quarta-feira, 11 de outubro de 2023
Plano de saúde não pode recusar o fornecimento de medicamento registrado na ANVISA e prescrito pelo médico do paciente unicamente sob o argumento de que se trata de uso off-label, ou em caráter experimental
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Regina,
cliente do plano de saúde XXX, foi diagnosticada com pielonefrite em
decorrência de complicações de Lúpus Eritematoso.
O médico que está atendendo
Regina prescreveu que ela fizesse uso de um medicamento denominado Rituximabe.
Ocorre que o plano de saúde não
autorizou o tratamento, ou seja, disse que não iria pagá-lo.
A justificativa dada pelo plano
foi a de que, segundo a bula do Rituximabe, registrada na ANVISA, este
medicamento não é indicado expressamente para a enfermidade que acomete a
autora.
Assim,
de acordo com o plano, o médico receitou o medicamento para uma finalidade que
não é a prevista para ele. Em outras palavras, o médico determinou a realização
de tratamento com base em uso off-label
de medicamento.
Off-label
Off-label é uma expressão em inglês que, em tradução literal,
significaria “fora de indicação”.
Off = fora / label =
indicação.
Para que um medicamento seja
fabricado ou comercializado no Brasil, ele precisa de registro (autorização) na
Anvisa.
Ao pedir o registro de um
medicamento, o fabricante ou responsável apresenta à autarquia as indicações
daquele remédio, ou seja, para quais enfermidades a droga foi testada e
aprovada. Essas indicações (e sua respectiva eficácia) são baseadas em
pesquisas e testes que levam anos para serem concluídos.
Assim, por exemplo, quando o
fabricante do remédio Dorflex foi registrá-lo na Anvisa, ele informou que este
medicamento foi idealizado e testado para ser utilizado como “relaxante
muscular”. Essa é a indicação deste remédio.
Ocorre que, muitas vezes, um
medicamento que foi planejado para determinada finalidade, quando entra no
organismo humano, acaba trazendo outros benefícios que não haviam sido
previstos. Esse efeito inicialmente não previsto é percebido pelos médicos, que
passam a receitar aquele medicamento não apenas para aquela indicação
inicialmente pensada e sim para outra finalidade que não havia sido prevista.
Quando isso ocorre, dizemos que
há a prescrição e o uso do medicamento off-label,
ou seja, fora da sua indicação.
Assim, o medicamento off-label é aquele cujo médico prescreve
para uma determinada finalidade que não consta expressamente na sua bula.
O exemplo mais famoso de
medicamento off-label é o AAS (ácido
acetilsalicílico). Este remédio foi desenvolvido para ser um mero analgésico.
Posteriormente, contudo, percebeu-se que ele servia para outras finalidades,
como, por exemplo, para a prevenção de infartos. Assim, atualmente, muitos
médicos prescrevem o AAS para prevenir infartos, mesmo isso não sendo uma
indicação oficial do remédio.
Tratamento experimental
O plano de
saúde alegou que o médico que receita medicamento off-label está indicando um tratamento experimental. Ocorre que a
Lei nº 9.656/98 e a Resolução nº 428/2017 desobrigam os planos de saúde a
custearem tratamentos experimentais:
Lei nº 9.656/98
Art. 10. É instituído o
plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial
médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos,
realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de
terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das
doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde,
respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto:
I - tratamento clínico ou cirúrgico
experimental;
Resolução nº 428/2017
Art. 20. A cobertura assistencial de
que trata o plano-referência compreende todos os procedimentos clínicos,
cirúrgicos, obstétricos e os atendimentos de urgência e emergência, na forma
estabelecida no art. 10 da Lei nº 9.656, de 1998.
§ 1º São permitidas as seguintes
exclusões assistenciais:
I - tratamento clínico ou cirúrgico
experimental, isto é, aquele que:
a) emprega medicamentos, produtos para
a saúde ou técnicas não registrados/não regularizados no país;
b) é considerado experimental pelo
Conselho Federal de Medicina – CFM ou pelo Conselho Federal de Odontologia -
CFO; ou
c) não possui as indicações descritas
na bula/manual registrado na ANVISA (uso off-label), ressalvado o disposto no
art. 26;
(...)
Art. 26. As operadoras deverão
garantir a cobertura de medicamentos e de produtos registrados pela ANVISA, nos
casos em que a indicação de uso pretendida seja distinta daquela aprovada no
registro daquela Agência, desde que:
I - a Comissão Nacional de
Incorporação de Tecnologias no SUS – CONITEC tenha demonstrado as evidências
científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do
medicamento ou do produto para o uso pretendido; e
II - a ANVISA tenha emitido, mediante
solicitação da CONITEC, autorização de uso para fornecimento, pelo SUS, dos
referidos medicamentos e produtos, nos termos do art. 21 do Decreto nº 8.077,
de 14 de agosto de 2013.
Assim, para o plano de saúde, o
medicamento prescrito pelo médico de Regina tem natureza meramente experimental
porque não é voltado para a patologia que acomete a paciente (uso off-label). Logo, o plano estaria
desobrigado de custeá-lo.
