Dizer o Direito

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Os requisitos legais previstos no art. 41 da Lei de Drogas são alternativos ou cumulativos?

Imagine a seguinte situação adaptada:

João foi surpreendido, em via pública, por policiais militares portando invólucros de maconha.

Ao ser indagado, ele confessou a prática de venda ilícita de entorpecentes e informou aos policiais o local onde teria mais 50 invólucros da mesma droga.

João foi preso em flagrante e denunciado por tráfico de drogas.

No depoimento prestado em juízo, um dos policiais declarou que, não fosse a indicação do réu, eles não teriam localizado as drogas que estavam escondidas.

João foi condenado. O magistrado entendeu que ele havia apontado espontaneamente o restante do produto do crime e, por essa razão, concedeu o benefício da redução da pena na fração de 1/3, com fundamento no art. 41 da Lei nº 11.343/2006:

Art. 41. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços.

 

O Ministério Público apelou alegando que o acusado não mereceria a redução porque os requisitos do art. 41 da Lei de Drogas não foram cumulativamente preenchidos:

a) existência de inquérito policial, com indiciamento, ou processo criminal contra o autor da delação;

b) prestação de colaboração voluntária (livre de qual quer coação física ou moral);

c) concurso de pessoas em qualquer delito previsto no artigo 11.343/2006, vale dizer, é necessário que o coautor e o partícipe delatados estejam praticando delitos previstos na lei de drogas;

d) recuperação total ou parcial do produto de crime, que segundo a doutrina majoritária, é a própria droga ou valores obtidos com sua comercialização.

 

Apontou que “não foi efetuada campana, não houve infiltração de agente, postergação de flagrante ou qualquer outra diligência investigativa a indicar a existência de uma prévia investigação que pudesse preencher o requisito “investigação policial”.

O Tribunal de Justiça concordou com o MP e afastou a aplicação da causa de diminuição de pena.

A defesa impetrou habeas corpus argumentando que os requisitos legais contidos no art. 41 da LD são alternativos, e não cumulativos, sobretudo na hipótese concreta dos autos, em que o acusado voluntariamente mostrou aos policiais onde estava escondido o restante dos entorpecentes e as circunstâncias fáticas do caso não indicam a possível existência de outras pessoas envolvidas na prática delitiva.

 

O STJ concordou com a defesa? Os requisitos legais previstos no art. 41 da Lei nº 11.343/2006 são alternativos ou cumulativos?

SIM. Os requisitos do art. 41 da LD são alternativos.

Diz o art. 41 da Lei nº 11.343/2006 que:

Art. 41. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços.

 

Não há como negar que a leitura do referido dispositivo legal aponta, ao menos à primeira vista, para a cumulatividade dos requisitos legais ali estabelecidos, em razão do emprego da conjunção coordenada aditiva “e” entre eles.

Entretanto, a interpretação gramatical de um dispositivo legal nem sempre reflete a mais adequada exegese para dele extrair a norma jurídica pertinente. Trata-se de método hermenêutico que, muitas vezes, acaba por ignorar lição fundamental de Teoria Geral do Direito segundo a qual o ato normativo não se resume à mera dicção explícita de sua literalidade, pois o texto só se converte em norma depois de interpretado. Assim, é necessário interpretar os dispositivos legais principalmente à luz da sistemática em que estão inseridos, a fim de dar coerência e integridade ao ordenamento.

Nesse passo, cumpre lembrar que o atual art. 41 da Lei de Drogas tem origem no antigo art. 32, § 2º, da Lei nº 10.409/2002, o qual trazia a conjunção “ou” entre os requisitos para a colaboração premiada, ao dispor que “O sobrestamento do processo ou a redução da pena podem ainda decorrer de acordo entre o Ministério Público e o indiciado que, espontaneamente, revelar a existência de organização criminosa, permitindo a prisão de um ou mais dos seus integrantes, ou a apreensão do produto, da substância ou da droga ilícita, ou que, de qualquer modo, justificado no acordo, contribuir para os interesses da Justiça”.

Ademais, além de não se identificar nenhuma justificativa para que tal mudança gramatical decorresse de eventual propósito deliberado do legislador e nada há na Exposição de Motivos da Lei nº 11.343/2006 que o indique, não se pode desconsiderar o advento da Lei nº 12.850/2013, que cuidou de definir, regular e sistematizar diversos aspectos relativos ao instituto da colaboração premiada, oportunidade em que, ao estabelecer seus requisitos no art. 4º, fê-lo de forma alternativa.

Essa consideração ganha dimensão ainda mais significativa se ponderado que os crimes da Lei de Organizações Criminosas são plurissubjetivos, isto é, de concurso necessário de pessoas e, mesmo assim, o legislador não impôs obrigatoriamente a identificação dos demais coautores e partícipes, de modo que não se mostra razoável exigi-lo compulsoriamente nos crimes contidos na Lei de Drogas, em que o concurso de pessoas é meramente eventual.

Trata-se de interpretação mais consentânea ao princípio da proporcionalidade, pois não desconsidera a relevante colaboração do réu com o Estado-acusação, dá maior efetividade a esse meio de obtenção de prova estabelecido pelo legislador e ainda evita a indevida confusão entre delação premiada e colaboração premiada, uma vez que a delação de comparsas é apenas uma das formas pelas quais o indivíduo pode prestar colaboração.

Assim, tanto sob a perspectiva de uma interpretação histórica, quanto à luz de uma interpretação sistemática - em consonância com o tratamento geral que a Lei nº 12.850/2013 posteriormente conferiu à matéria -, é mais adequado considerar alternativos, e não cumulativos, os requisitos legais previstos no art. 41 da Lei nº 11.343/2006 para redução da pena.

Isso não significa conceder ao acusado que identifica seus comparsas e ainda ajuda na recuperação do produto do crime o mesmo tratamento conferido àquele que só realiza uma dessas duas condutas, pois os distintos graus de colaboração podem (e devem) ser sopesados para definir a fração de redução da pena de um a dois terços, nos termos da lei.

 

Em suma:

 

Outro tema importante: qual é o conceito de produto do crime, de que trata o art. 41 da LD?

