Dizer o Direito

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

O princípio da insignificância pode ser aplicado para o contrabando de até mil maços de cigarro, salvo se houver reiteração

Imagine a seguinte situação adaptada:

A Polícia apreendeu, com João, 53 pacotes com 10 maços de cigarros cada, da marca “Fumador”, que não continham selos obrigatórios, ostentando em sua embalagem a informação de que teriam sido fabricados por “Tabacaria Del Este S.A. (TABESA) Paraguay”.

João admitiu que comercializava os cigarros de procedência estrangeira em seu bar.

Vale ressaltar que os cigarros da marca “Fumador” são proibidos no Brasil, não possuindo registro na ANVISA. Neste caso, a importação não pode ser realizada mesmo pagando os tributos.

 

Qual foi o crime praticado por João?

Contrabando, nos termos do art. 334-A do Código Penal:

Contrabando

Art. 334-A. Importar ou exportar mercadoria proibida:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 ( cinco) anos.

§ 1º Incorre na mesma pena quem:

(...)

IV - vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira;

 

De quem será a competência para processar e julgar o delito?

Justiça Federal, tanto no caso de descaminho como de contrabando:

A existência de cigarros de origem estrangeira, dentre aqueles apreendidos, é suficiente para demonstrar ter havido a prática do crime de contrabando, firmando a competência da Justiça Federal, ainda que não evidenciado o caráter transnacional da conduta.

STJ. 3ª Seção. CC 180.476/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 25/8/2021.

 

Os crimes de contrabando e descaminho tutelam prioritariamente interesses da União, que é a quem compete privativamente (arts. 21, XXII, e 22, VII, da CF) definir os produtos de ingresso proibido no país, além de exercer a fiscalização aduaneira e das fronteiras, mediante atuação da Receita Federal e da Polícia Federal. Como consequência, é desnecessário perquirir sobre a existência de indícios de transnacionalidade do iter criminis, ou seja, não se exige que fique demonstrado que o agente teve participação na internalização da mercadoria estrangeira no país. Sendo contrabando ou descaminho, a competência será sempre da Justiça Federal.

 

É possível aplicar o princípio da insignificância para o crime de contrabando envolvendo cigarro?

• Antes do Tema 1143: NÃO.

Não se aplica o princípio da insignificância ao crime de contrabando de cigarros, pois a conduta não se limita à lesão da atividade arrecadatória do Estado, atingindo outros bens jurídicos, como a saúde, segurança e moralidade pública.

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 2.053.404/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 28/8/2023.

 

• Depois do Tema 1143 (atualmente): SIM.

O STJ, alterando sua posição, passou a decidir que:

O princípio da insignificância é aplicável ao crime de contrabando de cigarros quando a quantidade apreendida não ultrapassar 1.000 (mil) maços, seja pela diminuta reprovabilidade da conduta, seja pela necessidade de se dar efetividade à repressão a o contrabando de vulto, excetuada a hipótese de reiteração da conduta, circunstância apta a indicar maior reprovabilidade e periculosidade social da ação. 

STJ. 3ª Seção. REsps 1.971.993-SP e 1.977.652-SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Rel. para acórdão Min. Sebastião Reis Junior, julgado em 13/9/2023 (Recurso Repetitivo – Tema 1143) (Info 787).

 

Realmente, o delito de contrabando de cigarros não tutela apenas os interesses tributários do Estado. Isso porque a prática desse crime ofende outros bens jurídicos, notadamente a saúde pública.

O fumo já é uma prática maléfica à saúde. Vale ressaltar, no entanto, em acréscimo, que há estudo comprovando que os cigarros contrabandeados, em geral, ostentam uma carga de substâncias nocivas superior àqueles vendidos regularmente no Brasil. Além disso, esses cigarros contrabandeados apresentam algum tipo de contaminante dos tipos fungos, fragmentos de insetos, gramíneas ou ácaros acima do indicado como boas práticas de higiene pela ANVISA (SILVA, Cleber Pinto da. Caracterização e Avaliação da Qualidade dos Cigarros Contrabandeados no Brasil. 2015. 123 f. Dissertação (Mestrado em Química) - Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2015).

Desse modo, indiscutivelmente, trata-se de um delito que tem como objetivo proteger a saúde da população em geral.

Vale ressaltar, contudo, que, diante do enorme número de apreensões, é necessário que sejam adotadas políticas criminais para se dar efetividade à repressão ao contrabando de maior vulto.

Pensando nisso, a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal aprovou enunciado dizendo que se aplica o princípio da insignificância para a hipótese de contrabando de cigarros se a quantidade não ultrapassar 1.000 (mil) maços:

Enunciado nº 90 É cabível o arquivamento de investigações criminais referentes a condutas que se adéquem ao contrabando de cigarros quando a quantidade apreendida não superar 1.000 (mil) maços, seja pela diminuta reprovabilidade da conduta, seja pela necessidade de se dar efetividade à repressão ao contrabando de vulto. As eventuais reiterações serão analisadas caso a caso.

Aprovado na 177ª Sessão de Coordenação, de 16/03/2020.

 

Para o STJ, essa solução adotada pelo MPF é razoável, não apenas do ponto de vista jurídico, como ostenta uma base estatística sólida para a sua adoção.

Os dados estatísticos relativos ao ano de 2022, revelam que as apreensões de cigarros até 1.000 maços, embora correspondam a maioria das autuações (cerca de 3.395), são insignificantes considerando o volume total de maços apreendidos.

Isso significa que obstar a aplicação do princípio da insignificância em tais casos (apreensão até mil maços), é uma medida ineficaz para fins de proteção dos bens jurídicos que se almeja tutelar, em especial a saúde pública, além do que não é razoável do ponto de vista de política criminal e de gestão de recursos dos entes estatais encarregados da persecução penal, pois sobrecarrega a Justiça Federal e demais órgãos de persecução (Ministério Público Federal e Polícia Federal), sobretudo na região de fronteira, com inúmeros inquéritos policiais e outros feitos criminais derivados de apreensões inexpressivas, drenando o tempo e os recursos indispensáveis para reprimir e punir o crime de vulto.

Diante disso, o STJ decidiu acolher o entendimento da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, de modo a admitir a aplicação do princípio da insignificância para os casos de contrabando de cigarros de quantidade inferior a 1.000 (mil) maços, excetuada a hipótese de reiteração, circunstância que, caso verificada, é apta a afastar a atipicidade material, ante a maior reprovabilidade da conduta e periculosidade social da ação.

 

Modulação dos efeitos

Como o STJ durante muitos anos rejeitou a aplicação do princípio da insignificância para o crime de contrabando, o Tribunal decidiu modular os efeitos do julgado, de modo que a tese deve ser aplicada apenas aos feitos ainda em curso na data em que encerrado o presente julgamento, sendo inaplicáveis aos processos transitados em julgado, notadamente considerando os fundamentos que justificaram a alteração jurisprudencial no caso e a impossibilidade de rescisão de coisa julgada calcada em mera modificação de orientação jurisprudencial (AgRg no HC 821.959/SP, Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, DJe 21/8/2023).


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