O argumento do plano de saúde foi
aceito pelo STJ? O plano de saúde pode recusar o pagamento de um tratamento
prescrito pelo médico argumentando que se trata de uso off-label?
NÃO.
A jurisprudência do STJ há muito
se firmou no sentido de ser abusiva a recusa da operadora do plano de saúde de
custear a cobertura do medicamento registrado na ANVISA e prescrito pelo médico
do paciente, ainda que seja tratamento off-label, ou utilizado em caráter
experimental.
Dessa forma, conclui-se que por
qualquer ângulo que se analise a questão, é de rigor a cobertura do tratamento
indicado, uma vez que se trata de medicamento de uso ambulatorial, com
necessidade de aplicação intravenosa, portanto com necessidade de supervisão de
profissional de saúde, devidamente registrado na Anvisa, ainda que indicado seu
uso off-label.
De acordo com o atual
entendimento do STJ, é lícita a exclusão, na Saúde Suplementar, do fornecimento
de medicamentos para tratamento domiciliar, isto é, aqueles prescritos pelo
médico assistente para administração em ambiente externo ao de unidade de saúde,
que não se enquadre em nenhuma das hipóteses de cobertura determinadas pela Lei
nº 9.656/98, quais sejam os antineoplásicos orais (e correlacionados), a
medicação assistida (home care) e os incluídos no rol da Agência Nacional de
Saúde Suplementar (ANS) para esse fim.
Ressalta-se que o STJ entende que
o medicamento para tratamento domiciliar de que trata o art. 10, VI, da Lei n.
9.656/1998 é aquele adquirido diretamente nas farmácias e autoadministrado pelo
paciente, cuja indicação não tenha por fim substituir o tratamento ambulatorial
ou hospitalar, nem esteja relacionada à continuidade da assistência prestada em
âmbito de internação hospitalar, excluindo-se dessa classificação a medicação
injetável que necessite de supervisão direta de profissional de saúde, por se
tratar de hipótese de uso ambulatorial ou espécie de medicação assistida.
Em suma:
A recusa da operadora do plano de saúde em custear
medicamento registrado pela ANVISA e prescrito pelo médico do paciente é
abusiva, ainda que se trate de fármaco off-label ou utilizado
em caráter experimental, especialmente na hipótese em que se mostra
imprescindível à conservação da vida e saúde do beneficiário.
STJ. 4ª
Turma. AgInt no AREsp 1.964.268-DF, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 12/6/2023
(Info 782).
No mesmo sentido:
A operadora de plano de saúde não pode negar o fornecimento de
tratamento prescrito pelo médico sob o pretexto de que a sua utilização em
favor do paciente está fora das indicações descritas na bula/manual registrado
na ANVISA (uso off-label).
STJ. 3ª Turma. REsp 1.721.705-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi,
julgado em 28/08/2018 (Info 632).
Médico é o responsável pela
decisão terapêutica
Deve-se deixar claro que é o
médico (e não a operadora do plano de saúde) que é o responsável pela orientação
terapêutica adequada ao paciente.
Assim, é o médico que decide se
aquele remédio ou tratamento é indicado ou não para a doença do paciente.
Quando o plano de saúde diz que a
indicação descrita na bula/manual do remédio registrado na ANVISA não serve
para aquela doença, ele está substituindo a decisão do médico. Isso porque ele
está interpretando a bula e dizendo que a escola do médico não foi adequada.
Autorizar que a operadora negue a
cobertura de tratamento sob a justificativa de que a doença do paciente não
está contida nas indicações da bula representa inegável ingerência na ciência
médica, em odioso e inaceitável prejuízo do paciente enfermo.
As
enfermidades devem ser tratadas de acordo com o entendimento médico-científico
que prevalece no atual estado da ciência. Ocorre que a entidade responsável
pela definição do que constitui um tratamento experimental ou de recomendável
eficácia clínica é o Conselho Federal de Medicina (e não o plano de saúde).
Nesse sentido, veja o que diz o art. 7º da Lei nº 12.842/2013:
Art. 7º Compreende-se entre as
competências do Conselho Federal de Medicina editar normas para definir o
caráter experimental de procedimentos em Medicina, autorizando ou vedando a sua
prática pelos médicos.
Tanto é assim que há Resoluções
específicas dessa comunidade para disciplinar os critérios de protocolo e
avaliação de reconhecimento de novos procedimentos e terapias médicas, bem como
para proibir aos médicos a utilização de práticas terapêuticas não reconhecidas
pela comunidade científica.
Correta interpretação do art. 10,
I, da Lei nº 9.656/98
Quando o art. 10, I, da Lei nº
9.656/98 fala em tratamento de caráter experimental, o que ele está querendo
dizer é aquele tratamento clínico ou cirúrgico incompatível com as normas de
controle sanitário ou, ainda, aquele não reconhecido como eficaz pela
comunidade científica.
Desvantagem exagerada
A ingerência da operadora, além
de não ter fundamento na Lei nº 9.656/98, consiste em ação iníqua (injusta) e
abusiva na relação contratual, e coloca o consumidor em desvantagem exagerada
(art. 51, IV, do CDC).