O que é a guarda
municipal?
Guarda municipal é uma instituição de caráter civil,
uniformizada e armada, vinculada ao Poder Executivo Municipal, formada por
servidores públicos efetivos, concursados, e que tem por função a proteção dos
bens, serviços e instalações do Município.
Veja o que
diz a Lei:
Art. 2º Incumbe às guardas municipais, instituições de caráter civil,
uniformizadas e armadas conforme previsto em lei, a função de proteção
municipal preventiva, ressalvadas as competências da União, dos Estados e do
Distrito Federal.
A guarda
municipal mereceu previsão expressa na CF/88:
Art. 144 (...)
§ 8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à
proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.
Lei disciplinando as
guardas municipais
Repare que o § 8º afirma que as guardas municipais devem
ser disciplinadas por meio de lei.
A Lei nº 13.022/2014 foi editada com esse propósito e se
constitui em norma geral, aplicável a todas as guardas municipais.
Vale ressaltar, no entanto, que cada Município deverá
editar a sua própria lei regulando a respectiva guarda municipal, sempre
respeitando as disposições da Lei nº 13.022/2014.
Competências previstas para as guardas municipais
As guardas municipais sempre tiveram um papel mais
relacionado com a proteção do patrimônio físico dos Municípios (prédios
públicos, escolas, parques etc.). Isso se dava em virtude da interpretação
restritiva do § 8º do art. 144 da CF/88: as guardas municipais são destinadas à
proteção dos “bens, serviços e instalações” dos Municípios.
A Lei nº 13.022/2014 ampliou essa interpretação prevendo
que as guardas municipais possam colaborar de forma mais intensa com a
segurança pública nas cidades, atuando em parceria com as Polícias Civil,
Militar e Federal.
Veja um
resumo do que dizem os arts. 4º e 5º da Lei nº 13.022/2014:
Competência GERAL |
Proteção de bens, serviços, logradouros públicos
municipais e instalações do Município.
Essa proteção abrange os bens de uso comum, os de uso
especial e os dominiais. |
Competências ESPECÍFICAS (principais) |
São competências específicas das guardas municipais,
respeitadas as competências dos órgãos federais e estaduais: I - zelar pelos bens, equipamentos e prédios públicos
do Município; II - prevenir e coibir infrações penais,
administrativas ou atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e
instalações municipais; III - atuar na proteção da população que utiliza os
bens, serviços e instalações municipais; IV - colaborar com os órgãos de segurança pública e de
defesa civil; V - colaborar com a pacificação de conflitos que seus
integrantes presenciarem; VI - exercer as competências de trânsito que lhes forem
conferidas, ou de forma concorrente, mediante convênio celebrado com órgão de
trânsito estadual ou municipal; VII - proteger o patrimônio ambiental, histórico,
cultural e arquitetônico do Município; VIII - garantir o atendimento de ocorrências
emergenciais, ou prestá-lo direta e imediatamente quando deparar-se com elas; IX - encaminhar ao delegado de polícia, diante de
flagrante delito, o autor da infração, preservando o local do crime, quando
possível e sempre que necessário; X - contribuir no estudo de impacto na segurança local,
conforme plano diretor municipal, por ocasião da construção de
empreendimentos de grande porte; XI - auxiliar na segurança de grandes eventos e na
proteção de autoridades e dignatários; XII - atuar mediante ações preventivas na segurança
escolar. |
Para a
explicação do julgado é importante também explicar que o art. 9º da Lei nº
13.675/2018 prevê que as guardas municipais integram o Sistema Único de
Segurança Pública. Confira:
Art. 9º É instituído o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), que
tem como órgão central o Ministério Extraordinário da Segurança Pública e é
integrado pelos órgãos de que trata o art. 144 da Constituição Federal , pelos
agentes penitenciários, pelas guardas municipais e pelos demais integrantes
estratégicos e operacionais, que atuarão nos limites de suas competências, de
forma cooperativa, sistêmica e harmônica.
(...)
§ 2º São integrantes operacionais do Susp:
(...)
VII - guardas municipais;
ADPF
A Associação Nacional dos Guardas Municipais (ANGM) ingressou
com ADPF por meio da qual pediu que o STF declarasse expressamente que as Guardas
Municipais são órgãos de segurança pública.
