Crime
continuado (continuidade delitiva)
Ocorre crime continuado quando o
agente:
- por meio de duas ou mais condutas
- pratica dois ou mais crimes da mesma
espécie
- e, analisando as condições de tempo,
local, modo de execução e outras,
- pode-se constatar que os demais
crimes devem ser entendidos como mera continuação do primeiro.
O crime continuado é uma ficção
jurídica, inspirada em motivos de política criminal, idealizada com o objetivo
de ajudar o réu. Ao invés de ele ser condenado pelos vários crimes, receberá a
pena de somente um deles, com a incidência de um aumento previsto na lei.
Exemplo
Carlos era caixa de uma lanchonete e
estava devendo R$ 500,00 a um agiota. Ele decide, então, tirar o dinheiro do
caixa para pagar sua dívida. Ocorre que, se ele retirasse toda a quantia de uma
só vez, o seu chefe iria perceber. Carlos resolve, portanto, subtrair R$ 50,00
por dia. Assim, após dez dias ele consegue retirar os R$ 500,00.
Desse modo, Carlos, por meio de dez
condutas, praticou dez furtos. Analisando as condições de tempo, local, modo de
execução, pode-se constatar que os outros nove furtos devem ser entendidos como
mera continuação do primeiro, considerando que sua intenção era furtar o valor
total de R$ 500,00.
Em vez de Carlos ser condenado por dez
furtos, receberá somente a pena de um furto, com a incidência de um aumento de
1/6 a 2/3.
Previsão
legal
O instituto da continuidade delitiva encontra-se previsto no
art. 71 do Código Penal:
Art. 71. Quando o agente,
mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma
espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras
semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro,
aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas,
aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.
Espécies
Existem três espécies de crime
continuado:
a)
Crime continuado simples (comum)
b)
Crime continuado qualificado
c)
Crime continuado específico
SIMPLES (OU COMUM) |
QUALIFICADO |
ESPECÍFICO |
Ocorre quando o agente pratica dois
ou mais crimes que possuem a mesma pena. |
Ocorre quando o agente pratica dois
ou mais crimes que possuem penas diferentes. |
Ocorre no caso de: ·
crimes dolosos ·
cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa ·
contra vítimas diferentes |
Ex: três furtos simples consumados;
dois furtos qualificados tentados. |
Ex: dois furtos simples consumados e
um tentado; um furto qualificado consumado e um tentado. |
Ex: José segue duas mulheres que
caminhavam juntas e pratica estupro consumado contra uma e estupro tentado
contra a outra. |
Como se calcula a pena: aplica-se a pena de um só dos crimes,
exasperada (aumentada) de 1/6 a 2/3. |
Como se calcula a pena: aplica-se a pena do crime mais grave,
exasperada (aumentada) de 1/6 a 2/3. |
Como se calcula a pena: aplica-se a pena de um só dos crimes,
se idênticas, ou a mais grave, se diversas, e aumenta até o triplo
(3x). Obs.: apesar de
não haver previsão legal, a jurisprudência entende que o aumento mínimo é de
1/6. |
O critério para o aumento é exclusivamente o número de crimes
praticados: 2 crimes – aumenta 1/6 3 crimes – aumenta 1/5 4 crimes – aumenta 1/4 5 crimes – aumenta 1/3 6 crimes – aumenta 1/2 7 ou mais – aumenta 2/3 |
O critério para o aumento é exclusivamente o número de crimes
praticados: 2 crimes – aumenta 1/6 3 crimes – aumenta 1/5 4 crimes – aumenta 1/4 5 crimes – aumenta 1/3 6 crimes – aumenta 1/2 7 ou mais – aumenta 2/3 |
A exacerbação da pena deverá se
nortear por critérios objetivos (número de infrações praticadas) e subjetivos
(culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente,
motivos e circunstâncias do crime). (STJ. 5ª Turma. HC 305.233/SP, Rel. Min.
Felix Fischer, julgado em 27/10/2015) |
É bom você ler com atenção a previsão legal do crime
continuado específico:
Art. 71 (...)
