Imagine a seguinte situação
hipotética:
Em 2014, João foi denunciado pelo
crime de abuso de confiança (art. 155, § 4º, II do Código Penal).
O processo tramita na comarca de
Londrina (PR).
O juiz recebeu a denúncia e
designou audiência de instrução.
A defesa informou que o réu estava
residindo na cidade de Curitiba (PR) e que, por questões de saúde, não poderia
comparecer de forma presencial para os atos do processo. Desse modo, pugnou
para que seu interrogatório fosse realizado via carta precatória.
No dia 22/02/2015, foi realizada
a audiência de instrução, presencial, em Londrina, na qual foram ouvidas três
testemunhas.
Diante da ausência de uma
testemunha (Pedro), o MP pediu para que o juiz designasse uma nova audiência para
continuação da instrução, com a oitiva da testemunha que não pode comparecer.
O magistrado designou nova
audiência para ouvir a testemunha Pedro, marcando para o dia 26/08/2015.
Em 14/05/2015, o réu foi interrogado,
via carta precatória, em Curitiba.
Em 26/08/2015, em continuação
audiência de instrução, foi realizada a oitiva de Pedro, testemunha arrolada
pela acusação.
A defesa apresentou alegações
finais discutindo apenas o mérito, sem mencionar nenhuma nulidade.
O juiz condenou o réu.
O condenado, com novo advogado, interpôs apelação arguindo, preliminarmente,
o reconhecimento da nulidade do interrogatório e dos atos subsequentes, sob o
argumento de que o interrogatório deveria ter sido o último ato da instrução,
nos termos do art. 400 do CPP:
Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser
realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de
declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e
pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem
como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de
pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.
A defesa afirmou que o réu foi
ouvido antes da principal testemunha do MP (Pedro), o que lhe causou prejuízo
concreto.
O Tribunal manteve a sentença.
Os Desembargadores rejeitaram a
preliminar de nulidade argumentando que:
- em regra, o interrogatório é o
último ato da instrução;
- no entanto, o art. 400 c/c o art. 222, § 1º, do CPP
autorizam a inversão dessa ordem no caso de interrogatório via carta precatória.
Isso porque a expedição da carta precatória não suspende a instrução criminal.
Logo, depois a carta precatória ter sido expedida, é possível que o juízo
deprecante continua todos os atos de instrução mesmo que a carta ainda não
tenha voltado:
Art. 222. A testemunha que morar fora da jurisdição do
juiz será inquirida pelo juiz do lugar de sua residência, expedindo-se, para
esse fim, carta precatória, com prazo razoável, intimadas as partes.
§ 1º A expedição da precatória
não suspenderá a instrução criminal.
(...)
Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser
realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de
declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e
pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos
esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e
coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.
Além disso, o Tribunal entendeu
que condenação foi embasada não só no depoimento da testemunha de acusação
ouvida posteriormente ao interrogatório do acusado, mas também em outros
elementos probatórios – com ausência de prejuízo concreto.
Inconformada, a defesa interpôs
recurso especial insistindo na tese da nulidade.
O STJ concordou com os
argumentos da defesa?
Em parte.
O interrogatório pode ser
realizado antes da oitiva da testemunha?
NÃO.
O interrogatório do réu é o
último ato da instrução criminal.
A audiência de instrução e
julgamento é o principal ato do processo, momento no qual se produzirão as
provas, sejam elas testemunhais, periciais ou documentais, ao fim da qual, a
decisão será proferida.
Por esta razão, o art. 400
determina que a oitiva da vítima, das testemunhas arroladas pela acusação e
depois pela defesa, nesta ordem, eventuais esclarecimentos de peritos,
acareações, ou reconhecimento de coisas ou pessoas e, por fim, o
interrogatório.
A redação dada ao art. 400 pela Lei
nº 11.719/2008, significou a consagração e maximização do devido processo
legal, notadamente na dimensão da ampla defesa e do contraditório ao deslocar o
interrogatório para o final da instrução probatória.
É possível que o
interrogatório do réu seja feito antes da oitiva da testemunha em caso de carta
precatória?
NÃO.
A inversão da ordem prevista no
art. 400 do CPP somente se aplica para a oitiva das testemunhas e não para o interrogatório.
A ressalva feita ao art. 222 do
CPP, no art. 400, vem inscrita imediatamente após a ordem determinada para a
oitiva das testemunhas, deixando claro que o legislador somente autorizou que se
flexibilize excepcionalmente a inversão desta ordem, em caso de pendência de
cumprimento de carta precatória, exclusivamente em relação à oitiva das testemunhas de acusação e defesa.
O interrogatório é o momento em
que o réu pode se contrapor à acusação e aos fatos eventualmente suscitados
pelas testemunhas, o que, por si, reclama de forma irrefutável que a fala do
réu venha após todas as demais, seja em que ordem elas tenham sido realizadas,
viabilizando, assim, a ampla defesa de toda a carga acusatória.
Corrobora esta posição, a moderna
concepção do contraditório, segundo a qual a defesa deve influenciar a decisão
judicial, o que somente se mostra possível quando a sua resposta se embase no
conhecimento pleno das provas produzidas pela acusação. Somente assim se pode
afirmar observância ao devido contraditório.
Isso significa que a
condenação de João será anulada no presente caso?
NÃO.
O eventual reconhecimento da nulidade se sujeita à preclusão,
na forma do art. 571, I e II, do CPP:
Art. 571. As nulidades deverão ser argüidas:
I - as da instrução criminal dos
processos da competência do júri, nos prazos a que se refere o art. 406;
II - as da instrução criminal dos
processos de competência do juiz singular e dos processos especiais, salvo os
dos Capítulos V e Vll do Título II do Livro II, nos prazos a que se refere o
art. 500;
(...)
Assim, o réu deveria ter arguido
a nulidade na própria audiência ou no primeiro momento oportuno em que tiver
conhecimento da inversão da ordem em questão.
No caso concreto, o acusado
arguiu a nulidade somente em razões de apelação.
Além disso, cabe também à defesa
a demonstração do prejuízo concreto.
No caso em tela, a defesa se
limitou a afirmar que Pedro era a testemunha mais importante. Ocorre que o
juízo condenou com fundamento em outros depoimentos e provas.
Em suma:
O interrogatório do réu é o último ato da instrução
criminal.
A inversão da ordem prevista no art. 400 do CPP
tangencia somente à oitiva das testemunhas e não ao interrogatório.
O eventual reconhecimento da nulidade se sujeita:
• à preclusão, na forma do art. 571, I e II, do CPP,
e
• à demonstração do prejuízo para o réu.
STJ. 3ª Seção.
REsps 1.933.759-PR e 1.946.472-PR, Rel. Min. Messod Azulay Neto, julgado em
13/9/2023 (Recurso Repetitivo – Tema 1114) (Info 787).