Dizer o Direito

sábado, 4 de novembro de 2023

Não incide a regra a continuidade delitiva específica nos crimes de estupro praticados com violência presumida

Crime continuado (continuidade delitiva)

Ocorre crime continuado quando o agente:

- por meio de duas ou mais condutas

- pratica dois ou mais crimes da mesma espécie

- e, analisando as condições de tempo, local, modo de execução e outras,

- pode-se constatar que os demais crimes devem ser entendidos como mera continuação do primeiro.

 

O crime continuado é uma ficção jurídica, inspirada em motivos de política criminal, idealizada com o objetivo de ajudar o réu. Ao invés de ele ser condenado pelos vários crimes, receberá a pena de somente um deles, com a incidência de um aumento previsto na lei.

 

Exemplo

Carlos era caixa de uma lanchonete e estava devendo R$ 500,00 a um agiota. Ele decide, então, tirar o dinheiro do caixa para pagar sua dívida. Ocorre que, se ele retirasse toda a quantia de uma só vez, o seu chefe iria perceber. Carlos resolve, portanto, subtrair R$ 50,00 por dia. Assim, após dez dias ele consegue retirar os R$ 500,00.

Desse modo, Carlos, por meio de dez condutas, praticou dez furtos. Analisando as condições de tempo, local, modo de execução, pode-se constatar que os outros nove furtos devem ser entendidos como mera continuação do primeiro, considerando que sua intenção era furtar o valor total de R$ 500,00.

Em vez de Carlos ser condenado por dez furtos, receberá somente a pena de um furto, com a incidência de um aumento de 1/6 a 2/3.

 

Previsão legal

O instituto da continuidade delitiva encontra-se previsto no art. 71 do Código Penal:

Art. 71. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

 

Espécies

Existem três espécies de crime continuado:

a)       Crime continuado simples (comum)

b)      Crime continuado qualificado

c)       Crime continuado específico

 

SIMPLES (OU COMUM)

QUALIFICADO

ESPECÍFICO

Ocorre quando o agente pratica dois ou mais crimes que possuem a mesma pena.

Ocorre quando o agente pratica dois ou mais crimes que possuem penas diferentes.

Ocorre no caso de:

·     crimes dolosos

·     cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa

·     contra vítimas diferentes

Ex: três furtos simples consumados; dois furtos qualificados tentados.

Ex: dois furtos simples consumados e um tentado; um furto qualificado consumado e um tentado.

Ex: José segue duas mulheres que caminhavam juntas e pratica estupro consumado contra uma e estupro tentado contra a outra.

Como se calcula a pena:

aplica-se a pena de um só dos crimes, exasperada (aumentada) de 1/6 a 2/3.

Como se calcula a pena:

aplica-se a pena do crime mais grave, exasperada (aumentada) de 1/6 a 2/3.

Como se calcula a pena:

aplica-se a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, e aumenta até o triplo (3x).

 

Obs.: apesar de não haver previsão legal, a jurisprudência entende que o aumento mínimo é de 1/6.

O critério para o aumento é exclusivamente o número de crimes praticados:

2 crimes – aumenta 1/6

3 crimes – aumenta 1/5

4 crimes – aumenta 1/4

5 crimes – aumenta 1/3

6 crimes – aumenta 1/2

7 ou mais – aumenta 2/3

O critério para o aumento é exclusivamente o número de crimes praticados:

2 crimes – aumenta 1/6

3 crimes – aumenta 1/5

4 crimes – aumenta 1/4

5 crimes – aumenta 1/3

6 crimes – aumenta 1/2

7 ou mais – aumenta 2/3

A exacerbação da pena deverá se nortear por critérios objetivos (número de infrações praticadas) e subjetivos (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos e circunstâncias do crime). (STJ. 5ª Turma. HC 305.233/SP, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 27/10/2015)

 

É bom você ler com atenção a previsão legal do crime continuado específico:

Art. 71 (...)

Parágrafo único. Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.

 

• Crime continuado do caput do art. 71 do CP: o critério para se determinar o quantum da majoração (entre 1/6 a 2/3) é apenas a quantidade de delitos cometidos. Assim, quanto mais infrações, maior deve ser o aumento.

• Crime continuado específico (art. 71, parágrafo único, do CP): a fração de aumento será determinada pela quantidade de crimes praticados e também pela análise das circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal.

STJ. 5ª Turma. REsp 1718212/PR, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 19/04/2018.

 

Feita essa revisão, imagine a seguinte situação adaptada:

(Obs: alerta de gatilho; temas sensíveis)

De acordo com os autos, L (mãe), por diversas oportunidades, molestou seus três filhos.

Os abusos aconteciam sempre após o banho com as vítimas reunidas.

A acusada introduzia o dedo no ânus dos filhos em caso de desobediência às suas ordens.

Em razão desses fatos, L foi denunciada pelos crimes de estupro de vulnerável em continuidade delitiva.

O Ministério Público requereu que fosse reconhecida a continuidade delitiva específica, prevista no parágrafo único do art. 71, para possibilitar um incremento maior na pena (até o triplo):

Crime continuado

Art. 71 (...)

Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.

 

O Tribunal de Justiça, contudo, reconheceu a continuidade delitiva prevista no caput do art. 71, elevando a pena até o máximo previsto (2/3).

Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso especial.

Nas razões do recurso especial, o Ministério Público sustentou que seria cabível, no delito de estupro de vulnerável contra vítimas distintas, o reconhecimento da continuidade delitiva específica, prevista no parágrafo único do art. 71 do CP

 

O STJ deu provimento ao recurso do Ministério Público?

NÃO.

Conforme vimos acima, o crime continuado é benefício penal, modalidade de concurso de crimes, que, por ficção legal, consagra unidade incindível entre os crimes que o formam, para fins específicos de aplicação da pena.

Para a sua aplicação, o caput do art. 71 do CP, exige a presença concomitante de três requisitos objetivos:

a) pluralidade de condutas;

b) pluralidade de crime da mesma espécie; e

c) condições semelhantes de tempo lugar, maneira de execução e outras semelhantes.

 

No caso da continuidade delitiva específica, descrita no parágrafo único do art. 71, além dos requisitos acima são exigidos também que:

• os crimes praticados sejam dolosos contra vítimas diferentes; e

• cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa.

 

No caso, a instância a quo não aplicou a regra continuidade delitiva específica sob o argumento de que não foi empregada violência real contra as vítimas.

Ao decidir assim o TJ aplicou a jurisprudência do STJ sobre o tema:

A violência de que trata a continuidade delitiva especial (art. 71, parágrafo único, do Código Penal) é real, sendo inviável aplicar limites mais gravosos do benefício penal da continuidade delitiva com base, exclusivamente, na ficção jurídica de violência do legislador utilizada para criar o tipo penal de estupro de vulnerável, se efetivamente a conjunção carnal ou ato libidinoso executado contra vulnerável foi desprovido de qualquer violência real.

STJ. 5ª Turma. PET no REsp 1.659.662/CE, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe de 14/5/2021.

 

Nas hipóteses de crimes de estupro ou de atentado violento ao pudor praticados com violência presumida, não incide a regra do concurso material nem da continuidade delitiva específica.

STJ. 6ª Turma. REsp 1.602.771/MG, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, DJe de 27/10/2017.

 

Em suma:

Não incide a regra a continuidade delitiva específica nos crimes de estupro praticados com violência presumida. 

STJ. 5ª Turma. AgRg em ARESP 2.165.385/MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 5/9/2023 (Info 786).


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