Imagine a seguinte situação
hipotética:
João
celebrou, com a incorporadora, contrato de compra e venda de um imóvel, com
cláusula de alienação fiduciária em garantia.
O ajuste previa o pagamento em
120 prestações mensais.
Após 60 prestações pagas, João
ajuizou ação de resolução do contrato contra a incorporadora alegando que não
tinha mais condições de continuar pagando as parcelas restantes.
Na ação, o autor pediu a dissolução do vínculo obrigacional,
afirmando que entregaria o imóvel e que, como consequência, queria receber de
volta 90% das prestações pagas. Afirmou que o vendedor poderia reter 10% dos
valores já recebidos a título de despesas que eventualmente tenha sido, nos
termos do art. 53 do CDC:
Art. 53. Nos contratos de compra
e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas
alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as
cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do
credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a
retomada do produto alienado.
A alienante alegou que o pedido
do autor não poderia ser acolhido e que, no presente caso, o que aconteceu foi
uma quebra antecipada do contrato por parte do comprador.
De acordo com a quebra antecipada
do contrato (chamada de antecipatory breach, na common law), há
inadimplemento, mesmo antes do vencimento, quando o devedor pratica atos
abertamente contrários ao cumprimento do contrato.
Tendo havido inadimplemento por
parte do comprador, é possível o desfazimento do contrato, no entanto, a
devolução dos valores já pagos não se dará na forma do art. 53 do CDC, mas sim
segundo o procedimento estabelecido nos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514/97.
Em suma, a construtora alegou que
houve um contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação
fiduciária. Logo, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do
devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na
Lei nº 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por
conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.
O juiz acolheu os
argumentos da alienante?
NÃO.
O juiz disse
que, no caso concreto, houve uma falta de cuidado que mudou todo o cenário: o
contrato de compra e venda não foi levado a registro no cartório do registro de
imóveis.
No caso de propriedade fiduciária de bem imóvel, regida pela
Lei nº 9.514/97, a garantia somente se constitui com o registro do contrato que
lhe serve de título no registro imobiliário (“cartório de registro de imóveis”)
do local onde se situa o bem. Nesse sentido, veja o que diz o art. 23 da Lei nº
9.514/97:
Art. 23. Constitui-se a
propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato
que lhe serve de título.
Parágrafo único. Com a
constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse,
tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da
coisa imóvel.
O registro possui natureza
constitutiva da propriedade fiduciária, assim como ocorre em relação aos demais
direitos reais sobre imóveis
Dessa maneira, sem o registro do
contrato no competente Registro de Imóveis, há simples crédito, situado no
âmbito obrigacional, sem qualquer garantia real nem propriedade resolúvel
transferida ao credor.
Em suma, para o juiz, a ausência
de registro do contrato que serve de título à propriedade fiduciária no
Registro de Imóveis retira a validade do ajuste entre os contratantes e,
portanto, impede o credor fiduciário de promover a alienação extrajudicial do
bem.
O STJ concordou com a conclusão
do magistrado? A ausência de registro do contrato que serve de
título à propriedade fiduciária no Registro de Imóveis retira a validade do
ajuste entre os contratantes?
NÃO.
Art.
23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente
Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título.
Parágrafo
único. Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da
posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor
indireto da coisa imóvel.
Nesse
ponto, o magistrado está correto.
Ocorre
que a ausência do
registro do contrato não retira a validade e a eficácia das cláusulas
contratuais que foram livremente ajustadas entre as partes. Uma dessas
cláusulas é justamente a que autoriza a alienação extrajudicial do imóvel em
caso de inadimplência.
O
registro é direito potestativo do credor, a fim de que se concretize a
transferência da propriedade resolúvel para seu nome, mediante o pagamento do
tributo e custas devidos. Pode ser feita a qualquer momento durante a vigência
da relação contratual.
Por
se tratar de contrato bilateral, com a assunção de obrigações recíprocas, deve
ser reconhecido o direito de o credor fiduciário utilizar os meios contratuais
de execução da garantia em caso de inadimplência do devedor fiduciante, mesmo
na hipótese em que a avença não é levada a registro.