Embora haja certa divergência quanto ao exato enquadramento técnico da droga como “produto do crime”, há razoável consenso doutrinário de que, independentemente da categoria jurídica adotada, a interpretação da regra contida no art. 41 da Lei nº 11.343/2006 deve abarcar necessariamente a recuperação total ou parcial das drogas.

Assim, o conceito de “produto do crime”, no contexto do art. 41 da Lei nº 11.343/2006, deve ser interpretado para abranger tanto os produtos diretos propriamente ditos quanto a substância entorpecente e os proveitos (produtos indiretos) obtidos a partir da prática delitiva.


quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Se o indivíduo, durante um roubo, matar duas pessoas, mas subtrair o patrimônio de apenas uma delas, ele terá cometido um ou dois crimes de latrocínio?

Imagine a seguinte situação adaptada:

HUGO, DIEGO e WILLIAM, armados com fuzil e outras armas, invadiram uma agência do Banco Sicredi e dali subtraíram R$ 10 mil pertencentes à instituição financeira.

Os assaltantes fugiram em um veículo e passaram a ser perseguidos por uma viatura da polícia militar.

Durante a fuga, os bandidos efetuaram diversos tiros de fuzil em direção aos três policiais que fizeram a perseguição.

Os ladrões só pararam quando o veículo em que estavam capotou.

Em razão desses fatos, o Ministério Público ofereceu denúncia em face de HUGO, DIEGO e WILLIAM imputando-lhes a prática de três crimes de latrocínio, na modalidade tentativa:

Art. 157 (...)

§ 3º  Se da violência resulta:

(...)

II – morte, a pena é de reclusão de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos, e multa.

 

Art. 14. Diz-se o crime:

(...)

II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.    

 

O juiz condenou os réus por três crimes de latrocínio tentado em concurso formal impróprio. Isso porque os tiros foram disparados contra três vítimas (três policiais) com dolo (direto ou eventual) de matar.

Os réus interpuseram apelação pedindo para que fosse reconhecida a prática de um único crime de latrocínio tentado. Isso porque foi subtraído um único patrimônio (o dinheiro do banco).

O Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso argumentando que o STJ possui jurisprudência no sentido de que se há uma única subtração patrimonial, mas com três tentativas de morte, configura-se concurso formal impróprio de latrocínios, ou seja, são três crimes de latrocínio tentado.

Ainda inconformados, os réus interpuseram recurso especial insistindo na alegação de que houve um único crime de latrocínio tentado considerando que houve a subtração de um único patrimônio.

 

Qual das duas teses é acolhida pela jurisprudência na atualidade? Se há uma única subtração patrimonial, mas houve três tentativas de homicídio, haverá concurso formal de três latrocínios tentados ou um único crime de latrocínio tentado?

Um único crime de latrocínio tentado.

Realmente, o STJ entendia, no passado, que haveria concurso formal impróprio no crime de latrocínio quando, não obstante tivesse havido a subtração de um só patrimônio, o animus necandi fosse direcionado a mais de um indivíduo. Em outras palavras, o STJ entendia que a quantidade de latrocínios era aferida a partir do número de vítimas em relação às quais foi dirigida a violência, e não pela quantidade de patrimônios atingidos.

Veja um julgado antigo (superado) do STJ que espelhava esse entendimento:

Há concurso formal impróprio no latrocínio quando ocorre uma única subtração e mais de um resultado morte, uma vez que se trata de delito complexo, cujos bens jurídicos tutelados são o patrimônio e a vida.

STJ. 5ª Turma. HC 336.680/PR, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 17/11/2015.

 

No entanto, essa posição do STJ destoava da orientação do STF sobre o tema. O Supremo possui julgados afastando o concurso formal impróprio e reconhecendo a ocorrência de crime único de latrocínio, nas situações em que, embora o animus necandi seja dirigido a mais de uma pessoa, apenas um patrimônio tenha sido atingido. Veja o entendimento do STF (posição ainda atual):

(...) 7. Caracterizada a prática de latrocínio consumado, em razão do atingimento de patrimônio único.

8. O número de vítimas deve ser sopesado por ocasião da fixação da pena-base, na fase do art. 59 do CP. (...)

STF. 2ª Turma. HC 109539, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 07/05/2013.

 

(...) Segundo entendimento acolhido por esta Corte, a pluralidade de vítimas atingidas pela violência no crime de roubo com resultado morte ou lesão grave, embora único o patrimônio lesado, não altera a unidade do crime, devendo essa circunstância ser sopesada na individualização da pena (...)

STF. 2ª Turma. HC 96736, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 17/09/2013.

 

A pluralidade de vítimas em crime de latrocínio não enseja a conclusão de ocorrência de concurso formal impróprio.

STF. 1ª Turma. RHC 133575, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 21/02/2017.

 

Diante disso, o STJ decidiu fazer um overruling da sua jurisprudência, adequando-a ao entendimento do STF acerca do tema.

 

Overruling é uma técnica jurídica pela qual um precedente é superado ou substituído por outro entendimento. Essa técnica é aplicada quando há uma mudança nas circunstâncias fáticas e jurídicas que existiam quando o precedente foi estabelecido. O overruling pode ser expresso, quando é feita uma declaração explícita de superação do precedente, ou implícito, quando o tribunal simplesmente deixa de aplicar o precedente sem uma declaração explícita de superação.

 

Voltando ao caso concreto:

No caso, as instâncias ordinárias (Juiz e TJ) afirmaram que houve desígnios autônomos em relação ao animus necandi, motivo pelo qual entenderam pelo concurso formal impróprio. O STJ, contudo, reformou essa decisão aplicando o entendimento do STF.

 

Em suma, o entendimento atual da jurisprudência do STJ e STF é o seguinte:

Subtraído um só patrimônio, a pluralidade de vítimas da violência não impede o reconhecimento de crime único de latrocínio. 

STJ. 3ª Seção. AgRg no AREsp 2.119.185-RS, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 13/9/2023 (Info 789).

 

Atenção. A tese 15 da edição 51 do Jurisprudência em Teses do STJ previa o seguinte:

15) Há concurso formal impróprio no crime de latrocínio nas hipóteses em que o agente, mediante uma única subtração patrimonial provoca, com desígnios autônomos, dois ou mais resultados morte.

