Dizer o Direito

domingo, 19 de novembro de 2023

As guardas municipais são reconhecidamente órgãos de segurança pública e aquelas devidamente criadas e instituídas integram o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP)

O que é a guarda municipal?

Guarda municipal é uma instituição de caráter civil, uniformizada e armada, vinculada ao Poder Executivo Municipal, formada por servidores públicos efetivos, concursados, e que tem por função a proteção dos bens, serviços e instalações do Município.

Veja o que diz a Lei:

Art. 2º Incumbe às guardas municipais, instituições de caráter civil, uniformizadas e armadas conforme previsto em lei, a função de proteção municipal preventiva, ressalvadas as competências da União, dos Estados e do Distrito Federal.

 

A guarda municipal mereceu previsão expressa na CF/88:

Art. 144 (...)

§ 8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.

 

Lei disciplinando as guardas municipais

Repare que o § 8º afirma que as guardas municipais devem ser disciplinadas por meio de lei.

A Lei nº 13.022/2014 foi editada com esse propósito e se constitui em norma geral, aplicável a todas as guardas municipais.

Vale ressaltar, no entanto, que cada Município deverá editar a sua própria lei regulando a respectiva guarda municipal, sempre respeitando as disposições da Lei nº 13.022/2014.

 

Competências previstas para as guardas municipais

As guardas municipais sempre tiveram um papel mais relacionado com a proteção do patrimônio físico dos Municípios (prédios públicos, escolas, parques etc.). Isso se dava em virtude da interpretação restritiva do § 8º do art. 144 da CF/88: as guardas municipais são destinadas à proteção dos “bens, serviços e instalações” dos Municípios.

A Lei nº 13.022/2014 ampliou essa interpretação prevendo que as guardas municipais possam colaborar de forma mais intensa com a segurança pública nas cidades, atuando em parceria com as Polícias Civil, Militar e Federal.

Veja um resumo do que dizem os arts. 4º e 5º da Lei nº 13.022/2014:

Competência GERAL

Proteção de bens, serviços, logradouros públicos municipais e instalações do Município. 

Essa proteção abrange os bens de uso comum, os de uso especial e os dominiais.

Competências ESPECÍFICAS

(principais)

São competências específicas das guardas municipais, respeitadas as competências dos órgãos federais e estaduais:

I - zelar pelos bens, equipamentos e prédios públicos do Município;

II - prevenir e coibir infrações penais, administrativas ou atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações municipais;

III - atuar na proteção da população que utiliza os bens, serviços e instalações municipais;

IV - colaborar com os órgãos de segurança pública e de defesa civil;

V - colaborar com a pacificação de conflitos que seus integrantes presenciarem;

VI - exercer as competências de trânsito que lhes forem conferidas, ou de forma concorrente, mediante convênio celebrado com órgão de trânsito estadual ou municipal;

VII - proteger o patrimônio ambiental, histórico, cultural e arquitetônico do Município;

VIII - garantir o atendimento de ocorrências emergenciais, ou prestá-lo direta e imediatamente quando deparar-se com elas;

IX - encaminhar ao delegado de polícia, diante de flagrante delito, o autor da infração, preservando o local do crime, quando possível e sempre que necessário;

X - contribuir no estudo de impacto na segurança local, conforme plano diretor municipal, por ocasião da construção de empreendimentos de grande porte;

XI - auxiliar na segurança de grandes eventos e na proteção de autoridades e dignatários;

XII - atuar mediante ações preventivas na segurança escolar.

 

Para a explicação do julgado é importante também explicar que o art. 9º da Lei nº 13.675/2018 prevê que as guardas municipais integram o Sistema Único de Segurança Pública. Confira:

Art. 9º É instituído o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), que tem como órgão central o Ministério Extraordinário da Segurança Pública e é integrado pelos órgãos de que trata o art. 144 da Constituição Federal , pelos agentes penitenciários, pelas guardas municipais e pelos demais integrantes estratégicos e operacionais, que atuarão nos limites de suas competências, de forma cooperativa, sistêmica e harmônica.

