sábado, 21 de outubro de 2023
Sem autorização judicial, é ilícita a solicitação de relatórios de inteligência financeira feita pela autoridade policial ao COAF (atual UIF)
EXPLICAÇÃO DO TEMA 990 STF
UIF
Unidade de Inteligência Financeira (UIF) é...
- um órgão vinculado administrativamente ao Banco Central
- mas com autonomia técnica e operacional
- sendo responsável por produzir e gerir informações de
inteligência financeira que sirvam para prevenir e combater crimes como lavagem
de lavagem de dinheiro, financiamento de terrorismo, financiamento da
proliferação de armas de destruição em massa etc.
- sendo também responsável por estabelecer uma interlocução
institucional com órgãos e entidades nacionais, estrangeiros e internacionais
que tenham conexão com a matéria.
Assim, a Unidade de Inteligência é um grande banco de dados que
recebe informações dos bancos, das seguradoras, dos cartórios de registro de imóveis,
de joalherias. Em seguida, cruza dados e produz relatórios que poderão ser
encaminhados à Receita Federal e aos órgãos de persecução penal em caso de indícios
de ilícitos tributários ou de infrações penais.
UIF ou COAF?
Conforme explica o site oficial do COAF:
“O Conselho de Controle de Atividades
Financeiras (Coaf) é a Unidade de Inteligência Financeira (UIF) do Brasil, a
autoridade central do sistema de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao
financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa
(PLD/FTP), especialmente no recebimento, análise e disseminação de informações
de inteligência financeira. Criado pela Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998
(Lei de Lavagem de Dinheiro), e reestruturado pela Lei nº 13.974, de 7 de
janeiro de 2020, o Coaf é vinculado administrativamente ao Banco Central do
Brasil (BCB), dotado de autonomia técnica e operacional, com atuação em todo o
território nacional.
(...)
O Coaf é constituído no modelo
administrativo. Nesse modelo, a UIF é uma autoridade administrativa, central e
independente, que recebe e analisa informações recebidas do setor financeiro e
de outros setores obrigados e dá conhecimento sobre os fatos suspeitos
identificados às autoridades competentes para aplicação da lei. Em outras
palavras, a UIF realiza trabalhos de inteligência financeira, não sendo de sua
competência, por exemplo, realizar investigações, bloquear valores, deter
pessoas, realizar interrogatórios e outras atividades dessa natureza. O
conselho também tem a competência de disciplinar e de aplicar sanções
administrativas no tocante a sujeitos obrigados contemplados no art. 9º da Lei
nº 9.613, de 1998, para os quais não haja órgão próprio fiscalizador ou
regulador. Nesses casos, cabe ao Coaf identificar as pessoas abrangidas e
definir os meios e critérios para envio de comunicações, bem como a expedição
das instruções para a identificação de clientes e manutenção de registros de
transações, além da aplicação de penas administrativas previstas na Lei.”
Noções gerais sobre a UIF
A UIF recebe informações dos bancos, seguradoras, cartórios,
joalherias, cruza os dados e produz relatórios de inteligência. Vale ressaltar
que a UIF não checa a veracidade das informações nem abre investigações.
A Lei nº 9.613/98 estabelece as hipóteses em que a UIF deve ser
obrigatoriamente comunicada. São as que saem do normal do sistema financeiro,
do sistema bancário.
A Unidade produz relatórios, informações, não só para estabelecer
na via administrativa e legislativa novos mecanismos de prevenção, mas também
para punir quem eventualmente estiver praticando atividades ilícitas.
A UIF não pode quebrar o sigilo bancário e fiscal por conta
própria. Pode trabalhar a informação, produzir relatório, identificar a
irregularidade e mandar para os demais órgãos, como a Receita a o Parquet.
Relatório de inteligência financeira da UIF
A Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 12.683/98) determina, em seu
art. 11, que as instituições financeiras e demais pessoas físicas e jurídicas
que trabalhem com recursos financeiros, moeda estrangeira, títulos mobiliários
etc. (art. 9º) comuniquem ao COAF/UIF qualquer movimentação financeira “suspeita”
(“atípica”), ou seja, que ultrapasse determinado valor que é fixado pela
autoridade administrativa.
Ex: se uma pessoa faz um depósito ou um saque acima de determinado
valor no banco, essa informação (com o nome do indivíduo) é informada à UIF.
Ex2: se uma pessoa compra uma pedra preciosa ou uma joia acima de
determinado valor em dinheiro, a joalheria é obrigada a informar essa
circunstância à UIF.
A partir disso, a UIF analisa a comunicação recebida com o
objetivo de identificar se existe nela algum indício de lavagem de dinheiro, de
financiamento do terrorismo ou de outros crimes. Caso seja identifica algum
indício de crime, é elaborado um Relatório de Inteligência Financeira (RIF) que
é encaminhado às autoridades competentes (Receita Federal, Polícia Federal,
Ministério Público Federal).