Vale
ressaltar que o reconhecimento da validade e da eficácia do contrato de
alienação fiduciária, mesmo sem o registro no Ofício de Registro de Imóveis,
opera-se em favor de ambas as partes da relação contratual. É uma garantia para
ambas as partes. Assim, mesmo na ausência de registro, o devedor fiduciante tem
o direito de não ter o imóvel objeto da garantia alienado fora das hipóteses
legalmente admitidas e de obter o termo de quitação após o pagamento integral
da dívida e de seus encargos, com vistas à consolidação da propriedade
definitiva do imóvel. Se assim não fosse, o credor fiduciário poderia requerer
o distrato mesmo sem o inadimplemento do devedor fiduciário, gerando enorme
insegurança jurídica para este último.
Isso
significa que a alienante poderá fazer a alienação extrajudicial do imóvel
mesmo sem o registro do contrato?
NÃO.
Não significa isso. O registro, como vimos acima, é desnecessário para conferir
eficácia ao contrato de alienação fiduciária entre devedor fiduciante e credor
fiduciário. Assim, mesmo sem o registro, o contrato firmado entre João e a incorporadora
é válido e eficaz.
No entanto, para dar início à
alienação extrajudicial do imóvel é, sim, imprescindível a efetivação do
registro do contrato. Isso porque a constituição do devedor em mora e a
eventual purgação desta se processa perante o Oficial de Registro de Imóveis,
nos moldes do art. 26 da Lei nº 9.514/97:
Art.
26. Vencida e não paga a dívida, no todo ou em parte, e constituídos em mora o
devedor e, se for o caso, o terceiro fiduciante, será consolidada, nos termos
deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário.
§
1º Para fins do disposto neste artigo, o devedor e, se for o caso, o terceiro fiduciante serão intimados, a
requerimento do fiduciário, pelo oficial do registro de imóveis competente,
a satisfazer, no prazo de 15 (quinze) dias, a prestação vencida e aquelas que
vencerem até a data do pagamento, os juros convencionais, as penalidades e os
demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive os tributos, as
contribuições condominiais imputáveis ao imóvel e as despesas de cobrança e de
intimação.
(...)
Voltando,
portanto, para o caso concreto:
O
juiz deveria ter julgado improcedente o pedido de João.
Mesmo
sem registro, as cláusulas contratuais são válidas.
A
ausência de registro do contrato não confere ao devedor fiduciante (no caso,
João) o direito de promover a rescisão da avença por meio diverso daquele
contratualmente previsto.
Admitir
a rescisão do contrato de alienação fiduciária de bem imóvel com base nas
normas de proteção ao direito do consumidor, ou seja, com a devolução da maior
parte dos valores pagos e a retenção de um pequeno percentual a título de
ressarcimento de eventuais despesas, seria desvirtuar por completo o instituto,
que certamente cairia em desuso, em prejuízo dos próprios consumidores de
imóveis, que teriam maior dificuldade de acesso ao crédito e juros mais
elevados.
Vale
ressaltar, contudo, que, para a incorporadora promover a alienação
extrajudicial do bem, é indispensável que ela supra a sua omissão e faça o
registro do contrato no registro de imóveis. Somente com essa providência ela
poderá fazer a constituição do devedor em mora para depois alienar
extrajudicialmente o imóvel.
Em
suma:
A ausência de
registro do contrato que serve de título à propriedade fiduciária no Registro
de Imóveis não retira a validade do ajuste entre os contratantes. Ainda que o registro do contrato no
competente Registro de Imóveis seja imprescindível à constituição da
propriedade fiduciária de coisa imóvel, nos termos do art. 23 da Lei nº
9.514/97, sua ausência não retira a validade e a eficácia dos termos livre e
previamente ajustados entre os contratantes, inclusive da cláusula que autoriza
a alienação extrajudicial do imóvel em caso de inadimplência.
