Dizer o Direito

sábado, 28 de outubro de 2023

Plano de saúde deve custear congelamento de óvulo criopreservação para a paciente em tratamento contra o câncer como medida preventiva à infertilidade

Imagine a seguinte situação hipotética:

Renata é executiva de uma determinada empresa e se encontra no auge de sua carreira profissional.

Ela deseja um dia ser mãe, mas entende que atualmente não é o momento ideal por conta de seus compromissos de trabalho.

Como já tem 35 anos, Renata está com receio de, posteriormente, não conseguir engravidar.

Assim, ela procurou um médico que recomendou a realização de um procedimento de congelamento dos oócitos, mais conhecido na linguagem cotidiana como “congelamento dos óvulos”.

Os óvulos são retirados da mulher e depois congelados em nitrogênio líquido. Quando a mulher decide engravidar, os óvulos são “descongelados”, sendo feita a fecundação dos óvulos com o espermatozoide do parceiro, em laboratório, por intermédio da fertilização in vitro. Em seguida, é realizada a implantação no útero da mulher.

 

Indaga-se: o plano de saúde é obrigado a custear esse procedimento para Renata?

NÃO.

O art. 10, III, da Lei nº 9.656/98 permite que os planos de saúde neguem cobertura para inseminação artificial.

A ANS possui resoluções afirmando que, além da inseminação artificial, o plano também não é obrigado a custear outras técnicas de reprodução assistida. Assim, entende-se que o congelamento dos óvulos (espécie de manipulação laboratorial dos óvulos) é um procedimento que não é de cobertura obrigatória pelo plano de saúde.

Assim, em situações “normais” seria possível que o plano de saúde se recusasse ao pagamento da criopreservação, pois esta nada mais é do que o congelamento dos oócitos para manipulação e fertilização futura.

 

Imagine agora uma situação diferente:

Regina estava fazendo quimioterapia para combater um câncer. Ocorre que esse tratamento pode ocasionar, como reação adversa, a falência ovariana, gerando infertilidade.

A forma de preservar a capacidade reprodutiva, nestes casos, é o congelamento dos óvulos, um procedimento denominado de “criopreservação”.

Diante disso, ela pleiteou junto ao plano de saúde que custeasse esse procedimento.

A operadora recusou o custeio sob a justificativa de que o procedimento não seria de cobertura obrigatória. Para o plano de saúde, assim como ele não é obrigado a custear inseminação artificial, ele também não poderia ser compelido a pagar o procedimento de criopreservação. Seria o mesmo raciocínio.

 

Indaga-se: o plano de saúde é obrigado a custear esse procedimento para Regina?

SIM.

Como vimos, em regra, o plano de saúde pode se recusar a custear o procedimento de criopreservação.

O caso concreto, porém, é diferente.

O que a usuária do plano busca é a atenuação (diminuição) dos efeitos colaterais, previsíveis e evitáveis, da quimioterapia, dentre os quais a falência ovariana.

O objetivo de todo tratamento médico, além de curar a doença, é não causar mal. Esse é um dos princípios milenares da medicina conhecido pela locução “primum, non nocere” (primeiro, não prejudicar). Esse princípio está consagrado no art. 35-F da Lei nº 9.656/98, segundo o qual a cobertura dos planos de saúde abrange também a prevenção de doenças, no caso, a infertilidade:

Art. 35-F.  A assistência a que alude o art. 1º desta Lei compreende todas as ações necessárias à prevenção da doença e à recuperação, manutenção e reabilitação da saúde, observados os termos desta Lei e do contrato firmado entre as partes.

 

Desse modo, o plano de saúde pode ser obrigado a custear o procedimento pleiteado que funciona como medida de prevenção para a possível infertilidade da paciente.

Vale ressaltar que, depois de obter alta do tratamento quimioterápico, caberá à mulher custear o tratamento de reprodução assistida, considerando que isso se encontra fora da cobertura do plano.

 

Em suma:

É devida a cobertura, pela operadora de plano de saúde, do procedimento de criopreservação de óvulos de paciente fértil, até a alta do tratamento quimioterápico, como medida preventiva à infertilidade.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.815.796-RJ, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 26/05/2020 (Info 673).

 

Esse entendimento foi reiterado pelo STJ:

A operadora de plano de saúde deve custear o procedimento de criopreservação de óvulos, como medida preventiva à infertilidade, enquanto possível efeito adverso do tratamento de quimioterapia prescrito para câncer de mama, até a alta da quimioterapia.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.962.984-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/8/2023 (Info 785).

 

Se a operadora cobre o procedimento de quimioterapia para tratar o câncer de mama, há de fazê-lo também com relação à prevenção dos efeitos adversos e previsíveis dele decorrentes, como a infertilidade, de modo a possibilitar a plena reabilitação da beneficiária ao final do seu tratamento, quando então se considerará devidamente prestado o serviço fornecido.

Se a obrigação de prestação de assistência médica assumida pela operadora de plano de saúde impõe a realização do tratamento prescrito para o câncer de mama, a ele se vincula a obrigação de custear a criopreservação dos óvulos, sendo esta devida até a alta do tratamento de quimioterapia prescrito para o câncer de mama, a partir de quando caberá à beneficiária arcar com os eventuais custos, às suas expensas, se necessário for.

 

Mais uma vez, peço novamente para não confundirem:

• usuária é infértil e busca tratamento para a infertilidade (ex: inseminação artificial): plano de saúde NÃO é obrigado a custear.

• usuária é fértil e busca a criopreservação como forma de prevenir a infertilidade: plano de saúde é obrigado a custear.


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