Critério trifásico
A dosimetria da pena na sentença obedece a um
critério trifásico:
1º passo: o juiz calcula a pena-base de acordo
com as circunstâncias judiciais do art. 59, CP.
2º passo: o juiz aplica as agravantes e
atenuantes.
3º passo: o juiz aplica as causas de aumento e
de diminuição.
Primeira fase (circunstâncias
judiciais)
Na primeira fase, as chamadas circunstâncias
judiciais analisadas pelo juiz são as seguintes:
a) culpabilidade, b) antecedentes, c) conduta
social, d) personalidade do agente, e) motivos do crime, f) circunstâncias do
crime, g) consequências do crime, h) comportamento da vítima.
Veja a redação do art. 59 do CP:
Art. 59. O juiz, atendendo à
culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente,
aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao
comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente
para reprovação e prevenção do crime:
(...)
O que é a culpabilidade de que
trata o art. 59 do CP? Tem relação com a culpabilidade requisito do crime?
NÃO.
Para fins de dosimetria da pena, culpabilidade
consiste na reprovação social que o crime e o autor do fato merecem. Ex: a
culpabilidade (reprovabilidade) do crime de furto é intensa (elevada) se o
agente, além de furtar os bens da casa, ainda urina no chão da residência ou
nos móveis do proprietário. Neste caso, a pena-base poderia ser aumentada por
causa disso.
Essa culpabilidade de que trata o art. 59 do
CP não tem nada a ver com a culpabilidade como requisito do crime
(imputabilidade, potencial consciência da ilicitude do fato e exigibilidade de
conduta diversa).
Imagine a seguinte situação
hipotética:
O juiz, a pedido da autoridade
policial, expediu mandado de busca e apreensão, a ser cumprido na residência de
João, suspeito de ter roubado uma motocicleta.
A motocicleta não foi encontrada
no local. Por outro lado, os policiais localizaram droga na residência.
João foi denunciado.
Em seu interrogatório, João afirmou
que Francisco, seu vizinho, teria arrombado sua residência um dia antes e “plantado”
a droga no local, com o propósito de lhe prejudicar.
As provas produzidas demonstraram
que não houve arrombamento e que Francisco não tinha como ter colocado a droga
na residência de João considerando que estava preso no dia dos fatos.
João foi então condenado por
tráfico de drogas.
No momento da dosimetria da pena, o juiz aumentou a
pena-base argumentando que o fato de João ter atribuído a autoria do crime a
terceiro (no caso, Francisco) deveria ser utilizado como circunstância judicial
negativa (culpabilidade elevada). Afirmou o magistrado:
“A
culpabilidade do réu, considerada como grau de reprovabilidade de sua conduta,
excedeu a normalidade para a espécie. Isso porque, não obstante ser
surpreendido com a droga, o réu, de forma maliciosa, tentou se furtar à
responsabilização penal, imputando falsamente a um terceiro (seu vizinho, Francisco)
a responsabilidade por ter ‘plantado’ o entorpecente em sua casa na noite
anterior ao cumprimento do mandado de busca e apreensão pela polícia. Ao assim
agir, o acusado demonstrou total despreocupação com as consequências criminais
que poderiam advir de sua ‘versão’ dos fatos (incriminação injusta de um
terceiro). Essa atitude extrapolou os limites da garantia constitucional da
ampla defesa”.
O réu recorreu alegando que não
havia elementos suficientes para justificar a valoração negativa da
culpabilidade.
O que decidiu o STJ? Agiu
corretamente o magistrado? É possível a majoração da pena-base pelo
fato de o réu ter mentido no interrogatório, imputando a prática do crime a
terceiro?
NÃO.
Ainda que o falseamento da
verdade eventualmente possa, a depender do caso e se cabalmente comprovado,
justificar a responsabilização do réu por crime autônomo, isso não significa
que essa prática, no interrogatório, autorize a exasperação da pena-base do
acusado.
O conceito de culpabilidade, como
circunstância judicial prevista o art. 59, do Código Penal, está relacionado
com a reprovabilidade/censurabilidade da conduta do agente, de forma que deve o
magistrado, quando da aplicação da pena-base, dimensioná-la pelo nível de
intensidade da reprovação penal e expor sempre os fundamentos que lhe formaram
o convencimento. Trata-se de aferir o grau de reprovabilidade do fato criminoso
praticado pelo réu.
No caso, a culpabilidade do
acusado foi valorada negativamente sob o argumento de que tentou se furtar à
responsabilização penal, imputando falsamente a um terceiro (vizinho) a
responsabilidade por ter plantado drogas em sua casa na noite anterior ao cumprimento
do mandado de busca e apreensão pela polícia.
O fato de o réu atribuir
falsamente crime a terceiro no interrogatório não é circunstância que diga respeito
à sua culpabilidade. A culpabilidade, como vimos, está relacionada com o grau
de reprovabilidade pessoal da conduta imputada ao acusado. O interrogatório
constitui fato posterior à prática da infração penal, de modo que uma
declaração dada no interrogatório não pode ser usada retroativamente para
incrementar o juízo de reprovabilidade de um crime ocorrido no passado.
O exame da sanção penal cabível
deve ser realizado, em regra, com base somente em elementos existentes até o
momento da prática do crime imputado. As únicas exceções a essas regra são as
seguintes:
a) o exame das consequências do
delito, que, embora posteriores, representam mero desdobramento causal direto
dele, e não novas e futuras condutas do acusado retroativamente valoradas;
b) o superveniente trânsito em
julgado de condenação por fato praticado no passado, uma vez que representa a
simples declaração jurídica da existência de evento pretérito.
Nem mesmo nas circunstâncias da
personalidade ou da conduta social seria possível considerar desfavoravelmente
a mentira do réu em interrogatório judicial. O paralelo feito por alguns
doutrinadores com a confissão (se a confissão revela aspecto favorável da
personalidade e atenua a pena, a mentira supostamente revelaria o oposto e
poderia autorizar o seu aumento), embora interessante, é assimétrico e não
permite que dele se extraia tal conclusão.
A confissão e diversos outros
institutos que permitem o abrandamento da sanção (colaboração premiada,
arrependimento posterior etc.) integram o chamado Direito penal premial e se
justificam como ferramentas para valorizar e estimular a postura que o réu adota
depois da prática do delito para mitigar seus efeitos ou facilitar a atividade
estatal na sua persecução. Diferente, porém, é a análise sobre o que pode
legitimar o incremento da sanção penal, a qual, nos termos dos mais basilares
postulados penais e processuais penais, não pode ficar ao sabor de eventos
futuros, incertos e não decorrentes diretamente, como desdobramento meramente
causal, do fato imputado na denúncia (por exemplo, nos termos acima
esclarecidos, as consequências do crime).
O que deve ser avaliado é se, ao
praticar o fato criminoso imputado, a culpabilidade do réu foi exacerbada ou
se, até aquele momento, ele demonstrava personalidade desvirtuada ou conduta
social inadequada, o que não pode ser aferido retroativamente com base em fato
diverso que só veio a ser realizado em tempo futuro, às vezes longos anos
depois.
Em suma:
STJ. 6ª Turma. HC 834.126-RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz,
julgado em 5/9/2023 (Info 789).