(...)

§ 2º São integrantes operacionais do Susp:

(...)

VII - guardas municipais;

 

ADPF

A Associação Nacional dos Guardas Municipais (ANGM) ingressou com ADPF por meio da qual pediu que o STF declarasse expressamente que as Guardas Municipais são órgãos de segurança pública.

A Associação argumentou que, diante dos dispositivos legais e das últimas decisões proferidas pelo STF, tem-se a nítida compreensão que as Guardas Municipais são integrantes da Segurança Pública. Não obstante, sustentou haver divergência de entendimentos judiciais que afetam estruturalmente a segurança jurídica.

Para a autora, o não reconhecimento dos Guardas Municipais como agentes da Segurança Pública pode suscitar o requerimento, por parte de vários advogados do Brasil, de nulidade da prisão de vários indivíduos detidos por Guardas Municipais.

Nessa conjuntura, aduziu que não existe outra forma de assegurar um provimento equânime nessa questão que não seja na esteira da própria ADPF, em especial porque esta é sua finalidade precípua.

 

Cabimento da ADPF

A ADPF deve ostentar, como outras das condições de procedibilidade, considerado o disposto no § 1º do art. 4º da Lei 9.882/1999, o atendimento ao critério da subsidiariedade, sendo essa a confirmação de que inexistente outro meio eficaz apto a superar o defeito jurídico sob questão:

Art. 4o A petição inicial será indeferida liminarmente, pelo relator, quando não for o caso de arguição de descumprimento de preceito fundamental, faltar algum dos requisitos prescritos nesta Lei ou for inepta.

§ 1o Não será admitida arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade.

 

Portanto, o cabimento da ADPF será viável desde que haja a observância do princípio da subsidiariedade, que exige o esgotamento de todas as vias possíveis para sanar a lesão ou a ameaça de lesão a preceitos fundamentais ou a verificação, ab initio, de sua inutilidade para a preservação do preceito.

No caso em análise, a Associação Nacional dos Guardas Municipais alegou existirem diversas decisões judiciais que não reconhecem as Guardas Municipais como agentes de segurança pública, o que afetaria o exercício das atribuições do órgão e comprometeria a segurança jurídica.

Diante dessa argumentação, é possível depreender que a ação ora examinada se volta contra um conjunto de decisões judiciais que não reconhecem as guardas municipais como agentes de segurança pública, em razão de não estar expressamente inserida nos incisos do art. 144 da Constituição.

Portanto, além de se identificar a existência de controvérsia judicial relevantes, a autora da ação é entidade de classe de âmbito nacional, defendendo, na presente ADPF, o interesse de toda a categoria de Guardas Municipais.

Diante disso, o STF entendeu preenchido o requisito da subsidiariedade.

 

Quanto ao mérito, o que decidiu o STF?

O STF julgou procedente o pedido para, nos termos do art. 144, § 8º, da CF/88, conceder interpretação conforme a Constituição ao art. 4º da Lei nº 13.022/2014 e ao art. 9º da Lei nº 13.675/2018, de modo a declarar que:

• as guardas municipais são reconhecidamente órgãos de segurança pública

• são inconstitucionais todas as interpretações judiciais que excluem as guardas municipais, devidamente criadas e instituídas, como integrantes do Sistema de Segurança Pública.

 

Algumas vozes sustentavam que as guardas municipais não seriam órgãos de segurança pública por que não estão presentes no rol dos incisos do art. 144 da CF/88. O que o STF afirmou sobre isso?

O STF afirmou que isso não importa. Isso porque, as guardas municipais, sob o aspecto material, exercem atividade típica de segurança pública, consubstanciada na proteção de bens, serviços e instalações municipais (art. 144, § 8º, CF/88).

Ademais, o Congresso Nacional, no exercício de sua legítima competência legislativa (art. 144, § 7º, CF/88), editou a Lei nº 13.675/2018 e colocou as guardas municipais como integrantes operacionais do SUSP (art. 9º, § 1º, inciso VII).