 

Esta tese encontra-se superada pelo novo entendimento do STJ.

Faça essa anotação em seus materiais de estudo.

 

Vamos mudar um pouco o caso narrado acima:

Imaginemos que, além do dinheiro do banco, os assaltantes tenham também subtraído a arma do vigilante, que pertencia à empresa terceirizada de segurança privada. Neste caso, o que mudaria?

Nesta outra situação teríamos a prática de dois crimes de latrocínio, na forma tentada. Isso porque teriam sido atingidos dois patrimônios distintos.

 

DOD Plus – dicas

Como ocorre a consumação do latrocínio?

O entendimento majoritário é o seguinte:

 

SUBTRAÇÃO

MORTE

LATROCÍNIO

Consumada

Consumada

Consumado

Tentada

Tentada

Tentado

Consumada

Tentada

Tentado

Tentada

Consumada

Consumado (Súmula 610-STF)

 

Súmula 610-STF: Há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima.

 

Dica: repare que a consumação do latrocínio será sempre determinada pela consumação ou não da morte.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

É possível a majoração da pena-base pelo fato de o réu, no interrogatório, ter imputado falsamente a prática do crime a um terceiro?

Critério trifásico

A dosimetria da pena na sentença obedece a um critério trifásico:

1º passo: o juiz calcula a pena-base de acordo com as circunstâncias judiciais do art. 59, CP.

2º passo: o juiz aplica as agravantes e atenuantes.

3º passo: o juiz aplica as causas de aumento e de diminuição.

 

Primeira fase (circunstâncias judiciais)

Na primeira fase, as chamadas circunstâncias judiciais analisadas pelo juiz são as seguintes:

a) culpabilidade, b) antecedentes, c) conduta social, d) personalidade do agente, e) motivos do crime, f) circunstâncias do crime, g) consequências do crime, h) comportamento da vítima.

 

Veja a redação do art. 59 do CP:

Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

(...)

 

O que é a culpabilidade de que trata o art. 59 do CP? Tem relação com a culpabilidade requisito do crime?

NÃO.

Para fins de dosimetria da pena, culpabilidade consiste na reprovação social que o crime e o autor do fato merecem. Ex: a culpabilidade (reprovabilidade) do crime de furto é intensa (elevada) se o agente, além de furtar os bens da casa, ainda urina no chão da residência ou nos móveis do proprietário. Neste caso, a pena-base poderia ser aumentada por causa disso.

Essa culpabilidade de que trata o art. 59 do CP não tem nada a ver com a culpabilidade como requisito do crime (imputabilidade, potencial consciência da ilicitude do fato e exigibilidade de conduta diversa).

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

O juiz, a pedido da autoridade policial, expediu mandado de busca e apreensão, a ser cumprido na residência de João, suspeito de ter roubado uma motocicleta.

A motocicleta não foi encontrada no local. Por outro lado, os policiais localizaram droga na residência.

João foi denunciado.

Em seu interrogatório, João afirmou que Francisco, seu vizinho, teria arrombado sua residência um dia antes e “plantado” a droga no local, com o propósito de lhe prejudicar.

As provas produzidas demonstraram que não houve arrombamento e que Francisco não tinha como ter colocado a droga na residência de João considerando que estava preso no dia dos fatos.

João foi então condenado por tráfico de drogas.

No momento da dosimetria da pena, o juiz aumentou a pena-base argumentando que o fato de João ter atribuído a autoria do crime a terceiro (no caso, Francisco) deveria ser utilizado como circunstância judicial negativa (culpabilidade elevada). Afirmou o magistrado:

“A culpabilidade do réu, considerada como grau de reprovabilidade de sua conduta, excedeu a normalidade para a espécie. Isso porque, não obstante ser surpreendido com a droga, o réu, de forma maliciosa, tentou se furtar à responsabilização penal, imputando falsamente a um terceiro (seu vizinho, Francisco) a responsabilidade por ter ‘plantado’ o entorpecente em sua casa na noite anterior ao cumprimento do mandado de busca e apreensão pela polícia. Ao assim agir, o acusado demonstrou total despreocupação com as consequências criminais que poderiam advir de sua ‘versão’ dos fatos (incriminação injusta de um terceiro). Essa atitude extrapolou os limites da garantia constitucional da ampla defesa”.

 

O réu recorreu alegando que não havia elementos suficientes para justificar a valoração negativa da culpabilidade.

 

O que decidiu o STJ? Agiu corretamente o magistrado? É possível a majoração da pena-base pelo fato de o réu ter mentido no interrogatório, imputando a prática do crime a terceiro?

NÃO.

Ainda que o falseamento da verdade eventualmente possa, a depender do caso e se cabalmente comprovado, justificar a responsabilização do réu por crime autônomo, isso não significa que essa prática, no interrogatório, autorize a exasperação da pena-base do acusado.

O conceito de culpabilidade, como circunstância judicial prevista o art. 59, do Código Penal, está relacionado com a reprovabilidade/censurabilidade da conduta do agente, de forma que deve o magistrado, quando da aplicação da pena-base, dimensioná-la pelo nível de intensidade da reprovação penal e expor sempre os fundamentos que lhe formaram o convencimento. Trata-se de aferir o grau de reprovabilidade do fato criminoso praticado pelo réu.

No caso, a culpabilidade do acusado foi valorada negativamente sob o argumento de que tentou se furtar à responsabilização penal, imputando falsamente a um terceiro (vizinho) a responsabilidade por ter plantado drogas em sua casa na noite anterior ao cumprimento do mandado de busca e apreensão pela polícia.

O fato de o réu atribuir falsamente crime a terceiro no interrogatório não é circunstância que diga respeito à sua culpabilidade. A culpabilidade, como vimos, está relacionada com o grau de reprovabilidade pessoal da conduta imputada ao acusado. O interrogatório constitui fato posterior à prática da infração penal, de modo que uma declaração dada no interrogatório não pode ser usada retroativamente para incrementar o juízo de reprovabilidade de um crime ocorrido no passado.