Parágrafo único. Nos crimes dolosos,
contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa,
poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social
e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar
a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o
triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste
Código.
• Crime continuado do caput do art. 71 do CP: o critério para se
determinar o quantum da majoração (entre 1/6 a 2/3) é apenas a quantidade de
delitos cometidos. Assim, quanto mais infrações, maior deve ser o aumento.
• Crime continuado específico (art. 71, parágrafo único, do CP):
a fração de aumento será determinada pela quantidade de crimes praticados e
também pela análise das circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal.
STJ. 5ª Turma. REsp 1718212/PR, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado
em 19/04/2018.
Feita essa revisão, imagine a
seguinte situação adaptada:
(Obs: alerta de gatilho; temas
sensíveis)
De acordo com os autos, L (mãe),
por diversas oportunidades, molestou seus três filhos.
Os abusos aconteciam sempre após
o banho com as vítimas reunidas.
A acusada introduzia o dedo no
ânus dos filhos em caso de desobediência às suas ordens.
Em razão desses fatos, L foi
denunciada pelos crimes de estupro de vulnerável em continuidade delitiva.
O Ministério Público requereu que fosse reconhecida a continuidade delitiva específica,
prevista no parágrafo único do art. 71, para possibilitar um incremento maior
na pena (até o triplo):
Crime continuado
Art. 71 (...)
Parágrafo único - Nos crimes
dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à
pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta
social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias,
aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se
diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do
art. 75 deste Código.
O Tribunal de Justiça, contudo, reconheceu
a continuidade delitiva prevista no caput do art. 71, elevando a pena
até o máximo previsto (2/3).
Inconformado, o Ministério
Público interpôs recurso especial.
Nas razões do recurso especial, o
Ministério Público sustentou que seria cabível, no delito de estupro de
vulnerável contra vítimas distintas, o reconhecimento da continuidade delitiva
específica, prevista no parágrafo único do art. 71 do CP
O STJ deu provimento ao
recurso do Ministério Público?
NÃO.
Conforme vimos acima, o crime
continuado é benefício penal, modalidade de concurso de crimes, que, por ficção
legal, consagra unidade incindível entre os crimes que o formam, para fins
específicos de aplicação da pena.
Para a sua aplicação, o caput do art.
71 do CP, exige a presença concomitante de três requisitos objetivos:
a) pluralidade de condutas;
b) pluralidade de crime da mesma
espécie; e
c) condições semelhantes de tempo
lugar, maneira de execução e outras semelhantes.
No caso da continuidade delitiva
específica, descrita no parágrafo único do art. 71, além dos requisitos acima
são exigidos também que:
• os crimes praticados sejam
dolosos contra vítimas diferentes; e
• cometidos com violência ou
grave ameaça à pessoa.
No caso, a instância a quo
não aplicou a regra continuidade delitiva específica sob o argumento de que não
foi empregada violência real contra as vítimas.
Ao decidir assim o TJ aplicou a
jurisprudência do STJ sobre o tema:
A violência de que trata a continuidade delitiva especial (art.
71, parágrafo único, do Código Penal) é real, sendo inviável aplicar limites
mais gravosos do benefício penal da continuidade delitiva com base,
exclusivamente, na ficção jurídica de violência do legislador utilizada para
criar o tipo penal de estupro de vulnerável, se efetivamente a conjunção carnal
ou ato libidinoso executado contra vulnerável foi desprovido de qualquer
violência real.
STJ. 5ª Turma. PET no REsp 1.659.662/CE, Rel. Min. Ribeiro
Dantas, DJe de 14/5/2021.
Nas hipóteses de crimes de estupro ou de atentado violento ao
pudor praticados com violência presumida, não incide a regra do concurso
material nem da continuidade delitiva específica.
STJ. 6ª Turma. REsp 1.602.771/MG, Rel. Min. Rogerio Schietti
Cruz, DJe de 27/10/2017.
Em suma:
Não incide a regra a continuidade delitiva específica
nos crimes de estupro praticados com violência presumida.
STJ. 5ª
Turma. AgRg em ARESP 2.165.385/MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca,
julgado em 5/9/2023 (Info 786).