Art. 144. (...)

§ 7º A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.

 

Já a Lei nº 13.022/2014, que dispõe sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais, prevê diversas atribuições que são inerentes a agentes de segurança pública.

Portanto, as Guardas Municipais têm entre suas atribuições primordiais o poder-dever de prevenir, inibir e coibir, pela presença e vigilância, infrações penais ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações municipais. Trata-se de atividade típica de segurança pública exercida na tutela do patrimônio municipal.

Igualmente, a atuação preventiva e permanentemente, no território do Município, para a proteção sistêmica da população que utiliza os bens, serviços e instalações municipais é atividade típica de órgão de segurança pública.

Vale dizer que a constitucionalidade da Lei nº 13.022/2014 já foi analisada pelo STF no julgamento do Tema 472:

É constitucional a Lei federal nº 13.022/2014, que dispõe sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais.

Essa lei não viola a autonomia dos municípios (art. 144, § 8º) e se limita a estabelecer critérios padronizados para a instituição, organização e exercício das guardas municipais.

A lei constitui norma geral, de competência da União, que, além de tratar da organização das guardas municipais em todos os municípios do País, reconhece a prerrogativa dos entes municipais para criá-las ou não, por lei, e para definir sua estrutura e funcionamento.

As guardas municipais podem exercer atividade fiscalizatória de trânsito e, consequentemente, a aplicação de multas previstas em lei, por significar fiel manifestação do poder de polícia. Ademais, revela-se legítimo o desempenho da atividade de segurança pública pelas guardas municipais.

STF. Plenário. ADI 5.780/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 01/7/2023 (Info 1101).

 

Além disso, importante recordar que o STF declarou a inconstitucionalidade do critério utilizado pela Lei nº 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento) – número de habitantes nos Estados ou Municípios –, para permitir o porte de arma de fogo por integrantes das Guardas Municipais:

O art. 6º, III e IV, da Lei nº 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento) somente previa porte de arma de fogo para os guardas municipais das capitais e dos Municípios com maior número de habitantes. Assim, os integrantes das guardas municipais dos pequenos Municípios (em termos populacionais) não tinham direito ao porte de arma de fogo.

O STF considerou que esse critério escolhido pela lei é inconstitucional porque os índices de criminalidade não estão necessariamente relacionados com o número de habitantes.

Assim, é inconstitucional a restrição do porte de arma de fogo aos integrantes de guardas municipais das capitais dos estados e dos municípios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes e de guardas municipais dos municípios com mais de 50.000 (cinquenta mil) e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, quando em serviço.

Com a decisão do STF todos os integrantes das guardas municipais possuem direito a porte de arma de fogo, em serviço ou mesmo fora de serviço. Não interessa o número de habitantes do Município.

STF. Plenário. ADC 38/DF, ADI 5538/DF e ADI 5948/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgados em 27/2/2021 (Info 1007).

 

Não se deve negligenciar, também, o julgamento do Tema 544 da Repercussão Geral, em que o STF firmou orientação segundo a qual as Guardas Municipais executam atividade de segurança pública (art. 144, § 8º, da CF), essencial ao atendimento de necessidades inadiáveis da comunidade (art. 9º, § 1º, CF) e que, justamente por isso, submetem-se, em relação ao direito de greve, às restrições firmadas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do ARE 654.432:

(...) 2. As Guardas Municipais executam atividade de segurança pública (art. 144, § 8º, da CF), essencial ao atendimento de necessidades inadiáveis da comunidade (art. 9º, § 1º, CF), pelo que se submetem às restrições firmadas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do ARE 654.432 (Rel. Min. EDSON FACHIN, redator para acórdão Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 5/4/2017). (...)

STF. Plenário. RE 846854, Rel. Min. Luiz Fux, Relator p/ Acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgado em 01/08/2017.