O exame da sanção penal cabível deve ser realizado, em regra, com base somente em elementos existentes até o momento da prática do crime imputado. As únicas exceções a essas regra são as seguintes:

a) o exame das consequências do delito, que, embora posteriores, representam mero desdobramento causal direto dele, e não novas e futuras condutas do acusado retroativamente valoradas;

b) o superveniente trânsito em julgado de condenação por fato praticado no passado, uma vez que representa a simples declaração jurídica da existência de evento pretérito.

 

Nem mesmo nas circunstâncias da personalidade ou da conduta social seria possível considerar desfavoravelmente a mentira do réu em interrogatório judicial. O paralelo feito por alguns doutrinadores com a confissão (se a confissão revela aspecto favorável da personalidade e atenua a pena, a mentira supostamente revelaria o oposto e poderia autorizar o seu aumento), embora interessante, é assimétrico e não permite que dele se extraia tal conclusão.

A confissão e diversos outros institutos que permitem o abrandamento da sanção (colaboração premiada, arrependimento posterior etc.) integram o chamado Direito penal premial e se justificam como ferramentas para valorizar e estimular a postura que o réu adota depois da prática do delito para mitigar seus efeitos ou facilitar a atividade estatal na sua persecução. Diferente, porém, é a análise sobre o que pode legitimar o incremento da sanção penal, a qual, nos termos dos mais basilares postulados penais e processuais penais, não pode ficar ao sabor de eventos futuros, incertos e não decorrentes diretamente, como desdobramento meramente causal, do fato imputado na denúncia (por exemplo, nos termos acima esclarecidos, as consequências do crime).

O que deve ser avaliado é se, ao praticar o fato criminoso imputado, a culpabilidade do réu foi exacerbada ou se, até aquele momento, ele demonstrava personalidade desvirtuada ou conduta social inadequada, o que não pode ser aferido retroativamente com base em fato diverso que só veio a ser realizado em tempo futuro, às vezes longos anos depois.

 

Em suma:

O fato de o réu mentir em interrogatório judicial, imputando prática criminosa a terceiro, não autorização a majoração da pena-base. 

STJ. 6ª Turma. HC 834.126-RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 5/9/2023 (Info 789).


segunda-feira, 27 de novembro de 2023

INFORMATIVO Comentado 1109 STF (completo e resumido)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível mais um INFORMATIVO COMENTADO.

þ Baixar versão COMPLETA:



 



þ Baixar versão RESUMIDA:



 



Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 1109 DO STF


Direito Constitucional

FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS (DIREITO À SAÚDE)

§  Não há dever legal de repor verbas recebidas de boa-fé para custear direitos fundamentais de natureza essencial.

 

COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS

§  É inconstitucional lei distrital (estadual ou municipal) que preveja medidas para que os cobradores de ônibus não percam seus empregos mesmo com a automação dos serviços.

 

ADVOCACIA PÚBLICA

§  Constituição Estadual pode exigir que o Procurador-Geral do Estado seja obrigatoriamente um membro da carreira.

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

PRECATÓRIOS

§  As regras estipuladas na EC 62/2009, quanto ao regime especial de precatórios, são aplicáveis aos já expedidos antes de sua promulgação.

 

PRECATÓRIOS

§  Poder Judiciário não pode aumentar hipóteses de sequestro de verbas para pagamento de precatório.

 

DIREITO PENAL

MARIA DA PENHA

§  O dano moral sofrido pela vítima é inerente aos crimes praticados contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, não exigindo instrução probatória específica, mas apenas oportunidade de manifestação do réu durante o curso da ação penal.

 

DIREITO TRIBUTÁRIO

PIS/COFINS

§  Não cabe pedido de devolução de valores ou de compensação tributária referente à exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e COFINS depois de 15/3/2017 se o fato gerador do tributo ocorreu antes dessa data.

 

DIREITO PREVIDENCIÁRIO

CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA

§  É razoável e proporcional a alíquota de 14% cobrada dos segurados de regime próprio de previdência e calculada com base na remuneração percebida.

 

CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA

§  Não ofende a razoabilidade ou o princípio tributário da vedação ao efeito confiscatório norma estadual que determine o incremento escalonado das alíquotas de contribuição previdenciária, de 11% a 14%.


Juiz pode autorizar a averbação premonitória em processo de conhecimento, com base no poder geral de cautela

Averbação premonitória

A averbação premonitória está prevista no art. 828 do CPC/2015, que diz:

Art. 828. O exequente poderá obter certidão de que a execução foi admitida pelo juiz, com identificação das partes e do valor da causa, para fins de averbação no registro de imóveis, de veículos ou de outros bens sujeitos a penhora, arresto ou indisponibilidade.

 

Esse artigo permite que o exequente faça a averbação do ajuizamento da execução em registro público de bens sujeitos à penhora ou arresto.

Explicando em simples palavras:

• O credor ingressa com a execução contra o devedor.

• Logo após o juiz admitir a execução, o credor pode obter uma certidão na secretaria da vara declarando que ele ajuizou uma execução contra Fulano (devedor) cobrando determinada quantia.

• Em seguida, o exequente vai até os registros públicos onde possa haver bens do devedor lá registrados (exs.: registro de imóveis, DETRAN, registro de embarcações na capitania dos portos) e pede para que seja feita a averbação (uma espécie de anotação/observação feita no registro) da existência dessa execução contra o proprietário daquele bem. Isso é chamado de averbação premonitória.

• Assim, se alguém for consultar a situação daquele bem, haverá uma averbação (anotação) de que existe uma execução contra o proprietário.

• Essa providência serve como um aviso ao devedor e um alerta para a pessoa que eventualmente quiser adquirir a coisa, já que eles, ao consultarem a situação do bem, saberão que existe uma execução contra o alienante e que aquele bem não pode ser vendido, sob pena de se caracterizar a fraude à execução.

• Se o devedor alienar ou onerar o bem após o credor ter feito a averbação, essa alienação ou oneração é ineficaz (não produz efeitos) porque haverá uma presunção absoluta de que ocorreu fraude à execução:

Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:

I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;

II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828 ;

III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude;

IV - quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;

V - nos demais casos expressos em lei.

 

Fraude à execução e citação

Regra geral: para que haja fraude à execução, é indispensável que tenha havido a citação válida do devedor.

