Imagine a seguinte situação
hipotética:
Renato, 18 anos, agrediu sua irmã
Simone.
Na época, Simone era menor de
idade e sua genitora optou por não dar prosseguimento ao processo.
Renato voltou a agredir Simone,
com socos, chutes, além de desferir vários golpes na vítima com um cabo de
vassoura e um martelo de madeira.
Foi decretada a prisão preventiva
do agressor.
Renato foi condenado, porém teve
que ser solto porque já tinha permanecido preso preventivamente por tempo
superior à pena imposta.
Na audiência, antes de ser posto
em liberdade, Renato afirmou que irá voltar à casa da sua mãe, e que não acha
certo ter que sair de casa “só por causa da sua irmã”.
Diante desse comportamento do
irmão e com receio de sofrer novas agressões, Simone compareceu perante o
Ministério Público e solicitou a aplicação de medidas protetivas necessárias.
O MP requereu a aplicação das
seguintes medidas protetivas: proibição de entrar em contato com a vítima
Simone, devendo Renato manter uma distância mínima de 400 metros.
Mencionadas medidas protetivas
foram deferidas pelo Juiz. Ocorre, poucos meses depois, foi certificada a
ausência de instauração de inquérito policial e o procedimento de aplicação de
medidas protetivas foi arquivado, determinando-se ao Ministério Público que
ingressasse com a ação cabível, se assim entendesse.
O MP ingressou, então, com ação
civil pública com obrigação de não fazer em desfavor de Renato, pedindo que o
juízo aplicasse as seguintes medidas para proteção da ofendida:
1) determinação para que Renato seja
proibido de se aproximar de Simone a uma distância inferior a 400m;
2) proibição de manter contato com
Simone; e;
3) afastamento de Renato do lar
comum.
O Juiz indeferiu liminarmente a
inicial.
De acordo com a decisão, o caso
dos autos envolve interesse individual puro e simples, não se verificando, na
espécie, interesses e direitos transindividuais ou outra hipótese capaz de
autorizar o MP a postular em juízo direito alheio.
Destacou que “ainda que se
considere como direito indisponível, é certo que o ordenamento
infraconstitucional não autoriza o Ministério Público a agir, em demandas
cíveis referentes a violência doméstica, como substituto processual, diferente
do que o faz em caso de direitos relativos à infância e juventude, idoso ou
portador de deficiência”.
Entendeu que “a atuação
ministerial somente se justificaria quando a situação de vulnerabilidade da
pessoa, ou o contexto em que se encontra inserida, possam impedi-la de buscar
seus direitos”.
Concluiu, portanto, que “cabe à
própria interessada buscar a satisfação de sua pretensão”.
O Ministério Público não
concordou e interpôs apelação.
O Tribunal de Justiça de São
Paulo negou provimento ao recurso.
Ainda inconformado, o Parquet
interpôs recurso especial.
O STJ deu provimento ao
recurso do MP? O Ministério Público possui legitimidade para
requerer, em ação civil pública, medida protetiva de urgência em favor de
mulher vítima de violência doméstica?
SIM.
O art. 25 da Lei nº 11.340/2006 determina que o Ministério
Público é legítimo para atuar nas causas cíveis e criminais decorrentes da
violência doméstica e familiar contra a mulher:
Art. 25. O Ministério Público
intervirá, quando não for parte, nas causas cíveis e criminais decorrentes da
violência doméstica e familiar contra a mulher.
A Primeira Seção do STJ, em
recurso repetitivo, firmou a tese de que o Ministério Público é parte legítima
para pleitear tratamento médico ou entrega de medicamentos nas demandas de
saúde propostas contra os entes federativos, mesmo quando se tratar de feitos
contendo beneficiários individualizados, porque se trata de direitos
individuais indisponíveis:
O Ministério Público é parte legítima para pleitear tratamento
médico ou entrega de medicamentos nas demandas de saúde propostas contra os
entes federativos, mesmo quando se tratar de feitos contendo beneficiários
individualizados, porque se refere a direitos individuais indisponíveis, na
forma do art. 1º da Lei n. 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério
Público).
STJ. 1ª Seção. REsp 1682836-SP, Rel. Min. Og Fernandes, julgado
em 25/04/2018 (Recurso Repetitivo – Tema 766) (Info 624).
Segundo o STJ, o limite para a legitimidade da atuação
judicial do Ministério Público vincula-se à disponibilidade, ou não, dos
direitos individuais vindicados, isto é, tratando-se de direitos individuais
disponíveis, e não havendo uma lei específica autorizando, de forma
excepcional, a atuação dessa instituição permanente, não se pode falar em
legitimidade de sua atuação. Contudo, se se tratar de direitos ou interesses
indisponíveis, a legitimidade ministerial decorre do art. 1º da Lei nº 8.625/93:
Art. 1º O Ministério Público é
instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis.
Parágrafo único. São princípios
institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a
independência funcional.
Vale ressaltar, ainda, que o STJ entende
que é viável a ação civil pública não apenas para tutelar conflitos de massa
(direitos transindividuais), mas também se revela como o meio pertinente à
tutela de direitos e interesses indisponíveis e/ou que detenham suficiente
repercussão social, aproveitando, em maior ou menor medida, toda a
coletividade.
A medida protetiva de urgência
requerida para resguardar interesse individual de mulher vítima de violência
doméstica tem natureza indisponível, e, pela razoabilidade, não se pode
entender pela disponibilidade do direito, haja vista que a Lei nº 11.340/2006
surgiu no ordenamento jurídico brasileiro como um dos instrumentos que
resguardam os tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil é
parte, e assumiu o compromisso de resguardar a dignidade humana da mulher,
dentre eles, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres.
A Lei Maria da Penha foi criada
como mecanismo para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a
mulher, nos termos do §8° do art. 226 da Constituição da República, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher,
da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra
a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República
Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e
proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Portanto, conclui-se que, no
âmbito do combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, por se
tratar de direito individual indisponível, o MP possui legitimidade para atuar
tanto na esfera jurídica penal, quanto na cível, nos termos do art. 1º da Lei nº
8.625/93 e art. 25 da Lei nº 11.340/2006.
Em suma:
O Ministério Público possui legitimidade para
requerer, em ação civil pública, medida protetiva de urgência em favor de
mulher vítima de violência doméstica.
STJ. 6ª
Turma. REsp 1.828.546-SP, Rel. Min. Jesuíno Rissato (Desembargador convocado do
TJDFT), julgado em 12/9/2023 (Info 788).