Segundo explica a UIF, essa análise é realizada por meio de uma
metodologia que utiliza critérios objetivos, sendo utilizada a tecnologia de machine
learning. Assim, o que determina se a operação financeira realizada será fichada
em relatório é a combinação de fatores que compõem a classificação de risco e
prioridade, que é realizada por um software de inteligência artificial.
Depois que o RIF é concluído, ele ainda passa por instâncias
internas individuais e colegiadas antes que seja autorizada sua difusão para as
autoridades competentes.
Sendo aprovado por essas instâncias internas da UIF, o relatório
(RIF) é encaminhado à Receita Federal, Polícia Federal ou Ministério Público
Federal, conforme seja o caso.
Vale ressaltar que a UIF não faz investigações. Ela apenas coleta,
analisa e cruza dados, produzindo um relatório de inteligência (uma espécie de
“alerta”) que será encaminhado aos órgãos de persecução penal. Essa atividade,
contudo, repito, não é de investigação de infrações penais.
A UIF pode, sem autorização judicial, compartilhar com a Polícia e
o Ministério Público os relatórios de inteligência financeira para que esses
órgãos utilizem tais dados em investigações ou processos criminais?
SIM. O STF fixou a tese de
que também é constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência
financeira da UIF com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a
obrigatoriedade de prévia autorização judicial.
STF. Plenário. RE 1055941/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em
4/12/2019 (repercussão geral – Tema 990) (Info 962).
Não há inconstitucionalidade na atuação da UIF
A atuação da UIF, de ofício ou a pedido, é apenas nos limites
legais. Se um órgão pedir informação, a UIF deve devolver a resposta nos exatos
limites que poderia realizar se fosse espontaneamente. Não pode extrapolar e
sequer tem poderes para isso.
A UIF irá buscar no banco de dados, que é preexistente e renovado
diariamente, verificar e informar o que possui.
Dessa maneira, o ministro vislumbrou inexistir inconstitucionalidade
ou ilegalidade na atuação da UIF, seja espontânea, seja em face de eventual
pedido.
Qual é a natureza jurídica do relatório de inteligência da UIF?
Tem natureza jurídica equivalente à de “peças de informação”.
“O Código de Processo Penal, genericamente, dá o nome de peças de
informações a todo e qualquer conjunto indiciário resultante das atividades
desenvolvidas fora do inquérito policial, a exemplo de um procedimento
investigatório criminal presidido pelo próprio órgão ministerial, um relatório
de comissão parlamentar de inquérito, etc.” (LIMA, Renato Brasileiro. Código
de Processo Penal comentado. 2ª ed., Salvador: Juspodivm, 2017, p. 162).
O que o membro do Ministério Público faz ao receber um relatório
de inteligência?
O membro do MP, ao receber um relatório de inteligência, poderá
adotar três providências principais:
1) entender que já existem indícios suficientes de autoria e
materialidade e oferecer denúncia;
2) instaurar procedimento de investigação criminal (PIC) ou
requisitar inquérito policial para complementar as informações trazidas pelo
relatório;
3) pedir o arquivamento dessas peças de informação, caso repute
que o relatório de inteligência não contém indícios de crimes, nos termos do art.
28 do CPP:
Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de
apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de
quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as
razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao
procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do
Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao
qual só então estará o juiz obrigado a atender.
Assim, o relatório de inteligência que é enviado ao Ministério
Público deve receber o mesmo tratamento de qualquer peça de informação. Do
contrário, o controle jurisdicional do sistema acusatório previsto no CPP estaria
sendo ferido.
Qual é o valor probante do relatório de inteligência financeira?
O STF decidiu não fixar, neste julgamento, o valor probante do
relatório de inteligência financeira, ou seja, se seria possível condenar
apenas com base nele ou se ele seria apenas um meio de obtenção de provas.
Conforme explicou o Min. Alexandre de Moraes, em seu voto:
“(...) não seria o caso de fixarmos, desde já, taxativamente o
valor probante dos relatórios de inteligência. Não me parece possível afirmar
taxativamente que os relatórios de inteligência seriam somente meio de obtenção
de prova, porque, nas informações e dados, pode haver prova documental que foi
enviada à UIF e que, deverá ser livremente valorada pelo magistrado, de acordo
com sua convicção. Faço, portanto, essa ressalva.”
Em suma, as teses fixadas pelo STF a respeito do tema foram as
seguintes:
1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de
inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da
Receita Federal do Brasil (RFB), que define o lançamento do tributo, com os
órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia
autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em
procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle
jurisdicional.
2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item
anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com
garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de
instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.
STF. Plenário. RE 1055941/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em
4/12/2019 (repercussão geral – Tema 990) (Info 962).