Exceção: mesmo sem citação válida, haverá fraude à execução se, quando o devedor alienou ou onerou o bem, o credor já havia realizado a averbação da execução nos registros públicos (art. 828 do CPC). Presume-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens realizada após essa averbação (§ 4º do art. 828) (art. 792, II).

 

Quais são as funções da averbação premonitória?

A medida executiva prevista no art. 828 do CPC possui duas funções nítidas:

1) tornar pública a existência de demanda executiva em face do devedor, de forma a presumir de maneira absoluta que a alienação do bem, se o conduzir à insolvência, constituirá fraude à execução e tornará ineficaz o negócio jurídico praticado;

2) ao tornar pública a existência da demanda executiva, prevenir a dilapidação patrimonial que possa levar o devedor à insolvência e, assim, orientar outros credores quando negociarem com o devedor.

 

É necessária autorização judicial para que se faça a averbação premonitória? O juiz precisa autorizar ou determinar a medida?

NÃO. Não é necessária deliberação judicial sobre da expedição da certidão premonitória. A certidão é expedida diretamente pelo escrivão ou diretor de secretaria após a aceitação da ação de execução.

Com isso, tão logo seja admitida a execução pelo magistrado competente - única condição para a deflagração da posição jurídica -, surge para o credor exequente o direito potestativo de obter a certidão acerca da existência da demanda executiva para averbá-la no registro competente, não havendo necessidade de nenhuma cognição judicial acerca da existência ou não do direito do exequente.

Assim, preenchidos os requisitos legais, a simples aceitação da ação de execução já autoriza o desencadeamento do procedimento legal para a expedição da certidão premonitória para averbação na matrícula do imóvel de propriedade do devedor, no registro de veículos ou de outros bens sujeitos a penhora, arresto ou indisponibilidade.

No mesmo sentido:

Enunciado 104-Jornada STJ/CJF: O fornecimento de certidão para fins de averbação premonitória (art. 799, IX, do CPC) independe de prévio despacho ou autorização do juiz.

 

Enunciado 130/FPPC: A obtenção da certidão prevista no art. 844 independe de decisão judicial.

 

Por que premonitória?

A origem do nome “premonitória” está relacionada ao termo “premonição”, que significa o ato de prever ou antecipar algo que está por vir. No contexto da averbação premonitória, o nome é utilizado para indicar que essa medida tem o propósito de antecipar a informação sobre uma ação judicial ou constrição judicial que possa afetar a propriedade de um bem. Assim, a averbação premonitória serve como uma forma de prevenção e alerta aos terceiros interessados, permitindo que tenham conhecimento prévio da situação do bem antes de realizar qualquer negócio envolvendo-o.

 

Leia o restante do art. 828 do CPC, que tem muitas informações importantes sobre o tema:

Art. 828 (...)

§ 1º No prazo de 10 (dez) dias de sua concretização, o exequente deverá comunicar ao juízo as averbações efetivadas.

§ 2º Formalizada penhora sobre bens suficientes para cobrir o valor da dívida, o exequente providenciará, no prazo de 10 (dez) dias, o cancelamento das averbações relativas àqueles não penhorados.

§ 3º O juiz determinará o cancelamento das averbações, de ofício ou a requerimento, caso o exequente não o faça no prazo.

§ 4º Presume-se em fraude à execução a alienação ou a oneração de bens efetuada após a averbação.

§ 5º O exequente que promover averbação manifestamente indevida ou não cancelar as averbações nos termos do § 2º indenizará a parte contrária, processando-se o incidente em autos apartados.

 

A averbação premonitória encontra-se disciplinada no art. 828 do CPC, que se encontra inserido no capítulo que trata sobre execução por quantia certa. Além disso, o dispositivo fala expressamente em processo de execução. Diante disso, indaga-se: é possível que a averbação premonitória seja feita também utilizada no processo de conhecimento?

SIM. No entanto, neste caso, será necessária determinação judicial.

O juiz pode deferir tutela provisória de urgência em processo de conhecimento com a finalidade de averbar a existência da demanda na matrícula de imóvel pertencente aos demandados, de forma semelhante à averbação premonitória prevista no art. 828 do CPC para as ações de execução.

Essa decisão do magistrado deverá ser proferida com base nos requisitos previstos no art. 300 do CPC, ou seja, desde que presentes:

a) a probabilidade do direito (fumus boni iuris); e

b) o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (periculum in mora).

 

Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.

 

Mas qual é o fundamento legal para o deferimento dessa medida (averbação premonitória em processo de conhecimento)?

O poder geral de cautela do juiz.

O CPC prevê, de maneira expressa, o poder geral de cautela, na parte final do art. 301:

Art. 301. A tutela de urgência de natureza cautelar pode ser efetivada mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito.

 

O poder geral de cautela assegura ao magistrado o deferimento de todas as medidas que se revelarem adequadas ao asseguramento da utilidade da tutela principal, ainda que sejam coincidentes com aquelas previstas especialmente para a execução.

Embora o art. 301 do CPC preveja algumas medidas cautelares (típicas ou nominadas no sistema processual de 1973), a cláusula geral constante ao final no dispositivo legal (“qualquer outra medida idônea para asseguração do direito”) autoriza que sejam adotadas quaisquer medidas com a finalidade precípua de garantia da eficácia do processo e da tutela jurisdicional a ser concedida.

Esse poder geral de cautela destina-se a dotar o magistrado de instrumentos suficientes e adequados a garantir a eficácia do processo e, assim, assegurar a utilidade da tutela de mérito a ser ao final concedida.

Desse modo, a base legal para o deferimento da averbação premonitória aos processos de conhecimento não é o art. 828, mas sim os arts. 300 e 301 do CPC, em especial o poder geral de cautela.