A Associação argumentou que, diante dos dispositivos
legais e das últimas decisões proferidas pelo STF, tem-se a nítida compreensão
que as Guardas Municipais são integrantes da Segurança Pública. Não obstante,
sustentou haver divergência de entendimentos judiciais que afetam
estruturalmente a segurança jurídica.
Para a autora, o não reconhecimento dos Guardas
Municipais como agentes da Segurança Pública pode suscitar o requerimento, por
parte de vários advogados do Brasil, de nulidade da prisão de vários indivíduos
detidos por Guardas Municipais.
Nessa conjuntura, aduziu que não existe outra forma de
assegurar um provimento equânime nessa questão que não seja na esteira da
própria ADPF, em especial porque esta é sua finalidade precípua.
Cabimento da ADPF
A ADPF deve
ostentar, como outras das condições de procedibilidade, considerado o disposto
no § 1º do art. 4º da Lei 9.882/1999, o atendimento ao critério da
subsidiariedade, sendo essa a confirmação de que inexistente outro meio eficaz
apto a superar o defeito jurídico sob questão:
Art. 4o A petição inicial será indeferida
liminarmente, pelo relator, quando não for o caso de arguição de descumprimento
de preceito fundamental, faltar algum dos requisitos prescritos nesta Lei ou
for inepta.
§ 1o Não será admitida arguição de descumprimento
de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a
lesividade.
Portanto, o cabimento da ADPF será viável desde que haja
a observância do princípio da subsidiariedade, que exige o esgotamento de todas
as vias possíveis para sanar a lesão ou a ameaça de lesão a preceitos
fundamentais ou a verificação, ab initio,
de sua inutilidade para a preservação do preceito.
No caso em análise, a Associação Nacional dos Guardas
Municipais alegou existirem diversas decisões judiciais que não reconhecem as
Guardas Municipais como agentes de segurança pública, o que afetaria o
exercício das atribuições do órgão e comprometeria a segurança jurídica.
Diante dessa argumentação, é possível depreender que a
ação ora examinada se volta contra um conjunto de decisões judiciais que não
reconhecem as guardas municipais como agentes de segurança pública, em razão de
não estar expressamente inserida nos incisos do art. 144 da Constituição.
Portanto, além de se identificar a existência de
controvérsia judicial relevantes, a autora da ação é entidade de classe de
âmbito nacional, defendendo, na presente ADPF, o interesse de toda a categoria
de Guardas Municipais.
Diante disso, o STF entendeu preenchido o requisito da
subsidiariedade.
Quanto ao mérito, o que decidiu o STF?
O STF julgou
procedente o pedido para, nos termos do art. 144, § 8º, da CF/88, conceder
interpretação conforme a Constituição ao art. 4º da Lei nº 13.022/2014 e ao
art. 9º da Lei nº 13.675/2018, de modo a declarar que:
• as guardas municipais são
reconhecidamente órgãos de segurança pública
• são
inconstitucionais todas as interpretações judiciais que excluem as guardas municipais,
devidamente criadas e instituídas, como integrantes do Sistema de Segurança
Pública.
Algumas vozes sustentavam que as guardas municipais não
seriam órgãos de segurança pública por que não estão presentes no rol dos
incisos do art. 144 da CF/88. O que o STF afirmou sobre isso?
O STF afirmou que isso não importa. Isso porque, as
guardas municipais, sob o aspecto material, exercem atividade típica de
segurança pública, consubstanciada na proteção de bens, serviços e instalações
municipais (art. 144, § 8º, CF/88).
Ademais, o
Congresso Nacional, no exercício de sua legítima competência legislativa (art.
144, § 7º, CF/88), editou a Lei nº 13.675/2018 e colocou as guardas municipais
como integrantes operacionais do SUSP (art. 9º, § 1º, inciso VII).
Art. 144. (...)
§ 7º A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos
responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas
atividades.
Já a Lei nº 13.022/2014, que dispõe sobre o Estatuto
Geral das Guardas Municipais, prevê diversas atribuições que são inerentes a
agentes de segurança pública.