 

Em suma:

 

Com base nesse entendimento, o Plenário do STF, por maioria, julgou procedente o pedido para, nos termos do art. 144, § 8º, da CF/88, conceder interpretação conforme a Constituição ao art. 4º da Lei nº 13.022/2014 e ao art. 9º da Lei nº 13.675/2018, de modo a declarar inconstitucionais todas as interpretações judiciais que excluem as guardas municipais, devidamente criadas e instituídas, como integrantes do Sistema de Segurança Pública.

 

DOD Plus

Antes do julgamento acima explicado, o STJ possuía vários julgados afirmando que:

A guarda municipal, por não estar entre os órgãos de segurança pública previstos no art. 144 da CF, não pode exercer atribuições das polícias civis e militares.

A sua atuação da guarda municipal deve se limitar à proteção de bens, serviços e instalações do município.

STJ. 6ª Turma. REsp 1977119-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 16/08/2022 (Info 746).

 

Ocorre que, como vimos, posteriormente, o STF, no julgamento da ADPF 995, decidiu que:

As guardas municipais são reconhecidamente órgãos de segurança pública e aquelas devidamente criadas e instituídas integram o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).

STF. Plenário. ADPF 995/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 28/8/2023 (Info 1105).

 

Diante disso, indaga-se: com a decisão do STF na ADPF 995/DF, a conclusão final do STJ exposta no REsp 1977119-SP fica superada?

NÃO. A conclusão do julgado permanece intacta. O que muda é um dos fundamentos invocados.

• o STJ – e nenhum outro órgão jurisdicional – pode afirmar que a guarda municipal não é órgão de segurança pública. Isso porque o STF afirmou, com eficácia vinculante, que a guarda municipal é sim órgão de segurança pública;

• por outro lado, o STJ continua decidindo que a guarda municipal não pode exercer atribuições das polícias civis e militares. A sua atuação da guarda municipal deve se limitar à proteção de bens, serviços e instalações do município.

 

Nesse sentido, confira esse julgado do STJ posterior à decisão do STF na ADPF 995/DF:

(...) 1. A Constituição Federal de 1988 não atribui à guarda municipal atividades ostensivas típicas de polícia militar ou investigativas de polícia civil, como se fossem verdadeiras “polícias municipais”.

(...)

5. O fato de as guardas municipais não haverem sido incluídas nos incisos do art. 144, caput, da CF não afasta a constatação de que elas exercem atividade de segurança pública. Isso, todavia, não significa que possam ter a mesma amplitude de atuação das polícias.

6. O Supremo Tribunal Federal, apesar de reconhecer em diversos julgados que as guardas municipais integram o Sistema Único de Segurança Pública e exercem atividade dessa natureza (vide RE n. 846.854/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, DJe 7/2/2018 e ADC n. 38/DF, Rel. Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJe 18/5/2021), nunca as equiparou por completo aos órgãos policiais para todos os fins.

(...)

8. Em 25/8/2023, o STF julgou procedente a ADPF n. 995 (Rel. Ministro Alexandre de Moraes) para “CONCEDER INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO aos artigos 4º da Lei 13.022/14 e artigo 9º da 13.675/18 DECLARANDO INCONSTITUCIONAIS todas as interpretações judiciais que excluem as Guardas Municipais, devidamente criadas e instituídas, como integrantes do Sistema de Segurança Pública”. Mais uma vez, a Corte reafirmou sua posição de que as guardas municipais integram o Sistema de Segurança Pública, mas, novamente, não lhes conferiu poderes idênticos aos dos órgãos policiais.

9. As teses ora sugeridas neste voto e antes assentadas no REsp n. 1.977.119/SP encontram respaldo e são plenamente consonantes com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, porque tanto naquele julgado quanto neste se admitiu expressamente que as guardas municipais integram o Sistema Único de Segurança Pública e exercem atividade dessa natureza, ressalvado apenas que não têm a mesma amplitude de atuação das polícias, o que é amparado pela respeitada doutrina do próprio Ministro Alexandre de Moraes, relator da ADC n. 38/DF e da ADPF n. 995, para quem a Constituição Federal facultou aos Municípios a “constituição de guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei, sem, contudo, reconhecer-lhes a possibilidade de exercício de polícia ostensiva ou judiciária” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 39 ed. São Paulo: Atlas, 2023, p. 940).