Confira a lição de Luiz Guilherme Marinoni, Sergio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero sobre o tema:

“O objetivo do art. 828, CPC, é manter atrelado à tutela jurisdicional o patrimônio do demandado, de modo que seja possível alcançá-lo para eventual atuação da tutela jurisdicional em favor do demandante (arts. 790 e 792, II, CPC). Assim, embora o art. 828, CPC, aluda apenas à admissão de execução como suscetível de averbação, contingência que, em um primeiro momento, parece cifrar essa possibilidade tão somente à execução de títulos extrajudiciais (art. 784, CPC), certo é que também é possível a averbação de requerimento de cumprimento de sentença condenatória (art. 523, CPC), tendo em conta que aí o patrimônio responde igualmente pela satisfação do exequente. Na realidade, a compreensão da ação como direito fundamental à efetiva tutela do direito impõe que a possibilidade de averbação da petição inicial no registro competente se estenda para toda e qualquer demanda capaz de reduzir o demandado ao estado de insolvência. A razão é simples: não há possibilidade de execução frutífera sem que se mantenha íntegro o patrimônio do executado, atrelando-o à finalidade expropriatória. O próprio art. 828, CPC, a propósito, autoriza a interpretação proposta, na medida em que possibilita a averbação à vista da propositura de arresto ou indisponibilidade, que, como é sabido, pode ocorrer a partir da caracterização da verossimilhança do direito alegado e da urgência em prover, não estando atrelados, portanto, à possibilidade de imediata execução. O arresto e a indisponibilidade estão vinculados à futura e eventual execução." (Código de Processo Civil Comentado. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 908).

 

Caso concreto julgado pelo STJ (com adaptações):

A incorporadora Alfa queria construir um condomínio de apartamentos.

A empresa Beta firmou acordo com a Alfa para participar do negócio.

A Beta investiu um valor e, em troca, teria direito a um percentual dos lucros decorrentes da venda dos apartamentos.

Ocorre que, após três anos, o empreendimento ainda não havia começado a ser construído.

Diante disso, a Beta ajuizou ação contra a Alfa buscando a devolução do valor investido.

Durante o processo, a Beta requereu ao juízo a expedição de certidão narrando a existência da ação e que ela fosse averbada na matrícula do imóvel da Alfa no qual seria construído o condomínio.

A Beta narrou que a intenção era alertar potenciais compradores sobre o litígio em curso.

O juiz deferiu o pedido argumentando que o imóvel em cuja matrícula se averbou a certidão expedida seria o único de propriedade da Alfa.

 

Em suma:

Embora a previsão da averbação premonitória seja ordinariamente reservada à execução, pode o magistrado, com base no poder geral de cautela e observados os requisitos previstos no art. 300 do CPC, deferir tutela provisória de urgência de natureza cautelar no processo de conhecimento, com idêntico conteúdo à medida prevista para a demanda executiva (art. 829 do CPC).

STJ. 4ª Turma. REsp 1.847.105-SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 12/9/2023 (Info 789).


domingo, 26 de novembro de 2023

Revisão para o concurso de Juiz de Direito do TJPR

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível a Revisão para o concurso de Juiz de Direito do TJPR.

Bons estudos.



Em uma execução proposta contra a empresa A, será possível redirecionar a execução para penhorar bens da empresa B (integrante do mesmo grupo econômico), mesmo sem a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João, consumidor, ajuizou ação contra a empresa Alfa Ltda, fornecedora de serviços.

O juiz condenou a Alfa a pagar R$ 100 mil em favor de João. Houve o trânsito em julgado.

João iniciou o cumprimento de sentença contra a Alfa.

Não se conseguiu penhorar nenhum bem da empresa Alfa.

Diante disso, João pediu o redirecionamento do cumprimento de sentença contra a empresa Beta Ltda, que integra o mesmo grupo econômico da empresa Alfa, havendo, inclusive, identidade de sócios.

João afirmou que esse redirecionamento da execução seria possível, mesmo sem desconsideração da personalidade jurídica, com base no § 2º do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 28 (...)

§ 2º As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

 

O pedido de João deve ser acolhido?

NÃO. Isso porque é necessária a prévia instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica para se alcançar o patrimônio de sociedade integrante do mesmo grupo econômico da executada.

Vamos entender com calma.

O CDC prevê, no art. 28, § 2º, acima transcrito, a responsabilidade subsidiária das obrigações consumeristas entre as sociedades integrantes do mesmo grupo societário.

Essa previsão legal se justifica porque “a confusão patrimonial, em maior ou menor grau, é inerente a todo grupo econômico. O interesse individual de uma sociedade é sempre subordinado ao interesse geral do complexo de empresas agrupadas. Com isto, são praticamente inevitáveis as transferências de ativo de uma sociedade a outra, ou uma distribuição proporcional de custos e prejuízos entre todas elas" (COMPARATO, Fábio Konder; FILHO, Calixto Salomão. O poder de controle da sociedade anônima. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 428).

Vale ressaltar, contudo, que, mesmo existindo, no direito material, a previsão dessa responsabilidade civil subsidiária, é indispensável que sejam respeitadas as normas processuais, garantidoras do contraditório e da ampla defesa. Uma dessas normas processuais que precisa ser garantida é o incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Numa interpretação sistemática do Código de Defesa do Consumidor, é possível, inclusive, constatar que a previsão de responsabilidade civil subsidiária das sociedades integrantes de um mesmo grupo encontra-se inserida no § 2º do art. 28, ou seja, na Seção V, que trata da desconsideração da personalidade jurídica:

SEÇÃO V

Da Desconsideração da Personalidade Jurídica

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

(...)

§ 2º As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

 

Dessa forma, para que uma empresa, pertencente ao mesmo grupo econômico da executada, sofra constrição patrimonial, é necessária prévia observância dos procedimentos específicos da desconsideração da personalidade jurídica, que pode ser instaurada, inclusive, na fase de cumprimento de sentença ou na execução fundada em título executivo extrajudicial, nos termos do art. 134 do CPC:

Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.

 

Ressalte-se que a instauração do incidente de desconsideração é norma processual de observância obrigatória, como forma de garantir o devido processo legal.

Nesse mesmo sentido, a 3ª Turma do STJ já se manifestou quanto à impossibilidade de mero redirecionamento do cumprimento de sentença àquele que não integrou a lide na fase de conhecimento:

Uma vez formado o título executivo judicial contra uma ou algumas das sociedades, poderão responder todas as demais componentes do grupo, desde que presentes os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica, na forma do art. 28, § 2º, do CDC, sendo inviável o mero redirecionamento da execução contra aquela que não participou da fase de conhecimento.

STJ. 3ª Turma. AgInt no REsp 1.875.845/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 16/5/2022.