Portanto, as Guardas Municipais têm entre suas
atribuições primordiais o poder-dever de prevenir, inibir e coibir, pela
presença e vigilância, infrações penais ou administrativas e atos infracionais
que atentem contra os bens, serviços e instalações municipais. Trata-se de
atividade típica de segurança pública exercida na tutela do patrimônio
municipal.
Igualmente, a atuação preventiva e permanentemente, no
território do Município, para a proteção sistêmica da população que utiliza os
bens, serviços e instalações municipais é atividade típica de órgão de
segurança pública.
Vale dizer
que a constitucionalidade da Lei nº 13.022/2014 já foi analisada pelo STF no
julgamento do Tema 472:
É constitucional a Lei federal nº 13.022/2014, que dispõe sobre o
Estatuto Geral das Guardas Municipais.
Essa lei não viola a autonomia dos municípios (art. 144, § 8º) e se
limita a estabelecer critérios padronizados para a instituição, organização e
exercício das guardas municipais.
A lei constitui norma geral, de competência da União, que, além de
tratar da organização das guardas municipais em todos os municípios do País,
reconhece a prerrogativa dos entes municipais para criá-las ou não, por lei, e
para definir sua estrutura e funcionamento.
As guardas municipais podem exercer atividade fiscalizatória de trânsito
e, consequentemente, a aplicação de multas previstas em lei, por significar
fiel manifestação do poder de polícia. Ademais, revela-se legítimo o desempenho
da atividade de segurança pública pelas guardas municipais.
STF. Plenário. ADI 5.780/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em
01/7/2023 (Info 1101).
Além disso, importante recordar que o STF declarou a
inconstitucionalidade do critério utilizado pela Lei nº 10.826/2003 (Estatuto
do Desarmamento) – número de habitantes nos Estados ou Municípios –, para
permitir o porte de arma de fogo por integrantes das Guardas Municipais:
O art. 6º, III e
IV, da Lei nº 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento) somente previa porte de
arma de fogo para os guardas municipais das capitais e dos Municípios com maior
número de habitantes. Assim, os integrantes das guardas municipais dos pequenos
Municípios (em termos populacionais) não tinham direito ao porte de arma de
fogo.
O STF considerou
que esse critério escolhido pela lei é inconstitucional porque os índices de
criminalidade não estão necessariamente relacionados com o número de
habitantes.
Assim, é
inconstitucional a restrição do porte de arma de fogo aos integrantes de
guardas municipais das capitais dos estados e dos municípios com mais de
500.000 (quinhentos mil) habitantes e de guardas municipais dos municípios com
mais de 50.000 (cinquenta mil) e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes,
quando em serviço.
Com a decisão do
STF todos os integrantes das guardas municipais possuem direito a porte de arma
de fogo, em serviço ou mesmo fora de serviço. Não interessa o número de
habitantes do Município.
STF. Plenário.
ADC 38/DF, ADI 5538/DF e ADI 5948/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgados
em 27/2/2021 (Info 1007).
Não se deve negligenciar, também, o julgamento do Tema
544 da Repercussão Geral, em que o STF firmou orientação segundo a qual as
Guardas Municipais executam atividade de segurança pública (art. 144, § 8º, da
CF), essencial ao atendimento de necessidades inadiáveis da comunidade (art.
9º, § 1º, CF) e que, justamente por isso, submetem-se, em relação ao direito de
greve, às restrições firmadas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do ARE
654.432:
(...) 2. As
Guardas Municipais executam atividade de segurança pública (art. 144, § 8º, da
CF), essencial ao atendimento de necessidades inadiáveis da comunidade (art.
9º, § 1º, CF), pelo que se submetem às restrições firmadas pelo Supremo
Tribunal Federal no julgamento do ARE 654.432 (Rel. Min. EDSON FACHIN, redator
para acórdão Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 5/4/2017). (...)
STF. Plenário. RE
846854, Rel. Min. Luiz Fux, Relator p/ Acórdão Min. Alexandre de Moraes,
julgado em 01/08/2017.
Em suma:
STF. Plenário.
ADPF 995/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 28/8/2023 (Info 1105).
