Imagine a seguinte situação adaptada:
A Polícia apreendeu, com João, 53
pacotes com 10 maços de cigarros cada, da marca “Fumador”, que não continham
selos obrigatórios, ostentando em sua embalagem a informação de que teriam sido
fabricados por “Tabacaria Del Este S.A. (TABESA) Paraguay”.
João admitiu que comercializava
os cigarros de procedência estrangeira em seu bar.
Vale ressaltar que os cigarros da
marca “Fumador” são proibidos no Brasil, não possuindo registro na ANVISA.
Neste caso, a importação não pode ser realizada mesmo pagando os tributos.
Qual foi o crime praticado
por João?
Contrabando, nos termos do art. 334-A do Código Penal:
Contrabando
Art. 334-A. Importar ou exportar
mercadoria proibida:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5
( cinco) anos.
§ 1º Incorre na mesma pena quem:
(...)
IV - vende, expõe à venda, mantém
em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no
exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei
brasileira;
De quem será a competência
para processar e julgar o delito?
Justiça Federal, tanto no caso de descaminho como de
contrabando:
A existência de cigarros de origem estrangeira, dentre aqueles
apreendidos, é suficiente para demonstrar ter havido a prática do crime de
contrabando, firmando a competência da Justiça Federal, ainda que não
evidenciado o caráter transnacional da conduta.
STJ. 3ª Seção. CC 180.476/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em
25/8/2021.
Os crimes de contrabando e
descaminho tutelam prioritariamente interesses da União, que é a quem compete
privativamente (arts. 21, XXII, e 22, VII, da CF) definir os produtos de
ingresso proibido no país, além de exercer a fiscalização aduaneira e das fronteiras,
mediante atuação da Receita Federal e da Polícia Federal. Como consequência, é
desnecessário perquirir sobre a existência de indícios de transnacionalidade do
iter criminis, ou seja, não se exige que fique demonstrado que o agente
teve participação na internalização da mercadoria estrangeira no país. Sendo
contrabando ou descaminho, a competência será sempre da Justiça Federal.
É possível aplicar o
princípio da insignificância para o crime de contrabando envolvendo cigarro?
• Antes do Tema 1143: NÃO.
Não se aplica o princípio da insignificância ao crime de
contrabando de cigarros, pois a conduta não se limita à lesão da atividade
arrecadatória do Estado, atingindo outros bens jurídicos, como a saúde,
segurança e moralidade pública.
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 2.053.404/SP, Rel. Min. Ribeiro
Dantas, julgado em 28/8/2023.
• Depois do Tema 1143
(atualmente): SIM.
O STJ, alterando sua posição, passou a decidir que:
O princípio da insignificância é
aplicável ao crime de contrabando de cigarros quando a quantidade apreendida
não ultrapassar 1.000 (mil) maços, seja pela diminuta reprovabilidade da
conduta, seja pela necessidade de se dar efetividade à repressão a o contrabando
de vulto, excetuada a hipótese de reiteração da conduta, circunstância apta a
indicar maior reprovabilidade e periculosidade social da ação.
STJ. 3ª Seção.
REsps 1.971.993-SP e 1.977.652-SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Rel. para
acórdão Min. Sebastião Reis Junior, julgado em 13/9/2023 (Recurso Repetitivo –
Tema 1143) (Info 787).
Realmente, o delito de
contrabando de cigarros não tutela apenas os interesses tributários do Estado.
Isso porque a prática desse crime ofende outros bens jurídicos, notadamente a
saúde pública.
O fumo já é uma prática maléfica
à saúde. Vale ressaltar, no entanto, em acréscimo, que há estudo comprovando
que os cigarros contrabandeados, em geral, ostentam uma carga de substâncias
nocivas superior àqueles vendidos regularmente no Brasil. Além disso, esses
cigarros contrabandeados apresentam algum tipo de contaminante dos tipos
fungos, fragmentos de insetos, gramíneas ou ácaros acima do indicado como boas
práticas de higiene pela ANVISA (SILVA, Cleber Pinto da. Caracterização e
Avaliação da Qualidade dos Cigarros Contrabandeados no Brasil. 2015. 123 f.
Dissertação (Mestrado em Química) - Universidade Estadual de Ponta Grossa,
Ponta Grossa, 2015).
Desse modo, indiscutivelmente,
trata-se de um delito que tem como objetivo proteger a saúde da população em
geral.
Vale ressaltar, contudo, que,
diante do enorme número de apreensões, é necessário que sejam adotadas
políticas criminais para se dar efetividade à repressão ao contrabando de maior
vulto.
Pensando nisso, a 2ª Câmara de
Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal aprovou enunciado dizendo
que se aplica o princípio da insignificância para a hipótese de contrabando de
cigarros se a quantidade não ultrapassar 1.000 (mil) maços:
Enunciado nº 90 É cabível o arquivamento de investigações
criminais referentes a condutas que se adéquem ao contrabando de cigarros
quando a quantidade apreendida não superar 1.000 (mil) maços, seja pela
diminuta reprovabilidade da conduta, seja pela necessidade de se dar
efetividade à repressão ao contrabando de vulto. As eventuais reiterações serão
analisadas caso a caso.
Aprovado na 177ª Sessão de Coordenação, de 16/03/2020.
Para o STJ, essa solução adotada
pelo MPF é razoável, não apenas do ponto de vista jurídico, como ostenta uma
base estatística sólida para a sua adoção.
Os dados estatísticos relativos
ao ano de 2022, revelam que as apreensões de cigarros até 1.000 maços, embora
correspondam a maioria das autuações (cerca de 3.395), são insignificantes
considerando o volume total de maços apreendidos.
Isso significa que obstar a
aplicação do princípio da insignificância em tais casos (apreensão até mil
maços), é uma medida ineficaz para fins de proteção dos bens jurídicos que se
almeja tutelar, em especial a saúde pública, além do que não é razoável do
ponto de vista de política criminal e de gestão de recursos dos entes estatais
encarregados da persecução penal, pois sobrecarrega a Justiça Federal e demais
órgãos de persecução (Ministério Público Federal e Polícia Federal), sobretudo
na região de fronteira, com inúmeros inquéritos policiais e outros feitos
criminais derivados de apreensões inexpressivas, drenando o tempo e os recursos
indispensáveis para reprimir e punir o crime de vulto.
Diante disso, o STJ decidiu acolher
o entendimento da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público
Federal, de modo a admitir a aplicação do princípio da insignificância para os
casos de contrabando de cigarros de quantidade inferior a 1.000 (mil) maços,
excetuada a hipótese de reiteração, circunstância que, caso verificada, é apta
a afastar a atipicidade material, ante a maior reprovabilidade da conduta e
periculosidade social da ação.
Modulação dos efeitos
Como
o STJ durante muitos anos rejeitou a aplicação do princípio da insignificância
para o crime de contrabando, o Tribunal decidiu modular os efeitos do julgado,
de modo que a tese deve ser aplicada apenas aos feitos ainda em curso na data
em que encerrado o presente julgamento, sendo inaplicáveis aos processos
transitados em julgado, notadamente considerando os fundamentos que
justificaram a alteração jurisprudencial no caso e a impossibilidade de
rescisão de coisa julgada calcada em mera modificação de orientação
jurisprudencial (AgRg no HC 821.959/SP, Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, DJe
21/8/2023).