Vale ressaltar,
contudo, que, para dar início à alienação extrajudicial do imóvel é, sim,
imprescindível a efetivação do registro do contrato. Isso porque a constituição
do devedor em mora e a eventual purgação desta se processa perante o Oficial de
Registro de Imóveis, nos moldes do art. 26 da Lei nº 9.514/97.
STJ. 2ª Seção. EREsp 1.866.844-SP,
Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva,
julgado em 27/9/2023 (Info 789).
Outras
informações extraídas do voto-vista da Min. Isabel Galloti:
•
A ausência do registro do contrato de alienação fiduciária no competente
Registro de Imóveis não lhe retira a eficácia, ao menos entre os contratantes,
servindo tal providência apenas para que a avença produza efeitos perante
terceiros.
•
Ao não promover o registro imobiliário do contrato, o credor assume o risco,
por exemplo, de o devedor alienar o bem a terceiro, ignorante do contrato, e ao
qual o pacto não poderá ser oposto, precisamente em razão da falta de registro.
•
A propriedade de bem imóvel somente se transfere, entre vivos, mediante o
registro do título translativo no Registro de Imóveis, nos termos do art. 1.245
do Código Civil. Nem por isso se pode dizer que a validade e a eficácia do
negócio em tais hipóteses fica condicionada ao registro. O registro serve apenas
para que o direito possa surtir efeitos perante terceiros.
A
ausência de registro do contrato de promessa de compra e venda de imóvel, ao
menos em relação aos contratantes, não lhe retira as características que lhe
são inerentes, a exemplo da impossibilidade de retratação. O registro serve
apenas ao propósito de conferir direito real oponível a terceiros (art. 25 da
Lei nº 6.766/79).
•
Não se pretende afastar a aplicação do art. 23 da Lei nº 9.517/97. Referido
dispositivo, entretanto, não fixa o prazo para o registro do contrato de
alienação fiduciária. Prevê que: “(...) constitui-se a propriedade fiduciária
de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do
contrato que lhe serve de título”. Ou seja: o registro é necessário para a
consolidação da propriedade em nome da credora fiduciária, apesar de não ser
exigência para que o contrato de alienação fiduciária tenha validade e eficácia
entre as partes.
•
Isso significa que o registro do contrato de alienação fiduciária é
imprescindível para o início do procedimento que poderá levar à alienação
extrajudicial do imóvel caso não haja purgação da mora. Na ausência do
registro, como no caso dos autos, caberá ao credor fiduciário registrar o
contrato antes de dar início ao procedimento de alienação extrajudicial.
•
Portanto, depreende-se que:
a)
a ausência de registro do contrato de alienação fiduciária não confere ao
recorrido o direito de promover resilição, resolução ou rescisão por meio
diverso daquele contratado; e
b)
configurado o inadimplemento do recorrido, o credor fiduciário, ora recorrente,
após a efetivação do registro, promoverá o procedimento de execução
extrajudicial perante o Registro de Imóveis, o qual, caso não haja a tempestiva
purgação da mora, culminará com a alienação do bem em leilão e entrega ao
recorrido do valor remanescente, abatidos os valores da dívida e as demais
despesas comprovadas, conforme previsto nos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514/97.
DOD Plus – julgados correlatos
O entendimento
acima foi proferido pela 2ª Seção do STJ em embargos de divergência. Com isso,
ficou parcialmente superado o julgado abaixo. Faça essa anotação em seus
materiais de estudo:
No regime especial da
Lei 9.514/97, o registro do contrato tem natureza constitutiva, sem o qual a
propriedade fiduciária e a garantia dela decorrente não se perfazem.
Na ausência de registro
do contrato que serve de título à propriedade fiduciária no competente Registro
de Imóveis, como determina o art. 23 da Lei nº 9.514/97, não é exigível do
adquirente que se submeta ao procedimento de venda extrajudicial do bem para só
então receber eventuais diferenças do vendedor.
Art. 23. Constitui-se a
propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente
Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título.
STJ. 3ª Turma. REsp
1835598-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 09/02/2021 (Info 685).