Imagine a seguinte situação
hipotética:
Lucas, 5 anos de idade,
representado por seus pais (João e Regina), ajuizou ação de indenização por
danos morais contra a empresa Alfa.
Foi pedida a concessão do benefício
da Justiça Gratuita em favor de Lucas, que é criança e, portanto, não possui
patrimônio nem exerce atividade remunerada. Para tanto, foi juntada declaração
de pobreza atestando essa condição.
O juiz indeferiu o pedido de justiça
gratuita sob o fundamento de que João e Regina, pais do autor, são servidores
públicos qualificados e, com isso, possuem boa condição econômica.
Lucas interpôs agravo de instrumento
sustentando a tese de que a concessão do benefício da justiça gratuita deve ser
sempre analisada a partir da situação financeira do autor, e não de seu representante
legal, mesmo que o requerente seja criança ou adolescente.
A decisão do magistrado foi mantida
pelo TJ.
Ainda inconformado, o autor interpôs
recurso especial. Insistiu na tese de que a gratuidade da justiça não pode ser
indeferida com base na condição financeira de pessoa diversa da que busca o
benefício, por ser direito personalíssimo.
O STJ concordou com os argumentos do
recorrente?
SIM.
O CPC/2015, ao tratar sobre a gratuidade da justiça,
estabelece que:
Art. 98. A pessoa natural ou
jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar
as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à
gratuidade da justiça, na forma da lei.
O art. 99, § 6º do CPC traz regra que auxilia na resolução
do caso concreto:
Art. 99 (...)
§ 6º O direito à gratuidade da justiça é pessoal,
não se estendendo a litisconsorte ou a sucessor do beneficiário, salvo
requerimento e deferimento expressos.
Embora a regra do art. 99, § 6º,
do CPC/2015 limite-se a enunciar que o benefício não é automaticamente
extensível ao litisconsorte, tampouco é automaticamente transmissível ao sucessor,
é da natureza personalíssima do direito à gratuidade que os pressupostos legais
para a sua concessão deverão ser preenchidos, em regra, pela própria parte, não
por seu representante legal.
Em se tratando de crianças ou
adolescentes representados ou assistidos pelos seus pais, haverá sempre um
forte vínculo entre a situação desses dois diferentes sujeitos de direitos e
obrigações, sobretudo em razão da incapacidade civil e econômica do próprio
menor, o que não significa dizer, todavia, que se deva automaticamente examinar
o direito à gratuidade a que poderia fazer jus o menor à luz da situação
financeira de seus pais.
Assim, em se tratando de direito
à gratuidade de justiça pleiteado por criança ou adolescente, é apropriado que,
em regra, incida a previsão do art. 99, § 3º, do CPC/2015. Assim, deve ser
deferido o benefício da justiça gratuita ao menor em razão da presunção de
insuficiência de recursos decorrente de sua alegação.
O STJ, contudo, afirma que é possível que o réu demonstre,
com base no art. 99, § 2º, do CPC/2015, a ausência dos pressupostos legais que
justificam a concessão da gratuidade, pleiteando, em razão disso, a revogação
do benefício:
Art. 99 (...)
§ 2º O juiz somente poderá
indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos
pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir
o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos
pressupostos.
Essa forma de encadeamento dos
atos processuais privilegia, a um só tempo, o princípio da inafastabilidade da
jurisdição (art. 5º, XXXV, da Constituição Federal), pois não impede o imediato
ajuizamento da ação e a prática de atos processuais eventualmente
indispensáveis à tutela do direito vindicado, e o princípio do contraditório
(art. 5º, LV, da CF/88), pois permite ao réu que produza prova, ainda que
indiciária, de que não se trata de hipótese de concessão do benefício.