 

Em suma:

Uma empresa do mesmo grupo econômico da parte executada só pode ter seus bens bloqueados se o incidente de desconsideração da personalidade jurídica for previamente instaurado, não sendo suficiente mero redirecionamento do cumprimento de sentença contra quem não integrou a lide na fase de conhecimento. 

STJ. 4ª Turma. REsp 1.864.620-SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 12/9/2023 (Info 789).


Revisão para o concurso de Delegado da Polícia Civil de São Paulo (PC/SP)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível a revisão para o concurso de Delegado da Polícia Civil de São Paulo (PC/SP).

Boa prova.



Revisão para o concurso de Defensor Público do Estado do Espírito Santo

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível a Revisão para o concurso de Defensor Público do Estado do Espírito Santo.

Bons estudos.



Revisão para o concurso de Promotor de Justiça do Rio Grande do Sul (MP/RS)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível a Revisão para o concurso de Promotor de Justiça do Rio Grande do Sul (MP/RS).

Bons estudos.



sábado, 25 de novembro de 2023

A ausência de registro do contrato que serve de título à propriedade fiduciária no Registro de Imóveis retira a validade do ajuste?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João celebrou, com a incorporadora, contrato de compra e venda de um imóvel, com cláusula de alienação fiduciária em garantia.

O ajuste previa o pagamento em 120 prestações mensais.

Após 60 prestações pagas, João ajuizou ação de resolução do contrato contra a incorporadora alegando que não tinha mais condições de continuar pagando as parcelas restantes.

Na ação, o autor pediu a dissolução do vínculo obrigacional, afirmando que entregaria o imóvel e que, como consequência, queria receber de volta 90% das prestações pagas. Afirmou que o vendedor poderia reter 10% dos valores já recebidos a título de despesas que eventualmente tenha sido, nos termos do art. 53 do CDC:

Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.

 

A alienante alegou que o pedido do autor não poderia ser acolhido e que, no presente caso, o que aconteceu foi uma quebra antecipada do contrato por parte do comprador.

De acordo com a quebra antecipada do contrato (chamada de antecipatory breach, na common law), há inadimplemento, mesmo antes do vencimento, quando o devedor pratica atos abertamente contrários ao cumprimento do contrato.

Tendo havido inadimplemento por parte do comprador, é possível o desfazimento do contrato, no entanto, a devolução dos valores já pagos não se dará na forma do art. 53 do CDC, mas sim segundo o procedimento estabelecido nos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514/97.

Em suma, a construtora alegou que houve um contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária. Logo, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na Lei nº 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.

 

O juiz acolheu os argumentos da alienante?

NÃO.

O juiz disse que, no caso concreto, houve uma falta de cuidado que mudou todo o cenário: o contrato de compra e venda não foi levado a registro no cartório do registro de imóveis.

No caso de propriedade fiduciária de bem imóvel, regida pela Lei nº 9.514/97, a garantia somente se constitui com o registro do contrato que lhe serve de título no registro imobiliário (“cartório de registro de imóveis”) do local onde se situa o bem. Nesse sentido, veja o que diz o art. 23 da Lei nº 9.514/97:

Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título.

Parágrafo único. Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel.

 

O registro possui natureza constitutiva da propriedade fiduciária, assim como ocorre em relação aos demais direitos reais sobre imóveis

Dessa maneira, sem o registro do contrato no competente Registro de Imóveis, há simples crédito, situado no âmbito obrigacional, sem qualquer garantia real nem propriedade resolúvel transferida ao credor.

Em suma, para o juiz, a ausência de registro do contrato que serve de título à propriedade fiduciária no Registro de Imóveis retira a validade do ajuste entre os contratantes e, portanto, impede o credor fiduciário de promover a alienação extrajudicial do bem.

 

O STJ concordou com a conclusão do magistrado? A ausência de registro do contrato que serve de título à propriedade fiduciária no Registro de Imóveis retira a validade do ajuste entre os contratantes?

NÃO.

De fato, o registro do contrato no competente Registro de Imóveis é imprescindível à constituição da propriedade fiduciária de coisa imóvel, nos termos do art. 23 da Lei nº 9.514/97:

Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título.

Parágrafo único. Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel.

 

Nesse ponto, o magistrado está correto.

Ocorre que a ausência do registro do contrato não retira a validade e a eficácia das cláusulas contratuais que foram livremente ajustadas entre as partes. Uma dessas cláusulas é justamente a que autoriza a alienação extrajudicial do imóvel em caso de inadimplência.

O registro é direito potestativo do credor, a fim de que se concretize a transferência da propriedade resolúvel para seu nome, mediante o pagamento do tributo e custas devidos. Pode ser feita a qualquer momento durante a vigência da relação contratual.

Por se tratar de contrato bilateral, com a assunção de obrigações recíprocas, deve ser reconhecido o direito de o credor fiduciário utilizar os meios contratuais de execução da garantia em caso de inadimplência do devedor fiduciante, mesmo na hipótese em que a avença não é levada a registro.

Vale ressaltar que o reconhecimento da validade e da eficácia do contrato de alienação fiduciária, mesmo sem o registro no Ofício de Registro de Imóveis, opera-se em favor de ambas as partes da relação contratual. É uma garantia para ambas as partes. Assim, mesmo na ausência de registro, o devedor fiduciante tem o direito de não ter o imóvel objeto da garantia alienado fora das hipóteses legalmente admitidas e de obter o termo de quitação após o pagamento integral da dívida e de seus encargos, com vistas à consolidação da propriedade definitiva do imóvel. Se assim não fosse, o credor fiduciário poderia requerer o distrato mesmo sem o inadimplemento do devedor fiduciário, gerando enorme insegurança jurídica para este último.

 

Isso significa que a alienante poderá fazer a alienação extrajudicial do imóvel mesmo sem o registro do contrato?

NÃO. Não significa isso. O registro, como vimos acima, é desnecessário para conferir eficácia ao contrato de alienação fiduciária entre devedor fiduciante e credor fiduciário. Assim, mesmo sem o registro, o contrato firmado entre João e a incorporadora é válido e eficaz.