Com base nesse entendimento, o Plenário do STF, por
maioria, julgou procedente o pedido para, nos termos do art. 144, § 8º, da
CF/88, conceder interpretação conforme a Constituição ao art. 4º da Lei nº
13.022/2014 e ao art. 9º da Lei nº 13.675/2018, de modo a declarar
inconstitucionais todas as interpretações judiciais que excluem as guardas
municipais, devidamente criadas e instituídas, como integrantes do Sistema de
Segurança Pública.
DOD Plus
Antes do julgamento acima explicado, o STJ possuía vários
julgados afirmando que:
A guarda municipal, por não estar entre os órgãos de
segurança pública previstos no art. 144 da CF, não pode exercer
atribuições das polícias civis e militares.
A sua atuação da guarda municipal deve se limitar à proteção de
bens, serviços e instalações do município.
STJ. 6ª Turma. REsp 1977119-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz,
julgado em 16/08/2022 (Info 746).
Ocorre que, como vimos, posteriormente, o STF, no
julgamento da ADPF 995, decidiu que:
As guardas municipais são reconhecidamente órgãos de segurança
pública e aquelas devidamente criadas e instituídas integram o Sistema Único de
Segurança Pública (SUSP).
STF. Plenário. ADPF 995/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes,
julgado em 28/8/2023 (Info 1105).
Diante disso, indaga-se: com a decisão do STF na ADPF
995/DF, a conclusão final do STJ exposta no REsp 1977119-SP fica superada?
NÃO. A conclusão do julgado permanece intacta. O que muda
é um dos fundamentos invocados.
• o STJ – e nenhum outro órgão jurisdicional – pode
afirmar que a guarda municipal não é órgão de segurança pública. Isso porque o
STF afirmou, com eficácia vinculante, que a guarda municipal é sim órgão de
segurança pública;
• por outro lado, o STJ continua decidindo que a guarda
municipal não pode exercer atribuições das polícias civis e militares. A sua
atuação da guarda municipal deve se limitar à proteção de bens, serviços e
instalações do município.
Nesse sentido, confira esse julgado do STJ posterior à
decisão do STF na ADPF 995/DF:
(...) 1. A Constituição Federal de 1988 não atribui à guarda
municipal atividades ostensivas típicas de polícia militar ou investigativas de
polícia civil, como se fossem verdadeiras “polícias municipais”.
(...)
5. O fato de as guardas municipais não haverem sido incluídas
nos incisos do art. 144, caput, da CF não afasta a constatação de que elas
exercem atividade de segurança pública. Isso, todavia, não significa que possam
ter a mesma amplitude de atuação das polícias.
6. O Supremo Tribunal Federal, apesar de reconhecer em
diversos julgados que as guardas municipais integram o Sistema Único de
Segurança Pública e exercem atividade dessa natureza (vide RE n.
846.854/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, DJe 7/2/2018 e ADC n.
38/DF, Rel. Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJe 18/5/2021), nunca as equiparou por completo aos órgãos policiais para todos os fins.
(...)
8. Em 25/8/2023, o STF julgou procedente a ADPF n. 995 (Rel. Ministro
Alexandre de Moraes) para “CONCEDER INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO aos
artigos 4º da Lei 13.022/14 e artigo 9º da 13.675/18 DECLARANDO
INCONSTITUCIONAIS todas as interpretações judiciais que excluem as Guardas
Municipais, devidamente criadas e instituídas, como integrantes do Sistema de
Segurança Pública”. Mais uma vez, a Corte reafirmou sua posição de que as
guardas municipais integram o Sistema de Segurança Pública, mas, novamente, não
lhes conferiu poderes idênticos aos dos órgãos policiais.
9. As teses ora sugeridas neste voto e antes assentadas no REsp
n. 1.977.119/SP encontram respaldo e são plenamente consonantes com a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, porque tanto naquele
julgado quanto neste se admitiu expressamente que as guardas municipais
integram o Sistema Único de Segurança Pública e exercem atividade dessa
natureza, ressalvado apenas que não têm a mesma amplitude de atuação das
polícias, o que é amparado pela respeitada doutrina do próprio Ministro Alexandre
de Moraes, relator da ADC n. 38/DF e da ADPF n. 995, para quem a Constituição
Federal facultou aos Municípios a “constituição de guardas municipais
destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a
lei, sem, contudo, reconhecer-lhes a possibilidade de exercício de polícia
ostensiva ou judiciária” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 39 ed.
