que o
coautor e o partícipe delatados estejam praticando delitos previstos na lei de
drogas;
d) recuperação total ou parcial
do produto de crime, que segundo a doutrina majoritária, é a própria droga ou
valores obtidos com sua comercialização.
Apontou que “não foi efetuada
campana, não houve infiltração de agente, postergação de flagrante ou qualquer
outra diligência investigativa a indicar a existência de uma prévia
investigação que pudesse preencher o requisito “investigação policial”.
O Tribunal de Justiça concordou
com o MP e afastou a aplicação da causa de diminuição de pena.
A defesa impetrou habeas corpus argumentando
que os requisitos legais contidos no art. 41 da LD são alternativos, e não
cumulativos, sobretudo na hipótese concreta dos autos, em que o acusado
voluntariamente mostrou aos policiais onde estava escondido o restante dos
entorpecentes e as circunstâncias fáticas do caso não indicam a possível
existência de outras pessoas envolvidas na prática delitiva.
O STJ concordou com a
defesa? Os requisitos legais previstos no art. 41 da Lei nº 11.343/2006
são alternativos ou cumulativos?
SIM. Os requisitos do art. 41 da
LD são alternativos.
Diz o art. 41 da Lei nº 11.343/2006 que:
Art. 41. O indiciado ou acusado
que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal
na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e na recuperação
total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida
de um terço a dois terços.
Não há como negar que a leitura
do referido dispositivo legal aponta, ao menos à primeira vista, para a
cumulatividade dos requisitos legais ali estabelecidos, em razão do emprego da
conjunção coordenada aditiva “e” entre eles.
Entretanto, a interpretação
gramatical de um dispositivo legal nem sempre reflete a mais adequada exegese
para dele extrair a norma jurídica pertinente. Trata-se de método hermenêutico
que, muitas vezes, acaba por ignorar lição fundamental de Teoria Geral do
Direito segundo a qual o ato normativo não se resume à mera dicção explícita de
sua literalidade, pois o texto só se converte em norma depois de interpretado.
Assim, é necessário interpretar os dispositivos legais principalmente à luz da
sistemática em que estão inseridos, a fim de dar coerência e integridade ao
ordenamento.
Nesse passo, cumpre lembrar que o
atual art. 41 da Lei de Drogas tem origem no antigo art. 32, § 2º, da Lei nº 10.409/2002,
o qual trazia a conjunção “ou” entre os requisitos para a colaboração premiada,
ao dispor que “O sobrestamento do processo ou a redução da pena podem ainda
decorrer de acordo entre o Ministério Público e o indiciado que,
espontaneamente, revelar a existência de organização criminosa, permitindo a
prisão de um ou mais dos seus integrantes, ou a apreensão do produto, da
substância ou da droga ilícita, ou que, de qualquer modo, justificado no
acordo, contribuir para os interesses da Justiça”.
Ademais, além de não se
identificar nenhuma justificativa para que tal mudança gramatical decorresse de
eventual propósito deliberado do legislador e nada há na Exposição de Motivos
da Lei nº 11.343/2006 que o indique, não se pode desconsiderar o advento da Lei
nº 12.850/2013, que cuidou de definir, regular e sistematizar diversos aspectos
relativos ao instituto da colaboração premiada, oportunidade em que, ao
estabelecer seus requisitos no art. 4º, fê-lo de forma alternativa.
Essa consideração ganha dimensão
ainda mais significativa se ponderado que os crimes da Lei de Organizações
Criminosas são plurissubjetivos, isto é, de concurso necessário de pessoas e,
mesmo assim, o legislador não impôs obrigatoriamente a identificação dos demais
coautores e partícipes, de modo que não se mostra razoável exigi-lo
compulsoriamente nos crimes contidos na Lei de Drogas, em que o concurso de
pessoas é meramente eventual.
Trata-se de interpretação mais
consentânea ao princípio da proporcionalidade, pois não desconsidera a
relevante colaboração do réu com o Estado-acusação, dá maior efetividade a esse
meio de obtenção de prova estabelecido pelo legislador e ainda evita a indevida
confusão entre delação premiada e colaboração premiada, uma vez que a delação
de comparsas é apenas uma das formas pelas quais o indivíduo pode prestar
colaboração.
Assim, tanto sob a perspectiva de
uma interpretação histórica, quanto à luz de uma interpretação sistemática - em
consonância com o tratamento geral que a Lei nº 12.850/2013 posteriormente
conferiu à matéria -, é mais adequado considerar alternativos, e não
cumulativos, os requisitos legais previstos no art. 41 da Lei nº 11.343/2006
para redução da pena.
Isso não significa conceder ao
acusado que identifica seus comparsas e ainda ajuda na recuperação do produto
do crime o mesmo tratamento conferido àquele que só realiza uma dessas duas
condutas, pois os distintos graus de colaboração podem (e devem) ser sopesados
para definir a fração de redução da pena de um a dois terços, nos termos da
lei.
Em suma:
STJ. 6ª Turma. HC 663.265-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz,
julgado em 12/9/2023 (Info 789).
Outro tema importante: qual
é o conceito de produto do crime, de que trata o art. 41 da LD?
Embora haja certa divergência
quanto ao exato enquadramento técnico da droga como “produto do crime”, há
razoável consenso doutrinário de que, independentemente da categoria jurídica
adotada, a interpretação da regra contida no art. 41 da Lei nº 11.343/2006 deve
abarcar necessariamente a recuperação total ou parcial das drogas.
Assim, o conceito de “produto do
crime”, no contexto do art. 41 da Lei nº 11.343/2006, deve ser interpretado
para abranger tanto os produtos diretos propriamente ditos quanto a substância
entorpecente e os proveitos (produtos indiretos) obtidos a partir da prática
delitiva.