Mais recentemente, com amparo,
também, no caráter personalíssimo do benefício da gratuidade de justiça, o STJ
decidiu que a condição financeira do cônjuge não obsta, por si só e
necessariamente, o deferimento do benefício da gratuidade da justiça, sendo
necessário verificar se a própria parte que o requer preenche os pressupostos
específicos para a sua concessão:
(...) 2. O propósito recursal consiste em dizer se o fato de o
cônjuge da parte requerente possuir condições financeiras de arcar com as
custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios, obsta, por si só
e necessariamente, o deferimento do pedido de gratuidade da justiça.
3. Extrai-se da natureza personalíssima do direito à gratuidade
a conclusão de que os pressupostos legais para a sua concessão deverão ser
preenchidos, em regra, pela própria parte que o requer.
4. Na hipótese em que o pedido de gratuidade da justiça é
realizado por um dos cônjuges, poderá haver um forte vínculo entre a situação
financeira dos consortes, sobretudo em razão do regime matrimonial de bens e o
dever de mútua assistência previsto no inciso III do art. 1.566 do CC, o que
não significa dizer, todavia, que se deva, automática e isoladamente, examinar
o direito à gratuidade a que poderia fazer jus um dos cônjuges à luz da
situação financeira do outro.
5. A
condição financeira do cônjuge não obsta, por si só e necessariamente, o
deferimento dos benefícios da gratuidade da justiça, sendo necessário verificar
se a própria parte que o requer preenche os pressupostos específicos para a sua
concessão. (...)
STJ. 3ª Turma. REsp 1.998.486/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado
em 16/8/2022.
Diante de tudo que foi exposto,
conclui-se que o fato de o representante legal da parte auferir renda não pode,
por si só, servir de empecilho à concessão da gratuidade de justiça ao
menor, que figura como parte no processo.
Em suma:
A representação da criança ou adolescente por seus
pais vincula-se à incapacidade civil e econômica do próprio menor, sobre o qual
incide a regra do art. 99, § 3º, do CPC/2015, mas isso não implica
automaticamente o exame do direito à gratuidade com base na situação financeira
dos pais.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.055.363-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 13/6/2023 (Info
781).
DOD Plus – informações
correlatas
Jurisprudência em Teses (Ed. 149)
6) Nas ações ajuizadas por menor, em que pese a existência da
figura do representante legal no processo, o pedido de concessão de gratuidade
da justiça deve ser examinado sob o prisma do menor, que é parte do processo.
O fato de o representante legal do
menor, autor de execução de alimentos, possuir atividade remunerada não pode,
por si só, servir de empecilho à concessão da gratuidade de justiça
Em ação judicial que versa sobre alimentos ajuizada por menor,
não é admissível que a concessão da gratuidade de justiça esteja condicionada a
demonstração de insuficiência de recursos de seu representante legal.
Caso concreto: uma criança, representada por sua mãe, ingressou
com execução de alimentos contra o pai; o juiz indeferiu o pedido de gratuidade
de justiça porque a mãe do autor (representante do menor) não provou a sua
insuficiência de recursos.
O direito ao benefício da gratuidade de justiça possui natureza
individual e personalíssima.
Assim, os requisitos para a concessão ou não do direito à
gratuidade deverão ser preenchidos, em regra, pela própria parte, e não pelo
seu representante legal.
É evidente que, em se tratando de menores representados pelos
seus pais, haverá sempre um forte vínculo entre a situação desses dois
diferentes sujeitos de direitos e obrigações, sobretudo em razão da
incapacidade civil e econômica do próprio menor. Isso não significa, contudo,
que se deva automaticamente examinar o direito à gratuidade a que poderia fazer
jus o menor à luz da situação financeira de seus pais.
Assim, em se tratando de direito à gratuidade de justiça
pleiteado por menor de 18 anos, deve o juiz, inicialmente, aplicar a regra do
§3º do art. 99, deferindo o benefício em razão da presunção de sua
insuficiência de recursos. Existe, todavia, a possibilidade de a outra parte
demonstrar, com base no § 2º, a ausência dos pressupostos legais que justificam
a gratuidade, pleiteando, em razão disso, a revogação do benefício concedido.
STJ. 3ª Turma. REsp 1807216-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi,
julgado em 04/02/2020 (Info 664).