São Paulo: Atlas, 2023, p. 940).
10. Os dois artigos de lei aos quais se deu interpretação
conforme à Constituição na ADPF n. 995, aliás, confirmam essa compreensão: a) o
art. 4º da Lei n. 13.022/2014 dispõe que "É competência geral das guardas
municipais a proteção de bens, serviços, logradouros públicos municipais e
instalações do Município"; b) o art. 9º da Lei n. 13.675/2018, por sua
vez, estabelece que "É instituído o Sistema Único de Segurança Pública
(Susp), que tem como órgão central o Ministério Extraordinário da Segurança
Pública e é integrado pelos órgãos de que trata o art. 144 da Constituição
Federal, pelos agentes penitenciários, pelas guardas municipais e pelos demais
integrantes estratégicos e operacionais, que atuarão nos limites de suas
competências, de forma cooperativa, sistêmica e harmônica".
11. Cumpre lembrar, a propósito, que os bombeiros militares e os
policiais penais, por exemplo, também integram o rol de órgãos de segurança
pública previsto nos incisos do art. 144, caput, da Constituição, mas nem por
isso se cogita que possam realizar atividades alheias às suas atribuições, como
fazer patrulhamento ostensivo e revistar pessoas em via pública à procura de
drogas. No mesmo sentido, cabe observar que, na ADI n. 6.621/TO (Rel. Ministro
Edson Fachin, Tribunal Pleno, DJe 23/6/2021), o Supremo Tribunal Federal
reconheceu que o rol do art. 144, caput, da CF não é taxativo e que é
constitucional a criação, por ato normativo estadual, de Superintendência de
Polícia Científica (formada por agentes de necrotomia, papiloscopistas e
peritos oficiais) como órgão de segurança pública não vinculado
administrativamente à polícia civil. Não se concebe, porém, que o referido
julgado autorize agentes de necrotomia, papiloscopistas e peritos a sair pelas
ruas fazendo patrulhamento ostensivo e revistando indivíduos suspeitos.
(...)
13. Verifica-se, portanto, que, mesmo a proteção da população do
município, embora se inclua nas atribuições das guardas municipais, deve
respeitar as competências dos órgãos federais e estaduais e está vinculada ao
contexto de utilização dos bens, serviços e instalações municipais, o que
evidencia a total compatibilidade com a tese proposta no presente voto de que: “[...]
salvo na hipótese de flagrante delito, só é possível que as guardas municipais
realizem excepcionalmente busca pessoal se, além de justa causa para a medida
(fundada suspeita), houver pertinência com a necessidade de tutelar a
integridade de bens e instalações ou assegurar a adequada execução dos serviços
municipais, assim como proteger os seus respectivos usuários”.
14. Não se pode confundir “poder de polícia” com “poder das
polícias” ou “poder policial". “Poder de polícia” é conceito de direito
administrativo previsto no art. 78 do Código Tributário Nacional e explicado
pela doutrina como “atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos
direitos individuais em benefício do interesse público” (DI PIETRO, Maria
Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20 ed. São Paulo: Atlas, 2015, 158). Já
o "poder das polícias" ou "poder policial", típico dos
órgãos policiais, é marcado pela possibilidade de uso direto da força física
para fazer valer a autoridade estatal, o que não se verifica nas demais formas
de manifestação do poder de polícia, que somente são legitimadas a se valer de
mecanismos indiretos de coerção, tais como multas e restrições administrativas
de direitos. Dessa forma, o "poder das polícias" ou "poder
policial" diz respeito a um específico aspecto do poder de polícia
relacionado à repressão de crimes em geral pelos entes policiais, de modo que
todo órgão policial exerce poder de polícia, mas nem todo poder de polícia é
necessariamente exercido por um órgão policial.
15. Conquanto não sejam órgãos policiais propriamente
ditos, as guardas municipais exercem poder de polícia e também algum poder
policial residual e excepcional dentro dos limites de suas atribuições. A busca
pessoal - medida coercitiva invasiva e direta - é exemplo desse poder, razão
pela qual só pode ser realizada dentro do escopo de atuação da guarda municipal.