No entanto, para dar início à alienação extrajudicial do imóvel é, sim, imprescindível a efetivação do registro do contrato. Isso porque a constituição do devedor em mora e a eventual purgação desta se processa perante o Oficial de Registro de Imóveis, nos moldes do art. 26 da Lei nº 9.514/97:

Art. 26. Vencida e não paga a dívida, no todo ou em parte, e constituídos em mora o devedor e, se for o caso, o terceiro fiduciante, será consolidada, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário.

§ 1º Para fins do disposto neste artigo, o devedor e, se for o caso, o terceiro fiduciante serão intimados, a requerimento do fiduciário, pelo oficial do registro de imóveis competente, a satisfazer, no prazo de 15 (quinze) dias, a prestação vencida e aquelas que vencerem até a data do pagamento, os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive os tributos, as contribuições condominiais imputáveis ao imóvel e as despesas de cobrança e de intimação.

(...)

 

Voltando, portanto, para o caso concreto:

O juiz deveria ter julgado improcedente o pedido de João.

Mesmo sem registro, as cláusulas contratuais são válidas.

A ausência de registro do contrato não confere ao devedor fiduciante (no caso, João) o direito de promover a rescisão da avença por meio diverso daquele contratualmente previsto.

Admitir a rescisão do contrato de alienação fiduciária de bem imóvel com base nas normas de proteção ao direito do consumidor, ou seja, com a devolução da maior parte dos valores pagos e a retenção de um pequeno percentual a título de ressarcimento de eventuais despesas, seria desvirtuar por completo o instituto, que certamente cairia em desuso, em prejuízo dos próprios consumidores de imóveis, que teriam maior dificuldade de acesso ao crédito e juros mais elevados.

Vale ressaltar, contudo, que, para a incorporadora promover a alienação extrajudicial do bem, é indispensável que ela supra a sua omissão e faça o registro do contrato no registro de imóveis. Somente com essa providência ela poderá fazer a constituição do devedor em mora para depois alienar extrajudicialmente o imóvel.

 

Em suma:

A ausência de registro do contrato que serve de título à propriedade fiduciária no Registro de Imóveis não retira a validade do ajuste entre os contratantes.  Ainda que o registro do contrato no competente Registro de Imóveis seja imprescindível à constituição da propriedade fiduciária de coisa imóvel, nos termos do art. 23 da Lei nº 9.514/97, sua ausência não retira a validade e a eficácia dos termos livre e previamente ajustados entre os contratantes, inclusive da cláusula que autoriza a alienação extrajudicial do imóvel em caso de inadimplência.

Vale ressaltar, contudo, que, para dar início à alienação extrajudicial do imóvel é, sim, imprescindível a efetivação do registro do contrato. Isso porque a constituição do devedor em mora e a eventual purgação desta se processa perante o Oficial de Registro de Imóveis, nos moldes do art. 26 da Lei nº 9.514/97.

STJ. 2ª Seção. EREsp 1.866.844-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 27/9/2023 (Info 789).

 

Outras informações extraídas do voto-vista da Min. Isabel Galloti:

• A ausência do registro do contrato de alienação fiduciária no competente Registro de Imóveis não lhe retira a eficácia, ao menos entre os contratantes, servindo tal providência apenas para que a avença produza efeitos perante terceiros.

• Ao não promover o registro imobiliário do contrato, o credor assume o risco, por exemplo, de o devedor alienar o bem a terceiro, ignorante do contrato, e ao qual o pacto não poderá ser oposto, precisamente em razão da falta de registro.

• A propriedade de bem imóvel somente se transfere, entre vivos, mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis, nos termos do art. 1.245 do Código Civil. Nem por isso se pode dizer que a validade e a eficácia do negócio em tais hipóteses fica condicionada ao registro. O registro serve apenas para que o direito possa surtir efeitos perante terceiros.

A ausência de registro do contrato de promessa de compra e venda de imóvel, ao menos em relação aos contratantes, não lhe retira as características que lhe são inerentes, a exemplo da impossibilidade de retratação. O registro serve apenas ao propósito de conferir direito real oponível a terceiros (art. 25 da Lei nº 6.766/79).

• Não se pretende afastar a aplicação do art. 23 da Lei nº 9.517/97. Referido dispositivo, entretanto, não fixa o prazo para o registro do contrato de alienação fiduciária. Prevê que: “(...) constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título”. Ou seja: o registro é necessário para a consolidação da propriedade em nome da credora fiduciária, apesar de não ser exigência para que o contrato de alienação fiduciária tenha validade e eficácia entre as partes.

• Isso significa que o registro do contrato de alienação fiduciária é imprescindível para o início do procedimento que poderá levar à alienação extrajudicial do imóvel caso não haja purgação da mora. Na ausência do registro, como no caso dos autos, caberá ao credor fiduciário registrar o contrato antes de dar início ao procedimento de alienação extrajudicial.

• Portanto, depreende-se que:

a) a ausência de registro do contrato de alienação fiduciária não confere ao recorrido o direito de promover resilição, resolução ou rescisão por meio diverso daquele contratado; e

b) configurado o inadimplemento do recorrido, o credor fiduciário, ora recorrente, após a efetivação do registro, promoverá o procedimento de execução extrajudicial perante o Registro de Imóveis, o qual, caso não haja a tempestiva purgação da mora, culminará com a alienação do bem em leilão e entrega ao recorrido do valor remanescente, abatidos os valores da dívida e as demais despesas comprovadas, conforme previsto nos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514/97.

 

DOD Plus – julgados correlatos

O entendimento acima foi proferido pela 2ª Seção do STJ em embargos de divergência. Com isso, ficou parcialmente superado o julgado abaixo. Faça essa anotação em seus materiais de estudo:

No regime especial da Lei 9.514/97, o registro do contrato tem natureza constitutiva, sem o qual a propriedade fiduciária e a garantia dela decorrente não se perfazem.

Na ausência de registro do contrato que serve de título à propriedade fiduciária no competente Registro de Imóveis, como determina o art. 23 da Lei nº 9.514/97, não é exigível do adquirente que se submeta ao procedimento de venda extrajudicial do bem para só então receber eventuais diferenças do vendedor.

Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título.

STJ. 3ª Turma. REsp 1835598-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 09/02/2021 (Info 685).


Dizer o Direito!