Imagine a seguinte situação
hipotética:
Renata é executiva de uma
determinada empresa e se encontra no auge de sua carreira profissional.
Ela deseja um dia ser mãe, mas
entende que atualmente não é o momento ideal por conta de seus compromissos de
trabalho.
Como já tem 35 anos, Renata está
com receio de, posteriormente, não conseguir engravidar.
Assim, ela procurou um médico que
recomendou a realização de um procedimento de congelamento dos oócitos, mais
conhecido na linguagem cotidiana como “congelamento dos óvulos”.
Os óvulos são retirados da mulher
e depois congelados em nitrogênio líquido. Quando a mulher decide engravidar,
os óvulos são “descongelados”, sendo feita a fecundação dos óvulos com o
espermatozoide do parceiro, em laboratório, por intermédio da fertilização in
vitro. Em seguida, é realizada a implantação no útero da mulher.
Indaga-se: o plano de saúde
é obrigado a custear esse procedimento para Renata?
NÃO.
O art. 10, III, da Lei nº
9.656/98 permite que os planos de saúde neguem cobertura para inseminação
artificial.
A ANS possui resoluções afirmando
que, além da inseminação artificial, o plano também não é obrigado a custear outras
técnicas de reprodução assistida. Assim, entende-se que o congelamento dos
óvulos (espécie de manipulação laboratorial dos óvulos) é um procedimento que
não é de cobertura obrigatória pelo plano de saúde.
Assim, em situações “normais”
seria possível que o plano de saúde se recusasse ao pagamento da
criopreservação, pois esta nada mais é do que o congelamento dos oócitos para
manipulação e fertilização futura.
Imagine agora uma situação
diferente:
Regina estava fazendo
quimioterapia para combater um câncer. Ocorre que esse tratamento pode
ocasionar, como reação adversa, a falência ovariana, gerando infertilidade.
A forma de preservar a capacidade
reprodutiva, nestes casos, é o congelamento dos óvulos, um procedimento
denominado de “criopreservação”.
Diante disso, ela pleiteou junto
ao plano de saúde que custeasse esse procedimento.
A operadora recusou o custeio sob
a justificativa de que o procedimento não seria de cobertura obrigatória. Para
o plano de saúde, assim como ele não é obrigado a custear inseminação
artificial, ele também não poderia ser compelido a pagar o procedimento de
criopreservação. Seria o mesmo raciocínio.
Indaga-se: o plano de saúde
é obrigado a custear esse procedimento para Regina?
SIM.
Como vimos, em regra, o plano de
saúde pode se recusar a custear o procedimento de criopreservação.
O caso concreto, porém, é
diferente.
O que a usuária do plano busca é
a atenuação (diminuição) dos efeitos colaterais, previsíveis e evitáveis, da
quimioterapia, dentre os quais a falência ovariana.
O objetivo de
todo tratamento médico, além de curar a doença, é não causar mal. Esse é um dos
princípios milenares da medicina conhecido pela locução “primum, non nocere”
(primeiro, não prejudicar). Esse princípio está consagrado no art. 35-F da Lei
nº 9.656/98, segundo o qual a cobertura dos planos de saúde abrange também a
prevenção de doenças, no caso, a infertilidade:
Art. 35-F. A assistência a que alude o art. 1º desta Lei
compreende todas as ações necessárias à prevenção da doença e à recuperação, manutenção e reabilitação da saúde, observados os termos
desta Lei e do contrato firmado entre as partes.
Desse modo, o plano de saúde pode
ser obrigado a custear o procedimento pleiteado que funciona como medida de
prevenção para a possível infertilidade da paciente.
Vale ressaltar que, depois de
obter alta do tratamento quimioterápico, caberá à mulher custear o tratamento
de reprodução assistida, considerando que isso se encontra fora da cobertura do
plano.
Em suma:
É devida a cobertura, pela operadora de plano de saúde, do
procedimento de criopreservação de óvulos de paciente fértil, até a alta do
tratamento quimioterápico, como medida preventiva à infertilidade.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.815.796-RJ, Rel. Min. Paulo de Tarso
Sanseverino, julgado em 26/05/2020 (Info 673).
Esse entendimento foi reiterado
pelo STJ:
A operadora de plano de saúde deve custear o
procedimento de criopreservação de óvulos, como medida preventiva à
infertilidade, enquanto possível efeito adverso do tratamento de quimioterapia
prescrito para câncer de mama, até a alta da quimioterapia.
STJ. 3ª
Turma. REsp 1.962.984-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/8/2023 (Info
785).
Se a operadora cobre o
procedimento de quimioterapia para tratar o câncer de mama, há de fazê-lo
também com relação à prevenção dos efeitos adversos e previsíveis dele
decorrentes, como a infertilidade, de modo a possibilitar a plena reabilitação
da beneficiária ao final do seu tratamento, quando então se considerará
devidamente prestado o serviço fornecido.
Se a obrigação de prestação de
assistência médica assumida pela operadora de plano de saúde impõe a realização
do tratamento prescrito para o câncer de mama, a ele se vincula a obrigação de
custear a criopreservação dos óvulos, sendo esta devida até a alta do
tratamento de quimioterapia prescrito para o câncer de mama, a partir de quando
caberá à beneficiária arcar com os eventuais custos, às suas expensas, se
necessário for.
Mais uma vez, peço
novamente para não confundirem:
• usuária é infértil e busca
tratamento para a infertilidade (ex: inseminação artificial): plano de saúde
NÃO é obrigado a custear.
• usuária é fértil e busca a
criopreservação como forma de prevenir a infertilidade: plano de saúde é
obrigado a custear.