EXPLICAÇÃO DO JULGADO
Imagine a seguinte situação
adaptada:
Foi instaurado inquérito policial para
apurar possível crime de lavagem de dinheiro praticado pelos responsáveis pela empresa
Alfa, no montante de R$ 600 milhões.
A Autoridade Policial, sem prévia
autorização judicial, requisitou diretamente ao Sistema Eletrônico de
Intercâmbio do COAF (atual UIF) relatórios de inteligência financeira (RIFs).
Com base nas informações contidas
nesses relatórios, a autoridade policial representou pela decretação de busca e
apreensão em diversos endereços das pessoas suspeitas.
Assim, o Delegado de Polícia, ao
representar pelo deferimento de medida cautelar de busca e apreensão, anexou,
para fundamentar sua representação, dois relatórios do COAF que ele havia
obtido diretamente.
O juiz deferiu os pedidos e as buscas
foram realizadas.
A defesa de Regina, diretora da
empresa e uma das investigadas, impetrou habeas corpus alegando que a autoridade
policial não poderia ter, diretamente, requisitado os RIFs ao COAF, sendo
necessária prévia autorização judicial, já que esta situação não estava
abarcada pelo Tema 990, decidido pelo STF.
O Tribunal de Justiça não concordou
com a tese da defesa e afirmou que a situação aqui enfrentada é similar ao que
o STF decidiu no Tema 990.
Irresignada, a defesa interpôs recurso
em habeas corpus ao STJ.
O STJ concordou com os argumentos da
defesa?
SIM.
Como vimos acima, o STF, ao
julgar o RE 1.055.941/SP (Tema 990) fixou a tese no sentido de que é válido o compartilhamento
dos RIFs (relatórios de inteligência financeira) com a Polícia e o MP para fins
criminais sem prévia autorização judicial. Veja a redação literal acima.
Assim, constatada pela UIF alguma
possível ilegalidade, deve ser feita a comunicação para os órgãos de persecução
penal.
No caso concreto, contudo, foi a
autoridade policial que requisitou diretamente ao COAF/UIF o envio dos
relatórios de inteligência financeira sem autorização judicial, situação,
portanto, diversa da qual foi decidida pelo STF.
• o STF decidiu que a UIF pode
compartilhar os RIFs com os órgãos de persecução penal mesmo sem autorização
judicial;
• o STF não decidiu que os órgãos
de persecução penal podem requisitar diretamente os RIFs da UIF sem autorização
judicial.
Acerca do tema, a Terceira Seção
do STJ analisou situação similar, ao julgar o RHC 83.233/SP, no qual o
Ministério Público requisitou diretamente à Receita Federal do Brasil o envio
da declaração de imposto de renda de determinadas pessoas, o que foi
considerado ilícito pelo STJ:
Ao julgar o Tema 990, o STF afirmou que é legítimo que a Receita
Federal compartilhe o procedimento fiscalizatório que ela realizou para
apuração do débito tributário com os órgãos de persecução penal para fins
criminais (Polícia Federal, Ministério Público etc.), não sendo necessário,
para isso, prévia autorização judicial (STF. Plenário. RE 1.055.941/SP, Rel. Min.
Dias Toffoli, julgado em 4/12/2019).
Por outro lado, neste julgado, o STF não autorizou que o
Ministério Público faça a requisição direta (sem autorização judicial) de dados
fiscais, para fins criminais. Ex: requisição da declaração de imposto de renda.
A requisição ou o requerimento, de forma direta, pelo órgão da
acusação à Receita Federal, com o fim de coletar indícios para subsidiar
investigação ou instrução criminal, além de não ter sido satisfatoriamente
enfrentada no julgamento do RE 1.055.941/SP, não se encontra abarcada pela tese
firmada no âmbito da repercussão geral em questão.
Em um estado de direito não é possível se admitir que órgãos de
investigação, em procedimentos informais e não urgentes, solicitem informações
detalhadas sobre indivíduos ou empresas, informações essas constitucionalmente
protegidas, salvo autorização judicial.
Uma coisa é órgão de fiscalização financeira, dentro de suas
atribuições, identificar indícios de crime e comunicar suas suspeitas aos
órgãos de investigação para que, dentro da legalidade e de suas atribuições,
investiguem a procedência de tais suspeitas. Outra, é o órgão de investigação,
a polícia ou o Ministério Público, sem qualquer tipo de controle, alegando a
possibilidade de ocorrência de algum crime, solicitar ao COAF ou à Receita
Federal informações financeiras sigilosas detalhadas sobre determinada pessoa,
física ou jurídica, sem a prévia autorização judicial.
STJ. 3ª Seção. RHC 83.233-MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior,
julgado em 09/02/2022 (Info 724).
Dessa forma, constata-se a
ilicitude dos relatórios de inteligência financeira solicitados diretamente
pela autoridade policial ao COAF.
Em suma:
STJ. 6ª
Turma. RHC 147.707-PA, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em
15/8/2023 (Info 784).