16. Ao dispor, no art. 301 do CPP, que “qualquer do povo poderá
[...] prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”, o legislador,
tendo em conta o princípio da autodefesa da sociedade e a impossibilidade de
que o Estado seja onipresente, contemplou apenas os flagrantes visíveis de
plano, como, por exemplo, a situação de alguém que, no transporte público,
flagra um indivíduo subtraindo sorrateiramente a carteira do bolso da calça de
outrem e o detém. Distinta, no entanto, é a hipótese em que a situação de
flagrante só é evidenciada depois de realizar atividades invasivas de polícia
ostensiva ou investigativa, como a busca pessoal ou domiciliar, uma vez que não
é qualquer do povo que pode investigar, interrogar, abordar ou revistar seus
semelhantes.
17. A adequada interpretação do art. 244 do CPP é a de que a
fundada suspeita de posse de corpo de delito é um requisito necessário, mas não
suficiente, por si só, para autorizar a realização de busca pessoal, porque não
é a qualquer cidadão que é dada a possibilidade de avaliar a presença dele;
isto é, não é a todo indivíduo que cabe definir se, naquela oportunidade, a
suspeita era fundada ou não e, por consequência, proceder a uma abordagem
seguida de revista. Em outras palavras, mesmo se houver elementos concretos
indicativos de fundada suspeita da posse de corpo de delito, a busca pessoal só
será válida se realizada pelos agentes públicos com atribuição para tanto, a
quem compete avaliar a presença de tais indícios e proceder à abordagem e à
revista do suspeito.
(...)
20. Poderão, todavia, realizar busca pessoal em
situações excepcionais - e por isso interpretadas restritivamente - nas quais
se demonstre concretamente haver clara, direta e imediata relação com a
finalidade da corporação, como instrumento imprescindível para a realização de
suas atribuições. Vale dizer, salvo na hipótese de flagrante delito, só é
possível que as guardas municipais realizem excepcionalmente busca pessoal se,
além de justa causa para a medida (fundada suspeita), houver pertinência com a
necessidade de tutelar a integridade de bens e instalações ou assegurar a
adequada execução dos serviços municipais, assim como proteger os seus
respectivos usuários, o que não se confunde com permissão para desempenharem
atividades ostensivas ou investigativas típicas das polícias militar e civil
para combate da criminalidade urbana ordinária em qualquer contexto.
21. No caso dos autos, guardas municipais estavam em
patrulhamento quando depararam com o paciente em “atitude suspeita”. Por isso,
decidiram abordá-lo e, depois de revista pessoal, encontraram certa quantidade
de drogas no bolso traseiro e nas vestes íntimas dele, o que ensejou a sua
prisão em flagrante delito.
22. Ainda que, eventualmente, se considerasse provável que o réu
ocultasse objetos ilícitos, isto é, que havia fundada suspeita de que ele
escondia drogas, não existia certeza sobre tal situação a ponto de autorizar a
imediata prisão em flagrante por parte de qualquer do povo, com amparo no art.
301 do CPP. Tanto que, conforme se depreende da narrativa fática descrita pelas
instâncias ordinárias, só depois de constatado que havia drogas dentro do bolso
e das vestes íntimas do paciente é que se deu voz de prisão em flagrante para
ele, e não antes. E, por não haver sido demonstrada concretamente a existência
de relação clara, direta e imediata com a proteção dos bens, serviços ou
instalações municipais, ou de algum cidadão que os estivesse usando, não estavam
os guardas municipais autorizados, naquela situação, a avaliar a presença da
fundada suspeita e efetuar a busca pessoal no acusado.
23. Ordem concedida para confirmar a liminar deferida e declarar
ilícitas as provas colhidas por meio da busca pessoal, bem como todas as delas
decorrentes e, por consequência, absolver o réu, com fundamento no art. 386,
II, do CPP, da condenação a ele imposta no Processo n.
1500093-71.2022.8.26.0080.
(HC n. 830.530/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz,
Terceira Seção, julgado em 27/9/2023, DJe de 4/10/2023.)