quarta-feira, 8 de novembro de 2023
Apenas a vítima pode requerer a designação da audiência prevista no art. 16 da LMP para a renúncia à representação; é vedado ao Poder Judiciário designá-la de ofício ou a requerimento de outra parte
Art. 16 da Lei de Violência Doméstica
A Lei nº
11.340/2006 (Lei Maria da Penha) admite a renúncia à representação, desde que
oferecida antes do recebimento da denúncia. Confira:
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da
ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação
perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes
do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
ADI
A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP)
ajuizou ADI em face do art. 16 da Lei Maria da Penha. O objetivo da autora,
contudo, não era retirar esse art. 16 do ordenamento jurídico, mas sim que o
STF fizesse uma interpretação conforme.
A Associação argumentou que muitos magistrados têm
designado, de ofício, essa audiência do art. 16, mesmo sem que haja
manifestação da vítima. Em outras palavras, alguns Tribunais de Justiça estavam
considerando que essa audiência do art. 16 seria obrigatória em todos os casos
de ação pública condicionada.
A Autora sustentou, na ADI, que os Tribunais de Justiça,
ao fazerem isso, afrontam a dignidade da pessoa humana e as prerrogativas do
Ministério Público.
Diante disso, a CONAMP requereu que seja
dada interpretação conforme ao dispositivo para que o STF diga que não é
possível a designação, de ofício, da audiência do art. 16 da Lei Maria da Penha.
Também não é possível reconhecer como “retratação tácita” ou “renúncia do
direito de representação” o não comparecimento da mulher vítima de violência
doméstica a essa audiência.
O STF concordou com o pedido formulado
na ADI?
SIM.
O art. 16 da Lei Maria da Penha não deve ser lido de
forma isolada, como se contivesse apenas dispositivos dirigidos ao juiz.
A audiência perante o juiz, de que trata o referido
dispositivo para as ações penais públicas condicionadas à representação da
ofendida, tem a finalidade de viabilizar que a vítima, devidamente assistida
por uma equipe multidisciplinar, expresse, de forma livre, a sua vontade. Não
se trata da mera avaliação da presença de um requisito procedimental, de modo
que não cabe ao magistrado delegar a realização da audiência a outro
profissional, ou designá-la de ofício ou a requerimento de outra parte.
Essa finalidade está diretamente relacionada às
obrigações que o Estado brasileiro tem no que tange à erradicação da violência
contra mulher.
Nesse contexto, a função da audiência perante o juiz não
é meramente avaliar a presença de um requisito procedimental, mas permitir que
a vítima, assistida necessariamente por equipe multidisciplinar, possa
livremente expressar sua vontade. Diante disso, não cabe ao juiz designar, de
ofício, a audiência se a vítima não requerer.
O Estado brasileiro é obrigado a aplicar os dispositivos
da legislação de combate à violência contra mulher de maneira estrita,
garantido que todos os procedimentos legais em casos que envolvam violência
sejam imparciais, justos e neutros relativamente a estereótipos de gênero.
Por isso, é completamente contrária ao texto
constitucional e às obrigações internacionais que o país se obrigou a cumprir
tornar obrigatória a audiência prevista no art. 16 da Lei Maria da Penha.
Em suma:
A
interpretação no sentido da obrigatoriedade da audiência prevista no art. 16 da
Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), sem que haja pedido de sua realização
pela ofendida, viola o texto constitucional e as disposições internacionais que
o Brasil se obrigou a cumprir, na medida em que discrimina injustamente a
própria vítima de violência.
STF. Plenário.
ADI 7267/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 22/8/2023 (Info 1104).
Com base nesse entendimento, o Plenário do STF julgou
parcialmente procedente o pedido para dar interpretação conforme a Constituição
ao art. 16 da Lei nº 11.340/2006, no sentido de reconhecer a
inconstitucionalidade:
i) da designação, de ofício, da audiência nele prevista;
e
ii) do reconhecimento de que eventual não comparecimento
da vítima de violência doméstica implique “retratação tácita” ou “renúncia
tácita ao direito de representação”.
DOD Plus –
esse já era o entendimento do STJ
A audiência do art. 16 da Lei Maria da Penha não é um ato
processual obrigatório determinado pela lei; a realização dessa audiência
configura apenas um direito da vítima, caso ela manifeste o desejo de se
retratar
A audiência
prevista no art. 16 da Lei nº 11.340/2006 tem por objetivo confirmar a
retratação, não a representação, e não pode ser designada de ofício pelo juiz.
Sua realização somente é necessária caso haja manifestação do desejo da vítima
de se retratar trazida aos autos antes do recebimento da denúncia.
STJ. 3ª Seção.
REsp 1977547-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 8/3/2023
(Recurso Repetitivo – Tema 1167) (Info 766).
• Para que a audiência do art. 16 se realize é
indispensável a prévia manifestação da vítima levada ao conhecimento do juiz,
expressando seu desejo de se retratar.
• A intenção do legislador, ao criar tal audiência, foi a
de evitar ou pelo menos minimizar a possibilidade de oferecimento de retratação
pela vítima em virtude de ameaças ou pressões externas, garantindo a higidez e
autonomia de sua nova manifestação de vontade em relação à persecução penal do
agressor. Assim, não há como se interpretar a regra contida no art. 16 da Lei
nº 11.340/2006 como uma audiência destinada à confirmação do interesse da
vítima em representar contra seu agressor, pois a letra da lei deixa claro que
tal audiência se destina à confirmação da retratação.
• Se a vítima já fez a representação no início da
persecução, ela se presume válida até que sobrevenha manifestação do mesmo
indivíduo em sentido contrário.
• A realização obrigatória de uma audiência para
confirmar se a vítima da violência doméstica permanece com interesse de seguir
com o processo contra seu agressor é uma providência que ganha contornos mais
sensíveis e que tem o potencial de agravar o estado psicológico da vítima. Isso
porque essa audiência coloca em dúvida a veracidade de seu relato inicial. Além
disso, não raras vezes a vítima está inserida em um cenário de dependência
emocional e/ou financeira, fazendo com que ela se questione se vale a pena
denunciar as agressões sofridas, enfraquecendo o objetivo da Lei Maria da Penha
de garantir uma igualdade substantiva às mulheres que sofrem violência
doméstica. Por fim, essa audiência, se obrigatória, leva a vítima a reviver os
traumas decorrentes dos abusos.