10. Os dois artigos de lei aos quais se deu interpretação conforme à Constituição na ADPF n. 995, aliás, confirmam essa compreensão: a) o art. 4º da Lei n. 13.022/2014 dispõe que "É competência geral das guardas municipais a proteção de bens, serviços, logradouros públicos municipais e instalações do Município"; b) o art. 9º da Lei n. 13.675/2018, por sua vez, estabelece que "É instituído o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), que tem como órgão central o Ministério Extraordinário da Segurança Pública e é integrado pelos órgãos de que trata o art. 144 da Constituição Federal, pelos agentes penitenciários, pelas guardas municipais e pelos demais integrantes estratégicos e operacionais, que atuarão nos limites de suas competências, de forma cooperativa, sistêmica e harmônica".

11. Cumpre lembrar, a propósito, que os bombeiros militares e os policiais penais, por exemplo, também integram o rol de órgãos de segurança pública previsto nos incisos do art. 144, caput, da Constituição, mas nem por isso se cogita que possam realizar atividades alheias às suas atribuições, como fazer patrulhamento ostensivo e revistar pessoas em via pública à procura de drogas. No mesmo sentido, cabe observar que, na ADI n. 6.621/TO (Rel. Ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, DJe 23/6/2021), o Supremo Tribunal Federal reconheceu que o rol do art. 144, caput, da CF não é taxativo e que é constitucional a criação, por ato normativo estadual, de Superintendência de Polícia Científica (formada por agentes de necrotomia, papiloscopistas e peritos oficiais) como órgão de segurança pública não vinculado administrativamente à polícia civil. Não se concebe, porém, que o referido julgado autorize agentes de necrotomia, papiloscopistas e peritos a sair pelas ruas fazendo patrulhamento ostensivo e revistando indivíduos suspeitos.

(...)

13. Verifica-se, portanto, que, mesmo a proteção da população do município, embora se inclua nas atribuições das guardas municipais, deve respeitar as competências dos órgãos federais e estaduais e está vinculada ao contexto de utilização dos bens, serviços e instalações municipais, o que evidencia a total compatibilidade com a tese proposta no presente voto de que: “[...] salvo na hipótese de flagrante delito, só é possível que as guardas municipais realizem excepcionalmente busca pessoal se, além de justa causa para a medida (fundada suspeita), houver pertinência com a necessidade de tutelar a integridade de bens e instalações ou assegurar a adequada execução dos serviços municipais, assim como proteger os seus respectivos usuários”.

14. Não se pode confundir “poder de polícia” com “poder das polícias” ou “poder policial". “Poder de polícia” é conceito de direito administrativo previsto no art. 78 do Código Tributário Nacional e explicado pela doutrina como “atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20 ed. São Paulo: Atlas, 2015, 158). Já o "poder das polícias" ou "poder policial", típico dos órgãos policiais, é marcado pela possibilidade de uso direto da força física para fazer valer a autoridade estatal, o que não se verifica nas demais formas de manifestação do poder de polícia, que somente são legitimadas a se valer de mecanismos indiretos de coerção, tais como multas e restrições administrativas de direitos. Dessa forma, o "poder das polícias" ou "poder policial" diz respeito a um específico aspecto do poder de polícia relacionado à repressão de crimes em geral pelos entes policiais, de modo que todo órgão policial exerce poder de polícia, mas nem todo poder de polícia é necessariamente exercido por um órgão policial.

15. Conquanto não sejam órgãos policiais propriamente ditos, as guardas municipais exercem poder de polícia e também algum poder policial residual e excepcional dentro dos limites de suas atribuições. A busca pessoal - medida coercitiva invasiva e direta - é exemplo desse poder, razão pela qual só pode ser realizada dentro do escopo de atuação da guarda municipal.

16. Ao dispor, no art. 301 do CPP, que “qualquer do povo poderá [...] prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”, o legislador, tendo em conta o princípio da autodefesa da sociedade e a impossibilidade de que o Estado seja onipresente, contemplou apenas os flagrantes visíveis de plano, como, por exemplo, a situação de alguém que, no transporte público, flagra um indivíduo subtraindo sorrateiramente a carteira do bolso da calça de outrem e o detém. Distinta, no entanto, é a hipótese em que a situação de flagrante só é evidenciada depois de realizar atividades invasivas de polícia ostensiva ou investigativa, como a busca pessoal ou domiciliar, uma vez que não é qualquer do povo que pode investigar, interrogar, abordar ou revistar seus semelhantes.

17. A adequada interpretação do art. 244 do CPP é a de que a fundada suspeita de posse de corpo de delito é um requisito necessário, mas não suficiente, por si só, para autorizar a realização de busca pessoal, porque não é a qualquer cidadão que é dada a possibilidade de avaliar a presença dele; isto é, não é a todo indivíduo que cabe definir se, naquela oportunidade, a suspeita era fundada ou não e, por consequência, proceder a uma abordagem seguida de revista. Em outras palavras, mesmo se houver elementos concretos indicativos de fundada suspeita da posse de corpo de delito, a busca pessoal só será válida se realizada pelos agentes públicos com atribuição para tanto, a quem compete avaliar a presença de tais indícios e proceder à abordagem e à revista do suspeito.

(...)

20. Poderão, todavia, realizar busca pessoal em situações excepcionais - e por isso interpretadas restritivamente - nas quais se demonstre concretamente haver clara, direta e imediata relação com a finalidade da corporação, como instrumento imprescindível para a realização de suas atribuições. Vale dizer, salvo na hipótese de flagrante delito, só é possível que as guardas municipais realizem excepcionalmente busca pessoal se, além de justa causa para a medida (fundada suspeita), houver pertinência com a necessidade de tutelar a integridade de bens e instalações ou assegurar a adequada execução dos serviços municipais, assim como proteger os seus respectivos usuários, o que não se confunde com permissão para desempenharem atividades ostensivas ou investigativas típicas das polícias militar e civil para combate da criminalidade urbana ordinária em qualquer contexto.

21. No caso dos autos, guardas municipais estavam em patrulhamento quando depararam com o paciente em “atitude suspeita”. Por isso, decidiram abordá-lo e, depois de revista pessoal, encontraram certa quantidade de drogas no bolso traseiro e nas vestes íntimas dele, o que ensejou a sua prisão em flagrante delito.

22. Ainda que, eventualmente, se considerasse provável que o réu ocultasse objetos ilícitos, isto é, que havia fundada suspeita de que ele escondia drogas, não existia certeza sobre tal situação a ponto de autorizar a imediata prisão em flagrante por parte de qualquer do povo, com amparo no art. 301 do CPP. Tanto que, conforme se depreende da narrativa fática descrita pelas instâncias ordinárias, só depois de constatado que havia drogas dentro do bolso e das vestes íntimas do paciente é que se deu voz de prisão em flagrante para ele, e não antes. E, por não haver sido demonstrada concretamente a existência de relação clara, direta e imediata com a proteção dos bens, serviços ou instalações municipais, ou de algum cidadão que os estivesse usando, não estavam os guardas municipais autorizados, naquela situação, a avaliar a presença da fundada suspeita e efetuar a busca pessoal no acusado.

23. Ordem concedida para confirmar a liminar deferida e declarar ilícitas as provas colhidas por meio da busca pessoal, bem como todas as delas decorrentes e, por consequência, absolver o réu, com fundamento no art. 386, II, do CPP, da condenação a ele imposta no Processo n. 1500093-71.2022.8.26.0080.

(HC n. 830.530/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 27/9/2023, DJe de 4/10/2023.)


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